Recordando Tony Judt

Tony Judt

Afectado desde 2008 pelo mal de Gehrig, uma doença neurodegenerativa incurável que enfrentou com a maior coragem, Tony Judt morreu hoje aos 62 anos. Foi um dos grandes historiadores da contemporaneidade. É, e permanecerá, um dos meus favoritos, cuja leitura tenho recomendado repetidamente em aulas e intervenções como ferramenta de conhecimento e exemplo do modo como a interpretação do passado nos pode ajudar a armar a cidadania. Se tivesse de o associar forçosamente a um campo do saber, classificá-lo-ia como historiador das ideias e dos intelectuais, habitante desse território da História, hoje relativamente pouco povoado mas essencial, que estuda de forma sistemática a expressão, a preservação e a mudança dos modos de representar o mundo no domínio do pensamento individual e das convicções partilhadas.

Em Portugal foram traduzidos dois livros de Judt, ambos por iniciativa das Edições 70: Pós-Guerra. História da Europa desde 1945 (Postwar. A History of Europe Since 1945, de 2005) e O Século XX Esquecido. Lugares e Memórias (Reappraisals. Reflections on the Forgotten Twentieth Century, de 2008). Se o primeiro é um relato exaustivo e monumental das transformações operadas no Velho Continente, e na sua relação com o resto do mundo, desde o final da Segunda Guerra Mundial até à actualidade, o segundo integra uma colectânea de escritos – inicialmente editados em publicações como a New York Review of Books – que projecta um esforço pessoal de regresso a formas de pensamento e de activismo social que têm sido esquecidas, desarmando o presente para um debate público substantivo e empurrando para o esquecimento temas tão centrais no trajecto humano como os desafios do mal, as sequelas da Guerra Fria ou a memória do marxismo. Estão por traduzir – e aqui fica a sugestão – outros três livros essenciais para compreender a intervenção do historiador inglês: Past Imperfect: French Intellectuals, 1944-1956 (1992), The Burden of Responsability. Blum, Camus, Aron and the French Twentieth Century (1998), e Ill Fares the Land, de 2010, este, já na impossibilidade de escrever, ditado por Judt, e que funciona como uma espécie de testamento político. Construído, como sempre, sob a perspectiva de quem observa o mundo como um continuum em perpétuo movimento, no qual passado, presente e futuro participam de um mesmo corpo.

Em O Século XX Esquecido, Judt escreveu: «o que o passado pode realmente ajudar-nos a compreender é a complexidade das perguntas». Uma sugestão que nos ajudará a retirar a História dessa teia de pseudo-certezas que apenas tem contribuído para lhe diminuir o interesse público, transformando-a tantas vezes nesse território rançoso no qual repousa um passado que serve apenas para contemplar ou para comemorar. História viva, como Judt nos ajudou a perceber, é obrigatoriamente, e sempre, questionamento a partir do presente. Num movimento de vaivém que é, justamente, aquele que a devolve à vida.

Ler aqui o obituário do New York Times

    História, Memória, Olhares

    Indiferença

    mãos cubanas

    Há três dias parei para beber um café e desentorpecer as pernas numa estação de serviço da A2. No restaurante, um pouco acima de um cartaz que anunciava ao preço de 9,55 Euros um prato de macarrão com pedaços de bacon provavelmente atingidos por uma granada de fragmentação, um enorme monitor de LCD espalhava a imagem e a voz de Raul Castro. De farda completa e boné militar, dirigia-se ao cordato parlamento instalado em Havana para anunciar que o seu governo jamais perdoará aos «inimigos da pátria». Assim designa o regime cubano todos aqueles que perturbem a «ordem revolucionária», sejam eles carteiristas reincidentes ou vendedores ocasionais de doces caseiros, blogueiros autónomos ou gays que digam que o são, intelectuais que defendam a liberdade de expressão ou gusanos com dentes de ouro e simpatizantes dos republicanos. Todos iguais, todos «bandidos» que instigam à desordem. Com a voz mais ameaçadora que consegue emitir, o Castro mais novo mostra como se governa em regimes de partido único: ameaçando as pessoas comuns com a voz mais ameaçadora que se consegue emitir, usando os mecanismos da propaganda sem concorrência, mostrando que não pode haver lugar para as razões de quem pensa de forma diferente da única «justa». Mas ninguém levantou os olhos para o ouvir Castro, ali na estação de serviço. Um grupo de turistas chineses ria de alguma coisa. Uma família portuguesa engolia sandes de mortadela enquanto conversava aos gritos. Duas raparigas passavam de mão dada e com headphones nos ouvidos. No aquário, os peixes continuaram em silêncio. Eu bebi o meu café e segui viagem, a pensar em como em Cuba até a indiferença deve doer.

