O romance (e a realidade) do retorno

De regresso à perceção partilhada por muitos, menos pelos mais austeros taxionomistas do género literário, de que todo o romance é autobiográfico. Mas sem querer desviar a conversa, talvez se possa dizer também que todo processo de leitura de um romance confronta aqui ou além a biografia de quem com cuidado o vai lendo. Uma vez mais, é isto que acontece com O Retorno, o grande romance de Dulce Maria Cardoso (n. 1964) que a Tinta-da-China acaba de publicar. E o que se passa também com a forma como o fui seguindo. Vamos por partes.

Dulce Maria CardosoA autora foi, é, e já vai sendo tempo de não ter medo de usar a palavra que ainda há menos de vinte anos era uma mancha infamante para quem a arrastava, uma retornada de Angola. Fala bastante neste seu quarto romance dessa experiência, difícil e dolorosa nem será preciso dizê-lo – ou talvez seja –, como deixa claro na longa entrevista que deu à revista LER de Outubro. Conta também aí, sem rodeios, como esse lado da vida pessoal confluiu abertamente com o processo de inventiva e de escrita do livro agora publicado. Rui, o narrador, é a outra face, masculina por artifício, da escritora. Se todo o trabalho de escrita romanesca supõe, como é sabido, estudo, caminhada e engenho criativo, encontra-se aqui também, visivelmente, um trabalho tenaz de rememoração. Da vida africana que ficou para trás, sem dúvida, mas principalmente do trajeto longo, incompreendido, guetizado, daqueles que regressaram – muitos sem jamais terem saído de África antes da ponte aérea – para longos anos de silêncio, apagamento, humilhação, pesadelos e luta pela vida. A saga africana e lusíada dos seiscentos milhares de retornados, iniciada nos anos passados no outro hemisfério, não pode ser mantida na penumbra, os seus protagonistas não podem riscar o passado de lá e de cá, e livros como este de Dulce Maria Cardoso ajudam-nos a cumprir a tarefa ingente e urgente da reexposição à luz. Pois só quando esta estiver concluída, os naturais de Portugal, e os dos estados africanos com quem Portugal partilhou parte substancial da sua história, poderão viver sem o peso da incompreensão, do remorso e, o mais difícil de perder, do ressentimento.

O RetornoE agora a parte do leitor que se sentiu um pouco biografado. Saibam que nestas linhas estou aparentemente do lado dos maus: «Os soldados portugueses já quase não passam por aqui e os poucos que vemos têm os cabelos compridos e as fardas desleixadas, os botões das camisas desapertados e os atacadores das botas por atar. Derrapam os jipes nas curvas e bebem Cucas como se estivessem de férias. Para o pai os soldados portugueses são uns traidores reles (…).» Percorri a alta velocidade a Luanda sobreaquecida de 75, acompanhando como militar a transferência de poder e a partida desordenada de muitos colonos brancos, em parte empurrados pelo medo e pelo desentendimento da mudança, em parte pelo que pensavam ser (ou era de facto) a ausência de alternativas para a fantasiada utopia na qual habitavam. Vistoriei-lhes as malas, os contentores, levei crianças de colo ao avião, passei-lhes pelas casas abandonadas com camas, toalhas e fotografias de família devassadas, fumei sentado nos seus sofás, servi-me sem medo dos seus automóveis deixados ao abandono. Depois, na metrópole, fui ainda dos muitos portugueses – tantos deles anticolonialistas de última hora – para quem aquelas pessoas não passavam de figuras um tanto exóticas, difíceis de entender, e que era melhor não olhar de frente. Com quem era até preferível não conversar porque tresandavam a antigamente e falavam do que não importava falar. Gente cujo passado colonial deveria ser depurado de um crime indizível que de tão escabroso e indesculpável não merecia ser sequer apreciado. E cujos traços, marcas, experiências, deveriam ser definitivamente apagados. Mas não o foram e agora estão aqui, num rumor, pendurados nas nossas mãos. Contrariando os versos da cubana Dulce María Loynaz que esta outra Dulce Maria destaca na página final: «Las cosas que se mueren/no se deben tocar».