      Apontamentos, Olhares, Opinião

      Sublinhado

      jornal

      «Dêem-me um jornal onde se use hoje uma voz perifrástica ou tão só um tempo composto e onde o mais-que-perfeito não tenha sido soterrado sob o pau para toda a obra do perfeito simples.» A constatação foi feita por Manuel António Pina num JN dos idos de Maio de 2006. Entretanto estes quatros anos e picos de vida colectiva doideca e intensa trouxeram consigo a vitória de um outro contributo estilístico: a presentificação do condicional. Diria mesmo que me parece.

        Etc., Olhares

        Nós em números

        ai portugal portugal

        Quem pretenda reduzir em menos de cinco minutos à completa insignificância os comentários dos sobreviventes do antigamente, ou das criaturas dos pós-Abril que não sabem do que falam, sobre como era digna e «melhor» a vida no Portugal de Salazar e Caetano, deve ter por perto um pequeno livro que chegou há pouco às livrarias. Refiro-me a Portugal: os Números, de Maria João Valente Rosa e Paulo Chitas, uma edição de capa dura da Fundação Francisco Manuel dos Santos à venda por apenas 5 euros. Começa assim:

        «Se por algum exercício de ficção os portugueses de hoje acordassem no ambiente do início dos anos 60, sobretudo junto ao litoral e nas grandes zonas urbanas, sentir-se-iam bastante desconfortáveis e, por certo, com uma enorme estranheza em relação a tudo o que acontecia em seu redor. Era o seu País – mas irreconhecível.»

        O livro fornece números, mas apenas os essenciais. Existem dados mais completos disponíveis noutros locais e o objectivo dos autores não é repeti-los, mas sim «descortinar tendências globais da sociedade portuguesa». Aquilo que deixam à vista em pouco mais de 100 páginas é, de facto, um país radicalmente outro, incomparavelmente melhor e mais feliz. E um movimento de mudança que em menos de cinquenta anos – ou de quarenta dado o facto da maioria das transformações ter ocorrido já após o 25 de Abril – o transfigurou. Os dados reportam-se à evolução demográfica (incluindo a emigração e a imigração), ao crescimento do Estado social (com destaque para as alterações no campo da educação, do conhecimento, da cultura, da saúde e de protecção social), à evolução do trabalho e dos rendimentos, às alterações no campo da justiça, às novas tendências no domínio da família e dos modos de vida.

        Alguns dados são particularmente esmagadores: entre 1960 e 2008 a permilagem da taxa de mortalidade infantil desceu de 77,5 (a pior entre os 27 países da actual União Europeia) para 3,3 (a sexta mais baixa); a esperança de vida subiu dos 60,7 e 66,4 (homens e mulheres) para 75,5 e 81,7; entre 1972 e 2008 o orçamento do Estado para as funções sociais passou de 1,9% do PIB para 16,4%; a população com 15 ou mais anos sem escolaridade passou de 65,6% em 1960 para 9,2% em 2001; o ensino médio e superior subiu em flecha; entre 1960 e 2003 o número de livros nas bibliotecas públicas passou de 5,4 milhões para 32,2 milhões, tendo estas passado de 89 para 1.018; sensivelmente pelos mesmos anos o número de museus subiu de 96 para 300; os médicos e enfermeiros de 188 para cerca de 900 por cada 100.000 habitantes; os pensionistas da segurança social passaram de 120 mil para quase 3 milhões; o público de espectáculos ao vivo subiu de 161 mil em 1960 para mais de 6 milhões em 2008.

        Claro que muitas assimetrias e problemas se mantêm, sobretudo no plano dos rendimentos e da igualdade entre homens e mulheres, e nem todos os factores apresentados podem ser considerados necessariamente positivos – por curiosidade e sem qualquer juízo de valor, a percentagem de divórcios aumentou de 1,1 por cada 100 casamentos, em 1960, para os actuais 61%, enquanto os casamentos foram reduzidos a metade –, mas não existe comparação possível e, por isso, possibilidade alguma de pactuar com a mistificação lançada pelos vultos que habitam as sombras ou pelos seus ignaros herdeiros.

          Atualidade, História, Memória, Olhares

          Fiel ao touro

          tourada

          Das touradas consigo entender a embriaguez do sol a pique e da poeira à solta, dos cheiros acres e bestiais, dos trajes de luces, das mantilhas negras, amarelas, em tons de rojo. E o fulgor das verónicas, das compridas chiquelinas, dos olés, dos é-lás, da música vibrante do passo doble às ordens do inteligente. Creio que também consigo alcançar – sem com ela simpatizar – um pouco da afición que experimentou Hemingway, apenas sensível ao «ventre rasgado dos cavalos» e às solidariedades masculinas tecidas em redor da corrida. Mas mantenho-me fiel ao touro. Na expectativa da volúpia suprema da cornada com justa causa. E da vingança do oprimido.

          Nota – O Parlamento da Catalunha aprovou hoje, por maioria, uma lei que proíbe as corridas de touros a partir de Janeiro de 2012. Desde 1991 que uma lei análoga está em vigor nas Canárias.

          Quase 24 horas depois, três apêndices suscitados por algumas interpelações.

          # Claro que não sou indiferente ao facto dos militantes e simpatizantes independentistas apoiarem entusiasticamente a nova lei catalã. Só se fossem tolos é que o não fariam, uma vez que o documento aprovado contraria a centripetia cultural castelhana e constitui um gesto de afirmação autonómica. Discutir sobre se isto é bom, mau ou assim-assim leva-nos a um tema diferente.

          # A minha referência à solidariedade com o touro foi, evidentemente, irónica. Mas apesar de continuar a gostar de mastigar um bom pedaço de lombo e de não simpatizar com o fundamentalismo animal, mais preocupado com os bichos do que com as pessoas, não suporto o sofrimento desnecessariamente infligido a um ser vivo. Seja ele um touro ou uma truta. E defendo uma ética da anti-violência como factor de um avanço civilizacional construído também pelo exemplo.

          # Sei muito bem que os apaixonados da tourada como «festa», «desporto» ou «arte» jamais aceitarão esta presunção. Por isso a resolução do problema nunca poderá resultar de um consenso. Passa pelo combate político. «Transversal», provavelmente.

            Atualidade, Etc., Olhares

            Um exemplo

            abolir o capitalismo

            Os antigos administradores do BCP que vão agora a julgamento, acusados de manipulação de dados e de falsificação de documentos – mas «ilibados da acusação de burla», uma subtileza de recorte jurídico cuja clareza talvez por ignorância me escape –, podem até escapar a uma qualquer pena ou ser absolvidos. Por obra e graça de advogados de primeiro escalão, pelo arrastamento do processo nos tribunais ou mesmo por ausência de provas e evidência de boa-fé. Todavia, o Tribunal de Instrução Criminal deixou claro «que os arguidos não pretenderam obter benefícios pessoais ou causar prejuízos ao banco», o que deixa implícito poderem ser de menor gravidade os danos provocados no património dos pequenos accionistas, dos depositantes e da coisa pública. Como seria de esperar, em declarações ao Público, Filipe Pinhal, um dos ex-administradores, vincou muito bem este aspecto. Uma noção de honra pessoal ou de amor a uma instituição – neste caso a um banco, género de sentimento que escapa à minha sensibilidade poética – que se traduz um completo menosprezo pelo interesse comum. Revelá-la desta forma, às claras e sem qualquer vergonha, serve para que não esqueçamos ser esta, independentemente da caução legal que foi sendo associada muitos dos seus actos mais danosos, a lógica mais essencial do, «com vossa licença», capitalismo.

              Apontamentos, Atualidade, Opinião

              Devagarmente

              summer in the city

              Os seguidores mais vigilantes e as sectárias mais inflexíveis já repararam numa quebra apreciável no ritmo das actualizações deste blogue. Chegaram até mails sobre o assunto. Estou em condições de assegurar que não se passa nada que não possa relacionar-se com o Verão, este maldito calor e o inalienável direito dos trabalhadores a um pouco de preguiça. Assim seguiremos, devagarmente, até ao miolo de um Agosto previsível.

                Apontamentos, Etc.