Dulce Maria Cardoso, O Retorno. Tinta-da-China. 272 págs.

    História, Memória, Olhares

    O rapaz da maçã

    Steve Jobs

    Steve Paul Jobs (1955-2011). Para o bem (e para o mal, como sempre), deixou uma marca profunda, com toda a certeza duradoura, nas nossas vidas partilhadas. «Ser o homem mais rico do cemitério não me interessa», disse certa vez, «ir para a cama à noite a pensar ‘hoje fizemos algo de maravilhoso’ é que é importante para mim.» Foram poucos aqueles que puderam gabar-se de o terem feito tantas vezes antes de gastarem o seu crédito de vida.

      Apontamentos, Etc.

      Um Deus consentido

      L'homme

      No primeiro de novembro de 1954, Camus escreveu no seu caderno diário: «Leio frequentes vezes que sou ateu, oiço falar muito do meu ateísmo. Ora essas palavras nada me dizem, não têm qualquer sentido para mim. Não acredito em Deus e não sou ateu.» Uma forma íntima, e suficientemente simples, de insistir na abordagem de Deus, traduzida na decisão de não considerar o problema da sua existência como tema que mereça sequer grande atenção. Em A Peste, quando é perguntado ao Dr. Bernard Rieux se acredita em Deus, este responde com outra pergunta: «Não. Mas o que é que isso quer dizer?». Dito de outra maneira: a resposta a essa dúvida interessará a alguém? A aproximação mais completa ao tema surge, no entanto, em O Homem Revoltado. Aqui o sujeito em estado de revolta não põe necessariamente em causa a existência de um qualquer ser supremo, mas contesta a sua autoridade, que pensa dever ser aceite apenas com o consentimento unânime dos humanos. Uma religião consentida, um Deus democraticamente adotado, que não seja todo-poderoso, temível e castigador, eis a única medida aceitável do divino.

        Olhares

        Um humanista no verão

        Claudio Magris

        Os cinquenta artigos que compõem a coletânea A História Não Acabou foram quase todos publicados por Claudio Magris no Corriere della Sera entre 1999 e 2006. Ao lembrá-lo quase no final, o escritor sublinha a importância do meio utilizado para a forma tomada pela mensagem, declarando o jornal «um grande ginásio de luta kafkiana com a realidade e um laboratório de linguagem para a contar». Por isso todos esses textos, apesar de curtos e circunstanciais, travam um diálogo permanente, aberto ao leitor comum mas sempre exigente na forma, que materializa a aproximação criteriosa do autor com os acontecimentos que o vão confrontando. Só que, para este, o vínculo não impõe concessões ao fácil ou ao superficial, seja ao nível dos conceitos ou no campo da linguagem, tão comuns, como é sabido, entre os intelectuais que procuram a todo o custo o sucesso mediático. É pois um caminho árduo, mas por isso mesmo imprevisível e enriquecedor, o escolhido aqui para falar de muitas das feridas do presente e das opções que este nos vai fatalmente impondo. ler mais deste artigo

          Olhares

          Tintim no Congo e a dentada na maçã

          Tintim no Congo

          Discordo em absoluto da tentativa de proibição a decorrer na Bélgica de Tintim no Congo, o segundo livro de banda desenhada de Hergé. O motivo invocado é a perspetiva, próxima dos estereótipos eurocêntricos e racistas da África e dos seus naturais não-caucasianos, que em 1931, quando o álbum foi editado pela primeira vez, dominava a maior parte do hemisfério norte. Sob este aspeto, o livro incomoda, sem dúvida, mas não menos que milhares de outros, fáceis de encontrar em bibliotecas e livrarias, contendo representações e ideias que podemos abominar mas não devemos apagar, pois fazem parte do património coletivo e servem até para mostrar, por oposição, aquilo que consideramos detestável e merece, muitas vezes, ser conhecido para ser lido criticamente. Neste caso, aliás, o próprio Hergé (1907-1983) veio a reconhecer que na altura da criação da aventura congolesa do jovem repórter belga, tal como acontecera com o também polémico Tintim no País dos Sovietes, vivia num ambiente no qual o preconceito e a recusa da diferença eram a norma: «Era 1930. Conhecia desse país apenas o que as pessoas contavam na época: ‘os negros são grandes crianças, felizmente estamos lá!’, etc. E desenhei os africanos de acordo com esses critérios, de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica». ler mais deste artigo