                Ambição

                biblioteca portátil

                Não sou um sujeito venal. Não penso, como alguns banqueiros ou os jovens turcos, que «todos temos um preço», diferenciando-se os mais honestos apenas por ganharem menos do que os nada escrupulosos. Ainda assim, a alguém que me queira oferecer um utensílio destes, entregarei a alma de imediato sem exigir recibo. Ele sugere-me um salvo-conduto para a felicidade suprema – como se sabe, ela é leve e portátil – e essa não tem preço.

                  Apontamentos, Devaneios

                  Ici se habla português

                  travessia

                  Uns dias longe dos blogues foram suficientes para chegar tarde ao debate sobre a inclusão da Guiné Equatorial nesse quase inútil organismo que responde pelo acrónimo CPLP. Para quem se recuse a ver neste uma simples agremiação de interesses, a proposta – para já adiada, devido a algum mal-estar que levantou em circuitos menos venais, mas que fica em aberto para uma oportunidade que se prevê próxima – é um perfeito absurdo. Não se trata apenas de dar cobertura política a um regime ditatorial que dessa forma compraria alguma credibilidade internacional – mesmo sabendo-se que Angola, um dos seus anfitriões, não constitui propriamente um exemplo de vigor democrático –, mas principalmente de assegurar a entrada de um país sem fundamentos históricos, culturais ou linguísticos que o aproximem minimamente daquilo que os países de língua portuguesa podem partilhar. Tal como acontecerá com outros que pretendem entrar no mesmo processo integrador: a Austrália, a Indonésia, o Luxemburgo, a Suazilândia ou a Ucrânia. Quiçá a Gronelândia (aportada em 1500-1501 pelos manos Corte-Real) ou as ilhas Vanuatu (visitadas pelo explorador Pedro Fernandes de Queirós em 1606), pois dentro de tais parâmetros porque não deixar correr a vertigem e conquistar meio mundo para uma CPLP planetária? Além disso, no caso da Guiné Equatorial, tal entrada consagraria um gesto típico de ditador: a decisão de impor a um povo, por decreto, que uma língua importada se torne «oficial». Absurdo, repito, e inaceitável. Como o é o silêncio de algumas forças políticas portuguesas perante as propostas de Teodoro Nguema Mbasogo, para a revista Forbes o oitavo governante mais rico do mundo. Cegas pelo borbulhar viscoso do petróleo ou comprometidas com propostas vindas de países lusófonos cujos responsáveis não pestanejam quando se trata de trocar os princípios «progressistas», que outrora arvoraram nas suas bandeiras, por dólares ou euros. Muitos milhões de dólares ou de euros.

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    Mrs. Peel

                    Mrs. Peel

                    Diana Rigg faz hoje 72 anos. Nunca foi uma star, nove em cada dez, das que entravam em banheiras cheias de espuma para anunciarem o sabonete Lux, mas a partir de certa altura foi Emma Peel, a companheira pró-activa e multitarefas do agente John Steed na série de televisão The Avengers, Os Vingadores, rodada entre 1961 e 1969. Steed era um agente do MI6 com aspecto de inglês «típico»: chapéu de coco, fraque sem ruga, um inseparável guarda-chuva muito bem enrolado e a omnipresente dose de fleuma. Já Mrs. Peel destoava da tradicional ajudante, sedutora, um tanto tola e absolutamente secundária na trama das outras séries. Pelo contrário, o trabalho pesado – socos, cabeçadas, fugas impossíveis, activação de engenhos explosivos e uns quantos tiros bem aplicados – ficava sempre por conta da agente em roupa futurista de cabedal negro, dotada de vastos conhecimentos de karaté e praticante de elevado nível de boxe tailandês. Aqui residia, aliás, o ineditismo da série, a sua marca caracteristicamente sixtie e vagamente feminista (Barbarella, a série de BD e o filme de culto, foram contemporâneos dos Vingadores). Talvez por isto a série de televisão se tenha tornado rapidamente popular. Diana Rigg foi também uma fugaz «Bond girl» e a madrasta má numa versão da Branca de Neve, mas será para sempre a intrépida – e  por isso singularmente sexy – Mrs. Peel.