            Democracia, Memória

            Na ponta da língua

            língua

            Quase a consumarem-se cinco semanas (e meia) passadas sobre a adoção por este blogue do último Acordo Ortográfico da portuguesa língua. Agora por mim usado também na escrita praticada lá fora. Hesitei um pedaço antes de me decidir, condicionado por algumas dúvidas e atavismos. Forcei-me de certo modo a fazê-lo, empurrado em parte por determinados deveres. A verdade é essa e na altura tudo ficou explicado. O que posso dizer agora, após este tempo de ginástica e aprendizagem, é que me custou muito menos dar o salto do que inicialmente supunha. De facto (sim, com c), até me tem dado algum prazer renovar a escrita e perceber, e sentir, e fruir, o modo como a distância entre ela e a fala se encurtou e tornou até mais natural. Só me custa ainda, e provavelmente continuará a custar um tanto, escrever com minúscula o nome dos meses e das estações do ano. Coisa pouca, afinal. Menos que apanhar uma vacina.

              Apontamentos, Etc., Oficina

              Os caminhos do extermínio

              Daniel J. Goldhagen

              O título do livro explica-se de forma simples, embora brutal: estima-se que ao longo dos últimos cem anos cerca de 150 milhões de pessoas foram vítimas de iniciativas persistentes de extermínio, responsáveis, no seu conjunto, pela duplicação do número de mortos em combate contabilizados em todas as guerras que tiveram lugar no mesmo período. A tese central de Daniel J. Goldhagen apoia-se nesta contabilidade avassaladora para mostrar que ela não dependeu de acasos, de circunstâncias, ou da iniciativa isolada de dirigentes transfigurados em serial killers, mas antes de escolhas políticas apoiadas num razoável ou mesmo num amplo consenso social. A ideia já se encontrava, aliás, presente numa obra anterior deste cientista político americano, motivo pelo qual foi objeto de feroz crítica: em Hitler’s Willing Executioners, saída em 1996, considerava que a busca da Solução Final determinada pelos nazis apenas fora possível com a cumplicidade, ou pelo menos a complacência, das pessoas comuns, alemães e aliados de outras nacionalidades, sem os quais os burocratas e os destacamentos especiais do Terceiro Reich não poderiam ter levado a cabo de modo tão eficaz o seu trabalho sujo. A obra foi, aliás, criticada por historiadores como Norman Finkelstein, que acusou o seu autor – sendo ambos, acusador e acusado, filhos de sobreviventes do Holocausto – de justificar com a sua explicação a criação de uma «indústria do Holocausto» de orientação sionista. ler mais deste artigo

                Atualidade, História, Olhares

                Os prémios e os melhores

                A caminhoA decisão de anular, numa altura em que estavam já marcadas e anunciadas, as entregas dos prémios de 500 euros destinados aos dois melhores alunos de cada escola secundária pública, é, obviamente, uma vergonha e um ato de maldade pura. Atirou para o lixo as expectativas dos jovens premiados, muitos deles com dificuldades económicas, e deu-lhes um mau sinal sobre a forma como o Estado deve ser (ou não deve ser) considerado «pessoa de bem». Ensina-se assim o cidadão de amanhã a não confiar em ninguém. Desde logo, e em primeiro lugar, em quem dirige a coisa pública. Algumas das escolas, tentando minorar a deceção dos seus alunos mais esforçados, estão agora à procura de entidades privadas que possam, a troco de alguma publicidade, ajudar a reduzir um pouco os danos.

                O caso vem trazer para primeiro plano um problema, periodicamente debatido, sobre o qual existem posições divergentes, transversais até na relação com o mapa político e partidário. A saber: justifica-se ou não a existência de prémios destinados a laurear os melhores alunos? Algum pensamento devoto do ensino «centrado no aluno» – já malevolamente cunhado de «eduquês» – considera que não, entendendo ser apenas necessário criar condições para que todos se sintam motivados. No dia ideal em que tal acontecer, só não terá boas notas quem não quiser ou for mesmo burrinho. Numa área à gauche, mais voltada para a «criação das condições objetivas», pensa-se que a atribuição de prémios contraria o igualitarismo, amplia os contrastes sociais e coloca sobre os ombros dos jovens uma responsabilidade que deve caber ao Estado. À direita, os prémios são muitas vezes defendidos, mas como instrumento de gradual composição de um escol, de uma meritocracia, que assenta na definição de uma elite de futuros «mandantes» com lugar de destaque numa sociedade devidamente ordenada. Na qual é suposto mandar quem sabe (e pode) e obedecer quem deve. ler mais deste artigo

                  Atualidade, Olhares, Opinião

                  Snobismo (ou Aimez-vous a Nona Sinfonia?)

                  Slavoj Žižek

                  Se não fosse o facto de ser uma citação de outrem, o parágrafo que vou transcrever poderia deixar no ar uma falsa (mas justificada) sensação de lamentável arrogância. Não que, contrariando a proclamação de Boris Vian, tenha alguma coisa contra a nobre arte do snobismo, mas nem sempre é prático dizermos de forma clara e um tanto ostensiva aquilo que realmente pensamos. Copio então um passo de Viver no Fim dos Tempos, de Slavoj Žižek (ed. Relógio d’Água).

                  A única prova do gosto está no facto de uma pessoa saber como apreciar ocasionalmente coisas que não correspondem aos critérios do bom gosto – em contrapartida, quem segue demasiado estritamente os critérios de bom gosto, limita-se a exibir a sua completa falta de gosto. (Analogamente, alguém que exprime a sua admiração pela Nona Sinfonia de Beethoven ou outra obra-prima da civilização ocidental denuncia no mesmo momento a sua ausência de gosto – o verdadeiro gosto exibe-se elogiando uma peça menor de Beethoven como superior aos seus «maiores êxitos».)

                  A aceitação universal deste princípio impõe todavia algumas ressalvas. Assim, o estilhaçamento do cânone ocidental em plena modernidade líquida, levando a uma reavaliação do que em tempos foi entendido como secundário, menor, descartável, permite reconsiderar a noção de bom gosto, ou de gosto original, aplicada a uma obra ou a um objeto. Retomando o exemplo do músico alemão nascido em Bona: num grupo de cem pessoas incapazes de reconhecerem os cinco primeiros compassos da sua Quinta Sinfonia – e, acreditem, atualmente não é difícil encontrá-las – a simples enunciação da peça perde o efeito kitsch que lhe é associado em alguns meios, podendo a sua reprodução tornar-se até um momento de deleite e de treino… do gosto. Aliás, a requalificação do próprio kitsch permite tomá-lo com um prazer legítimo e, em algumas circunstâncias, «bom» até. Provavelmente, o melhor será então não sermos preconceituosos e aceitarmos a relatividade das noções e das formas de gostar de alguma coisa. Provavelmente. Mas por vezes é um tanto difícil consegui-lo. Maldito snobismo.

                    Apontamentos

                    Cascais’71

                    Cascais 71

                    Em novembro de 1971, o primeiro Festival de Jazz de Cascais («Newport na Europa») reuniu num programa excecional a nata da cena jazística mundial. Se for apreciador do género, para o confirmar basta que leia com atenção todas as linhas do cartaz acima reproduzido. No qual faltam aliás nomes também presentes mas que começavam apenas a carreira e por isso não eram destacados, como o contrabaixista Charlie Haden, a acompanhar então Ornette Coleman, e o pianista (na época apenas elétrico) Keith Jarrett, que tocava com um bastante irascível Miles Davis. Estive por lá, sim, comendo o pó de cimento de um pavilhão ainda em obras e bebendo cervejas estupidamente chocas. Mas, acima de tudo, encaixando momentos de beleza e exaltação cujos ecos continuam, garanto, a reverberar.

                    Obrigado à A.S. por se ter lembrado de me avivar a memória quando deu de caras com isto.