                    Duas adendas em vídeo: Mrs. Emma Peel + Emma Peel in tight leather catsuit…

                      Devaneios, Ficção, Memória, Olhares

                      O véu e a lógica do zoo

                      véus
                      Fotomanipulação – ©2008-2010 LaHamletta

                      Falo do que me parece intuitivo, sem dar uma importância maior do que a necessária àquilo que o Senhor Sarkozy pensa sobre a matéria, às suas intenções veladas, às «grandes razões» que invoca. Caminho sobre um assunto tórrido, infelizmente recorrente.

                      Ao reconhecer a partilha de diferentes práticas, tradições e percepções do mundo num mesmo território, o multiculturalismo impõe a aceitação do diverso e o reconhecimento da sua autonomia. Mas sustenta também a edificação de uma realidade-outra, de uma metamorfose, proporcionada justamente pela convivência que sociabilidades partilhadas permitem e impõem. Na cidade multicultural a vida colectiva resulta da soma das partes e da interacção criadora de cada uma delas com cada uma das restantes mas também com o todo. Por isso, tudo aquilo que acontece nas suas ruas diz respeito a todos: o que cada um de nós mostra, exprime, oferece, existe apenas em nome do conjunto e de um diálogo infinito e criador. Desse processo de recomposição da consciência colectiva e das identidades ao qual se referem, entre outros, o filósofo Charles Taylor e o sociólogo Michel Wieviorka. Por isso ainda, não faz sentido a deriva relativista que tende a definir a integridade do «outro» e a legitimar a todo o custo a sua diferença, insulando-a, empurrando-a para um elogiável ghetto, por muito que esta possa colidir com a forma de estar no mundo dos restantes. Respeitar o outro é assim, e sempre, conviver com ele e com ele ir desenhando pontes, negociando limites. O contrário não é uma paisagem multicultural, mas sim a transposição para as sociedades humanas da lógica territorial da selva ou do zoo.

                      Penso ser este o cenário diante do qual podemos pensar, de uma forma positiva e razoavelmente dialogante, o problema do «véu islâmico», da sua admissão ou do seu constrangimento, fora ou dentro do seu território real ou supostamente original. Não me refiro ao uso do discreto hijad, que evidencia uma forma de vestir tão legítima e normal quanto qualquer outra, «diferente» em alguns espaços e vulgar noutros como todas as formas de vestir. Nem sequer do mais visível chador, que cobre o corpo mas não o rosto, e permanece ainda como um hábito, não mais indiciador de diferenças de género do que um quimono, um acanhado saiote zulu ou um rotundo decote. Refiro-me sim ao niqab, o véu que cobre todo o rosto, com excepção dos olhos, e da burka, que tapa o rosto, ocultando também os olhos e qualquer forma do corpo que confirme ser este o de uma mulher: aqui é-se mulher não pelo que se vê mas pelo que se supõe estar dentro do que é possível ver-se. E falo apenas destes dois tipos porque representam um obstáculo à construção partilhada de uma ética e de uma experiência multicultural.

                      Isto acontece, de um lado, porque instalam a desconfiança do outro. Não ver o rosto com o qual nos cruzamos, da pessoa com quem falamos, vê-la apenas através de uma máscara, de um disfarce, de uma gaiola, impossibilita a aproximação, aparta as experiências. No mundo actual, com o ascenso do terrorismo islamita, a situação reforça ainda a desconfiança, o medo, a leitura do outro como um perigo potencial. Segrega, em vez de avizinhar, instalando a clivagem em vez da partilha. Instiga o ódio e aponta justamente à destruição do convívio multicultural. Essa é, aliás, a intenção dos islamitas que pretendem impô-lo à força da lei ou da chibata. Mas o uso do niqab e da burka representa também um obstáculo àquela que é, justamente, um dos objectivos da comunhão planetária da diferença: a afirmação de um relacionamento igualitário entre homens e mulheres. Admiti-lo é pois aceitar, legitimar, uma marca de segregação que não vejo em que se possa fundamentalmente distinguir das sinetas dos leprosos medievais, das grilhetas dos escravos africanos ou da estrela amarela pregada pelos nazis nas roupas dos judeus.