                      Etc., Memória, Música

                      Syd (e os outros Floyd)

                      Syd Barrett

                      Tentando contrariar um injusto apagamento. A propósito da recente edição remasterizada da discografia dos Pink Floyd, revistas e suplementos alinham sínteses do trajeto de uma das bandas da música popular anglo-saxónica que mais venderam (e vendem), e que maior capacidade tiveram de conservar uma admiração que atravessa gerações. É fácil hoje encontrar homens de sessenta anos, trintões desgastados ou putos de doze que gostam dos Floyd, conhecem de memória uns quantos temas, e um dia tiveram, contra a vontade das mães, um poster deles numa parede do quarto. Em particular entre os que recordam a fase inaugurada com Dark Side of The Moon (1973), mais melódica e com maior impacto comercial, que é também a menos interessante. Os artigos da imprensa têm pois alinhado fotografias de Waters, Gilmour, Mason e Wright, não se esquecendo de evocar a dimensão dos megaconcertos e de contabilizar a magnitude das vendas. Só que tem sido praticamente ignorado o rico período criativo de 1964 a 1968, claramente menos previsível e dominado pela presença inovadora do guitarrista, vocalista e compositor Syd Barrett.

                      Foram dele, de facto, os dois primeiros álbuns dos Floyd (The Piper At The Gates of Dawn e A Saucerful of Secrets), e foi ainda debaixo da influência psicadélica e ácida da sua música que foram compostos, já em 1969, os seguintes More e Ummagumma. Todavia, no ano anterior, enquanto a banda se tornava cada vez mais popular, a vida de estrada, o consumo de LSD e a propensão para a depressão tinham transtornado rapidamente o comportamento de Barrett, cada vez mais estranho e incapaz de comunicar com os companheiros e com o público que se juntava para os ouvir. Os restantes membros da banda decidiram então não levar mais Syd consigo para os concertos, substituindo-o por David Gilmour, principal responsável pela sonoridade açucarada de lead guitar que os Pink Floyd adotaram a partir dessa altura e que para as multidões se tornou aquela que reconhecem. Quanto a Syd, ainda editará em 1970 dois interessantes álbuns a solo (The Madcap Laughs e Barrett), afundando-se depois, apesar de pontualmente recordado por alguns dos sobreviventes da época, numa vida de apagamento, reclusão e doença. Morreu em Julho de 2006. Poucas semanas antes fora visto a deambular sozinho pelas ruas próximas da sua casa em Cambridge.

                      [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=LNbcbh2JH_I[/youtube]
                        Apontamentos, Biografias, Memória, Música

                        Lembrando Kurt

                        Kurt Sanderling

                        Sei que não saiu nas primeiras páginas nem se falou nos telejornais da morte a 18 de setembro, um dia antes de completar os 99, do maestro Kurt Sanderling (1912-2011). Alemão, nascido em Arys, hoje uma cidade polaca, judeu filho de judeus, fugiu dos nazis em 1936 e viveu cerca de trinta anos na União Soviética, onde após um estágio profissional em Novosibirsk, na Sibéria, veio a dirigir a Orquestra Sinfónica da Rádio Moscovo e a Filarmónica de Leninegrado. De regresso à Alemanha no início dos anos sessenta, foi maestro principal na Sinfónica de Berlim (a arquirrival da ocidental Filarmónica, de Karajan) e na Dresden Staatskapelle, mudando-se depois para Londres onde durante muitos anos dirigiu a Orchestra Philarmonia. Trabalhou também, mais episodicamente, nos Estados Unidos, no Japão, em Espanha e noutros países europeus, abandonando a profissão apenas aos 90 anos. Do património sonoro que nos deixou, um destaque para grandes interpretações de Beethoven, Brahms, Schumann, Mahler, Bruckner, Sibelius e Chostakovitch, tendo aliás sido amigo e confidente deste. Foi justamente graças a Sanderling que aprendi a gostar dos dois últimos, os grandes compositores do século XX que me ajudaram a olhar o Grande Norte e a Rússia soviética de uma maneira talvez menos incompleta. Terá sem dúvida sido por isso – e porque guardo ainda algumas gravações históricas – que a curta notícia do seu passamento não me passou despercebida. Nem me foi indiferente.