                      Trata-se de um sinal de submissão ou de subalternidade, de um factor de imposição violenta da diferença, que contraria os fundamentos capazes de gerirem uma sociedade multicultural ou um planeta que tende cada vez mais a ser partilhado por todos. Por isso, onde for possível fazê-lo, deve ser liminarmente afastado da esfera do público. Tal e qual como os castigos corporais, as formas explícitas de tortura e todas as afrontas aos direitos humanos. Sem «ses» ou «mas» de espécie alguma. Negar esta necessidade, ainda que em nome de uma meta política julgada prioritária, não significa «reconhecer a diferença» em abstracto, «aceitar o outro» como ele supostamente «é», mas sim transigir com uma forma particular de opressão e de barbárie. Ser cúmplice, por omissão, dos processo dos quais se servem as «identidades assassinas» para as quais nos alerta Amin Maalouf. Adversárias juradas – em nome de uma «diferença» artificialmente construída e apoiada na manipulação dos sentimentos religiosos – da convivência multicultural e do secularismo, de um mundo mais igualitário, um pouco mais justo. E mais humano, não há que ter medo da palavra.

                        Atualidade, Cidades, Democracia, Opinião

                        Elementar, meu caro Hugo

                        Hugo Chávez suspeita que Simon Bolívar (nascido em Caracas, Venezuela) não morreu há 180 anos pela influência danosa do bacilo de Koch, tal como ardilosamente contam os livros de história, mas sim envenenado com arsénico, ou então baleado. Para confirmar a tese, mandou exumar «o esqueleto glorioso», como lhe chamou, e reuniu 50 especialistas da Fiscalía General e do Cuerpo Técnico de Policía Judicial. A televisão venezuelana filmou o solene momento e, célere como é seu dever, divulgou-o à escala do planeta. Mas claro que não existe suspeita de crime – elementar, meu caro Hugo – sem que se não pense logo no suspeito. E a primeira pergunta, a eternamente clássica, é… quem lucrou de forma mais óbvia com a morte do «Libertador»? A pessoa está já identificada e desta vez não foi o mordomo: trata-se do general Francisco de Paula Santander, que viu a luz do dia em Villa del Rosario, Colômbia, e enfrentou por diversas vezes os ímpetos belicistas de Bolívar, sucedendo-lhe em nome do sector civilista ao qual este se opusera. Não sei se estão a ver: pegamos na naturalidade dos dois generais, no seu trajecto secante, na crise política actualmente vivida na região, e depois… é só fazer as contas. O historiador venezuelano Elías Pino Iturrieta afirmou a propósito, ao El País, que «não existe o mínimo fundamento científico que justifique este espectáculo nocturno», mas que importa tal princípio face à suspeita e às necessidades do omnisciente coronel? Aguardam-se «conclusões» a condizer.

                        Duas adendas:
                        – Tudo isto se passou no dia 16 de Julho. Ontem mesmo na Wikipédia em português era já possível ler: «Pelo que se descobriu após uma autópsia de Simon Bolívar, sua verdadeira morte foi causada por um envenenamento na digestão da água, que possuíam altas doses de arsénio.» O artigo da versão em inglês não fala disto.
                        – Para quem se interesse por estes pormenores: Santander caiu gravemente doente e morreu de causa não esclarecida em 6 de Maio de 1840, no próprio dia em que fez o discurso de aceitação da sua recandidatura à presidência de Nova-Granada (futura Colômbia). Durante a autópsia encontraram-lhe ainda duas marcas de bala e uma de lança.

                          Atualidade, História, Olhares

                          Memória de um coxo

                          sapatos

                          Nas últimas noites tenho encerrado a jornada lendo algumas páginas da colectânea de crónicas de Manuel António Pina que acaba de sair (Por outras palavras, edição da Modo de Ler). A maioria delas já eu tinha lido, no exacto lugar ao qual foram originalmente destinadas. Sou, aliás, leitor contumaz de tudo aquilo que o escritor escreve, sempre na tentativa gorada de encontrar uma palavra, um juízo, uma atitude que me desgoste, que ache deslocada, ou da qual me sinta suficientemente distanciado para poder testar a vontade física, que mantenho desde que me conheço e já me apontaram (provavelmente com razão) como doentia, de descobrir defeitos na perfeição. Será, por isso, escusado dizer que recomendo, e muito, estas trezentas e tal páginas, garantindo que, se sinto os olhos a fecharem ao fim de uma dúzia delas, é só porque geralmente já passa das três da manhã.

                          Este post não é, porém, sobre o livro de Manuel António Pina. É sobre uma sua evocação, nele contida, que me tocou de repente a memória. Lembra Pina, numa crónica de 2003, a propósito de um encontro breve mas inesquecível com o poeta Ruy Belo, uma manifestação estudantil na Baixa do Porto «contra a Queima das Fitas». Não sei o que pensará hoje a maioria dos estudantes universitários de tal evocação e da importância que ela teve para um certo padrão de resistência ao velho Estado Novo. Admito que seja algo de estranho. Como alguém contar que um dia vibrou com os golos de Figueiredo ou que a sua primeira erecção oficial foi instigada por um fotograma de Silvana Mangano em Riso Amaro. Mas posso garantir que não se trata de sinal de confusão da memória: participei em Maio de 1972, mais a sul, numa manifestação contra uma tentativa de reposição da Queima das Fitas por parte de uns quantos cidadãos próximos da direita extrema. Como poderia esquecer-me se nessa tarde, ao fugir da polícia que carregava sobre os estudantes, perdi um sapato e tive de regressar a casa por becos ínvios, procurando esconder o melhor que podia aquela propensão súbita para coxear um pouco?

                            Memória

                            Aqui há fantasmas

                            Fantasma

                            Não diria que a profissão de ghost-writer é a mais velha do mundo. Parece que essa é outra. Mas será, com toda a certeza, uma das mais antigas: sabemos muitas vezes quem mandou gravar as tabuinhas sumérias, mas jamais conheceremos o nome dos pobres escribas que as produziram. Posso estar enganado, mas por muito ligada a uma genealogia longeva que esta actividade se encontre, ela parece-me particularmente deprimente. Dar forma, ainda que por uma soma razoável, a textos dos quais outros passam por autores, não será com toda a certeza uma experiência apaixonante e boa para a auto-estima. Sabendo, para mais, que muitas das pessoas a quem esse trabalho serve – futebolistas e actores famosos, treinadores da moda, políticos ou jornalistas de renome, cozinheiros consagrados, antigos espiões, gigolôs e socialites com muita lábia, esposas traídas ou ex-amantes com sentido de oportunidade – jamais teriam o engenho e a arte suficientes para assinarem um volume legível com mais de cinquenta páginas de memórias ou revelações ruidosas.

                            Trata-se, no entanto, de uma actividade legítima, e é a ela que, a propósito do novo filme de Roman Polanski, o quinzenário JL dedica o pequeno dossiê que vem com o número chegado hoje às bancas. Por momentos animei-me e comprei um exemplar, julgando que ali pudesse ser abordado também – penso que tal seria uma obrigação de um jornal «de Letras, Artes e Ideias» com responsabilidade cívica e cultural um lado bem menos lícito, e claramente imoral, dessa actividade que tem vindo visivelmente a crescer. Refiro-me àquele protagonizado pelos escritores-fantasma que compõem romances inteiros ao mesmo tempo que vendem a alma a supostos fazedores de «best-sellers», figuras ufanas na sua condição de «escritores» que nunca o foram. Ou, pelo menos, nunca o foram «daquela» maneira exibida e laureada. Não pedia rostos, não esperava por nomes, não queria que mencionassem casos – sei que, quando há muito dinheiro envolvido, a lei, não necessariamente justa, é sempre mais célere, e além disso não será fácil nestes casos obter provas – mas parecia-me devida a mera menção, num tema como este e que ali se pretendia inventariar, deste triste prodígio contemporâneo. Fui ingénuo: o assunto permanece tabu e o JL não gosta, como nunca gostou, de parecer inconveniente.

                              Olhares, Opinião

                              Um preço a pagar

                              yes no

                              Publicado originalmente, por convite, no Delito de Opinião

                              A palavra vilipêndio quase desapareceu do nosso vocabulário. Chegou do latim vilipendĕre, composto de vilis, vil, e de pendĕre, considerar, estimar. Exprime uma atitude de menosprezo em relação a alguém. Quando tornada pública, deprecia a pessoa a quem se aplica. Não se limita a expor divergências, a contrariar opiniões: aplica-se ad hominem, contra a pessoa, servindo-se discricionariamente das palavras ou dos juízos que a possam diminuir perante os outros. Neste caminho, o vilipêndio é insulto e difamação, pois não existe qualquer intenção argumentativa. O objectivo é um só: apoucar, amesquinhar, retirar ao outro qualquer estatuto de dignidade. No limite, procurar que este perca todo o crédito, de modo a que se torne fácil isolá-lo, silenciá-lo, escondê-lo, fazendo com que muitas pessoas, honestas mas desavisadas, se recusem a lê-lo ou a ouvi-lo. «Ah, aquele tipo! Um sacana!».