                        Vídeo: 3º Andamento da Sinfonia No. 5 de Jean Sibelius. Com a Orquestra Sinfónica de Berlim em 1976.

                        [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=fmEc8KL59FI[/youtube]
                          Apontamentos, Artes, Biografias, Música

                          Viagens perfeitas

                          No comboio

                          Ainda sobre a beleza dos comboios e da corrente de vida, de ar e de calor que a partir deles é possível desfrutar, recorto um fragmento da crónica de Antonio Muñoz Molina («Apunte de Alemania») publicada no suplemento Babelia deste sábado. Traduzido livremente.

                          Há lugares perfeitos. Há via­gens perfeitas. A viagem de comboio numa manhã de domingo entre Hanôver e Munique, por exemplo. Es­tá nublado e ténues grinaldas de nevoeiro flutuam sobre os prados ou sobre as encostas com grandes bosques de coníferas. O único defeito que encontro na maior parte das viagens de comboio nestes tempos é que duram muito pouco. O comboio de Hanôver para Munique é bastante bom, é ótimo, confortável e rápi­do, silencioso também, e mais ainda nesta manhã na qual por ser dia de festa há menos viajantes. Não é um comboio de alta velocidade, sem dúvida, nem faz falta alguma que o seja. É um comboio perfeito. A luz do dia nublado torna ainda mais acolhedor o interior das carruagens. Quase todos os passageiros vão a ler os seus pesados jornais de domingo. Um dos muitos inconvenientes de não saber alemão é não poder desfrutar gulosamente dessas páginas tão amplas mas para as quais, ao mesmo tempo, tanto parece importar a palavra escrita. O rumor das páginas dos jornais vai dando ao silêncio do interior do comboio uma qualidade de atmosfera de biblioteca. O movimento é tão regular que me permite tirar tranquilamente apontamentos num caderno. Demasiadas tentações que é preciso desfrutar de maneira simultânea, para não prescindir de nenhuma: observar os prados e os bosques, os rios de curso opulento e tão calmo que refletem nitidamente na sua superfície as árvores das margens e as nuvens passageiras, as aldeias de telhados angulosos muitas vezes cobertos de painéis solares, as agulhas de ardósia das igrejas, as fábricas que imagino de produtos supertecnologicos mas que não ofendem a paisagem. E ainda a leitura, sem tirar os olhos do livro que me tem acompanhado nestas idas e vindas desde que saí de Madrid.

                            Apontamentos, Olhares, Recortes

                            Marcas geracionais

                            Essa do «disco que marca uma geração» tem que se lhe diga. Como o próprio conceito de geração, que pode ser útil quando se olha o tempo de uma certa distância mas tem o inconveniente de fabricar generalizações, diluindo experiências singulares, caminhos que foram ínvios, vozes que fizeram o seu percurso em ziguezague. As referências que identificam a geração são, pois, flutuantes e de significado muito relativo, tendo só valor de referência. E muitas vezes a referência de uma geração representa algo de muito diferente para a seguinte. Um bom exemplo disto foi dado agora pela  evocação planetária, de forte teor nostálgico, do concerto ao vivo que resultou do reencontro de Paul Simon e Art Garfunkel no Central Park de Nova Iorque, ocorrido em 19 setembro de 1981. Lembro-me bem, muito bem mesmo, desse concerto, que vi pela televisão como tantos milhões de pessoas, para além das 500.000 que o viveram no local, e do enorme enfado que na altura me provocou. Nessa tarde a anoitecer, ouvindo versões um tanto espaventosas e já com um brilho algo artificial das canções sentimentais ou rebeldes que amara quinze anos antes – como «Mrs. Robinson», «America», «The Sounds of Silence» ou «50 Ways To Leave Your Lover» – percebi que a página de Simon and Garfunkel tinha sido voltada e que estava agora perante dois simpáticos vestígios dos bons velhos sixties. Que era melhor continuar a olhar à volta em vez de ficar paralisado a imaginar-me «Still Crazy After All These Years».