                              Não se trata de uma prática recente, obviamente, mas ganhou maior destaque social a partir de Oitocentos. Associada à explosão da imprensa periódica pôde então ampliar o seu efeito, servindo muitas vezes para arruinar carreiras, motivar processos judiciais, forçar duelos com um final pouco feliz. O novo meio ajudou aliás a «impessoalizar» o vilipêndio, uma vez que o seu autor passou actuar por detrás de uma cortina, ou de uma almofada, fornecida pela publicação que acolhia os ataques pessoais. Já no século XX, os servidores dos sistemas totalitários e os sectores políticos que se presumiam detentores da verdade, fosse ela «histórica» ou «científica», recorreram de um modo sistemático a este processo, apoiados na impunidade que os sistemas lhes ofereciam e na impossibilidade de exercício do contraditório.

                              Na antiga União Soviética, o método foi aperfeiçoado e usado de forma contínua a partir do final da década de 1920, fundando-se nele o processo de diabolização e de apagamento de figuras que tinham sido determinantes na própria construção do poder bolchevique, como Trotsky, Radek, Zinoviev, Kamenev ou Bukarine. No Portugal de Salazar como no Chile de Pinochet, qualquer opositor era «comunista». Na Cuba do presente todo o acusado de dissídio é publicamente rotulado de «agente da CIA» ou, no mínimo, de «anti-social». E mesmo na Europa democrática o método foi recorrentemente aplicado na tentativa de isolamento e diminuição de figuras num dado momento consideradas pouco ortodoxas, como Léon Blum, George Orwell, Albert Camus, Hannah Arendt e Raymond Aron, cuja «lenda negra» ainda hoje perdura em alguns ambientes, tal o volume, a constância e o impacto das injúrias e manipulações das quais foram objecto.

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                                Cibercultura, Democracia, Opinião

                                Os espectros não gostam de luz

                                Em Kampala, duas explosões – num restaurante e num clube desportivo cheios de pessoas que queriam ver a transmissão da final do Mundial de futebol – fizeram 74 mortos e mais de 50 feridos. Os ataques foram da responsabilidade do grupo radical islâmico Al-Shabaab, próximo da Al-Qaeda, que proíbe a música, a dança e a prática desportiva aos seus membros. Como crê ser seu imperativo, quer matar para castigar e tomar o poder, e quer tomar o poder para castigar em todos os espaços que for capaz de controlar. Um dia, esperam os seus membros, para em conjunto com os seus irmãos na fé, fazer regressar o mundo inteiro ao tempo de Trevas que todas as religiões do Livro, e a religião deles também – na sua ignorância, nem isso, tão pouco, eles sabem –, colocam nos primórdios da Criação que pôs fim ao Caos. Ou seja, na emergência do que afiançam ser a intervenção divina no mundo. «Es werde Licht, und es war Licht!», «Faça-se Luz, e fez-se Luz!», são as conhecidas palavras com as quais Haydn abre, triunfal, o oratório Die Schöpfung (A Criação). Música «divina» que estes perigosos infelizes jamais ouvirão, e que, do fundo das suas tripas, se os deixassem, gostariam de apagar para todo o sempre. Ficando a falar sozinhos com os espectros, as sombras da Morte, que procuram imitar.

                                Haydn, A Criação – William Christie e Les Arts Florissants
                                [atenção particularmente ao 1’21”]

                                [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=Q5RHDwdaanQ[/youtube]
                                  Atualidade, Democracia

                                  A maior infelicidade

                                  vazio

                                  O autor de La Chute escreveu certa vez, em carta ao amigo Guy Dumur, que a suprema infelicidade não está em não sermos amados, mas sim em não amar. Em francês talvez soe melhor, se bem que de forma não menos dramática: «le plus grand malheur n’est pas de ne pas être aimé, mais de ne pas aimer.» Parece um paradoxo, mas percebemos que o não é quando admitimos que só quem construa expectativas pode também esperar. Ninguém incapaz de dar, de procurar, de crer mesmo sem ver, pode acolher o amor dos outros. E todos os dias conhecerá a infelicidade.

                                    Apontamentos, Olhares