                            S & G quinze anos antes, em 1966, quando interpretavam «I am a Rock» com outra energia:

                            [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=ealhxti03pk[/youtube]
                              Apontamentos, Memória, Música, Olhares

                              Brinquinho madeirense

                              brinquinho

                              De vez em quando é necessário escrever sobre temas que nada trazem de novo, que apenas relembram verdades conhecidas, limitando-se a dizer o óbvio e a fazer ecoar o que já todos sabem. Este post vai ser assim, pois vai falar da Madeira e de Alberto João Jardim, assunto sobre o qual já se disse e já se escreveu tanto que se tornou real e virtualmente impossível inovar grande coisa. Além disso, episódio algum pode surpreender e criar uma situação sobre a qual poderemos lançar um novo olhar, pois nada do que possa ocorrer espantará quem não tenha acordado agora de um coma prolongado ou chegado de uma estadia em Marte.

                              Li e concordo parcialmente com um post do Daniel Oliveira saído no Arrastão («Responsabilizar criminalmente Jardim pela dívida é desresponsabilizar a democracia»). Penso também que a situação madeirense não é da responsabilidade única da clique partidária instalada na ilha ou dos seus mansos patronos (e patrocinadores) de Lisboa, implicando igualmente uma legitimidade democrática que corresponsabiliza a larga maioria do eleitorado regional. Aceito ainda que em determinadas circunstâncias – e muito em particular nas atuais – reeleger o arruaceiro da Quinta Vigia converte os eleitores da Madeira em «cúmplices de um crime.» Que face aos dados esmagadores dos quais dispomos agora, confirmar nas urnas a continuidade do primeiro responsável pela prática continuada de um crime público altamente doloso é partilhar com ele a responsabilidade pelos seus atos e pelas pesadas consequências que transportam consigo.

                              Só que, em parte porque conheço razoavelmente a Madeira e observo os madeirenses para além do que o fazem os continentais-«cubanos» vulgares de Lineu – nos últimos trinta anos, por razões familiares, tenho conservado uma intensa ligação à ilha que me permite ter dela e dos seus habitantes uma mais completa perspetiva de insider –, tenho uma perceção particularmente aguda do modo como as condições objetivas em que decorre a vida social e política do arquipélago impossibilitam a compreensão, pela larga maioria dos seus moradores, desse grau de gravidade e de cumplicidade. As razões são múltiplas e por isso limito-me a anotar as mais óbvias. ler mais deste artigo

                                Atualidade, Opinião

                                Frases inquietantes (5)

                                O cowboy

                                «Ontem eu reparava no sorriso das vacas, estavam satisfeitíssimas olhando para o pasto que começava a ficar verdejante.» (Aníbal Cavaco Silva, em Santa Cruz da Graciosa, Açores, 21 de Outubro de 2011)

                                «Fiquei surpreendidíssimo por ver como as vacas avançavam, uma atrás das outras, se encostavam ao robô, e se sentiam deliciadas, enquanto ele, durante cerca de seis, sete, minutos, realizava a ordenha.» (Idem na Agromancelos, Amarante, 3 de Novembro de 2008)

                                  Atualidade, Recortes

                                  Vapor

                                  [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=qmJdCpEPIWs[/youtube]

                                  Reconheço poucas experiências percorridas pelas quais sinta efetiva nostalgia. Aborrece-me andar às voltas e reviravoltas com o meu próprio passado, tentando reaver o irrecuperável, reencontrar a memória dos que se dissolveram ou transformaram noutras pessoas. Uso-o apenas como depósito ou armário de bibelôs, aos quais faço visitas espaçadas e esquivas. Apesar de ter mais tempo de vida vivida do que aquele que pressinto pela frente, não me apetece repetir-lhe os passos. Acontece-me muito mais, isso sim, deixar-me seduzir por épocas que não conheci, por espaços que não habitei, atravessados por causas nas quais gostaria de ter acreditado e pelas quais teria até (é fácil dizê-lo agora) sido capaz de dar a vida. Regresso então a catedrais de arquitetura desconhecida e a pessoas que nunca vi mas julgo conhecer.

                                  Existem, no entanto, exceções que procuro conservar. Uma das mais caras tem a ver com a memória persistente dos velhos comboios a vapor, nos quais, levado pelos adultos, ainda cheguei a viajar. Entre fumos e faúlhas, longos e obsidiantes silvos, intermináveis chiadeiras das engrenagens, cestos de vime com farnéis odoríferos, homens de chapéu e jaqueta espreitando das janelas da 3ª classe, matronas em traje dominical, longas e sonolentas esperas para o reabastecimento. Eram máquinas demasiado barulhentas que queimavam, sujavam, pintalgavam, poluíam, oscilando sobre carris estreitos e oleosos. Das quais sinto agora a falta porque me pareciam bonitas e inspiradoras. Porque me transportavam em inevitável devaneio, e ainda o fazem em reflexos, até um Faroeste infinito e a mil aventuras nas estepes da Ásia central.

                                  Vídeo: Last Train Home (Railway Version), com o Pat Metheny Group.

                                    Devaneios, Memória, Música, Olhares

                                    O mundo compósito de M. M.

                                    Marshall McLuhan

                                    Na crónica saída ontem no suplemento Atual, Pedro Mexia adianta um conjunto de reflexões e de dados sobre a personalidade de Marshall McLuhan (1911-80) que eu desconhecia. Sobre como alguém reconhecido mundialmente, ao longo de décadas, ou pelo menos desde a publicação em 1962 da Galáxia de Gutenberg, como o profeta primevo e maior da tecnologia aplicada à comunicação eletrónica, era na verdade um homem «antigo, conservador, católico devoto, puritano, distante». Conheço de alguma forma este tipo de mal-entendido, determinado por quem tem dificuldade em aceitar a complexidade do humano, das escolhas e das formas de vida combinadas de um modo não linear ou imprevisível. Cedo comecei a interessar-me por computadores e pela sua interação em rede. Fui pedindo emprestados ou comprando revistas e manuais, fiz alguns cursos (no mais recuado, em 1976, ainda aprendi linguagem Cobol), depois comecei a interagir com outras pessoas, na era pré-Internet, através das chamadas BBS. Por essa altura comprei o primeiro PC, mais tarde um modem lento e ruidoso, uma primeira conta de acesso à Internet (salvo erro, em 1994, com tráfego pago ao bit), depois um portátil, a seguir um primeiro PDA, um scanner manual, e por aí afora, quase sempre penetrando em tecnologia usada apenas por algumas orlas e à qual, por interesse e opção que impunha sacrifícios económicos, lá fui aderindo.

                                    Curiosamente, esta foi, durante perto de duas décadas, uma atitude bastante incompreendida, vista por muitas das pessoas com as quais me ia cruzando, algumas delas até, por estranho que pareça, com conhecimentos desenvolvidos em áreas do saber informático, como uma excentricidade, uma esquisitice praticada com laivos de exibicionismo, uma modernice perigosa, incomodativa ou condenada ao insucesso para a qual nem valeria a pena olhar mais do que três segundos. E no entanto sempre o fiz por curiosidade e interesse, genuíno julgo, pela mudança das coisas. Jamais como forma de rejeição do mundo tátil no qual nascera e crescera. O mundo dos livros em papel, dos recortes de jornais, dos cadernos de Almaço, dos dossiês em cartão pardo, das canetas de aparo, dos lápis de cores, da cola Peligon e da tinta Pelikan, das máquinas de escrever, das caixas de sapatos servindo de ficheiros, do gosto pelos prazeres antigos, associados à escrita, à leitura e a uma aproximação ao conhecimento intemporal que ainda conservo. Contra a imposição do «ou/ou» ou a rejeição do «nem/nem», acredito pois que vale a pena preferir o cumulativo «e/e». Parece-me mais completo e próximo das realidades compósitas e emaranhadas, de transição veloz e sempre problemática, que vamos atravessando na nossa nave tripulada e que McLuhan, do silêncio do seu gabinete escuro e de austera mobília, foi capaz de intuir e de projetar.

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