Monstruosidades

Na mitologia grega, Ortro, o cão bicéfalo, filho da mulher-serpente Equidna e de Tifão, que tinha cabeça de cavalo e comandava os ventos fortes, era irmão do tricéfalo Cérbero, o terrível guardador do Hades, lugar de destino dos mortos. O dono de Ortro era o pastor Gerião, disforme gigante de três cabeças, três corpos, seis asas e seis braços que se apoderou dos bois vermelhos destinados a Hércules. Motivo pelo qual este o matou.

    Apontamentos, Etc.

    Iconoclastia!

    «O Exército Vermelho apoia as Pussy Riot»

    A fotografia que acompanha este post foi tirada em Sófia e documenta uma intervenção estética integrada no movimento global de solidariedade que após a sua prisão, há já cinco meses, tem apoiado as três Pussy Riot e divulgado a intervenção que protagonizam. A introdução da balaclava – o acessório inventado durante a Guerra da Crimeia por umas caridosas senhoras britânicas que é o sinal visual da banda punk moscovita – sobre as cabeças de algumas das figuras de um grupo de soldados do Exército Vermelho representados na estrutura erguida durante o pesadelo do realismo socialista numa praça central da capital búlgara, acentua a dimensão iconoclasta do seu ativismo. E sublinha agora a importância da sua luta pela liberdade. ler mais deste artigo

      Atualidade, Democracia, Opinião

      Quase chuva

      No ar a espiral empurra a brisa, leva-a
      quarenta léguas adentro do Mar Oceano.
      Perto, o silêncio simula a tranquilidade,
      o céu esconde-se, as árvores inquietam-se.
      Um vulto passa vadio, quase a adivinhar
      a chuva que vem como vapor de lavandaria.
      O Oldsmobile de 57 parece nascido ali
      e não ao longe, num subúrbio de Detroit.
      Na marginal deserta os rostos vacilam
      certos da presença ameaçadora dos cães.
      O horizonte ignora a tempestade, inábil,
      tão próxima quanto a sombra que a veste.

        Olhares, Poesia

        Indignação seletiva

        O mesmo jornal Avante! que se aplica, sem um momento de quebra ou desânimo, a vituperar como «terroristas» todos aqueles que na Síria se opõem ao regime de Al-Assad, não tem uma palavra na sua edição online sobre o massacre, ou sequer a dura luta por melhores condições salariais, dos mineiros sul-africanos. Nem sobre a atuação reivindicativa e iconoclasta que culminou com o castigo brutal imposto agora às três Pussy Riot. Nem sobre a campanha de intimidação com a qual o governo angolano está a tentar impedir qualquer surpresa eleitoral.  Para o PCP, um ANC cada vez mais autoritário, a Mãe Rússia, bastião do anti-imperialismo, e o MPLA, «partido do trabalho», ainda não tombaram do altar. Convém tomar nota.

          Apontamentos, Atualidade

          A camisola amarela

          Quando era criança costumava passar o Agosto inteiro na praia da Figueira da Foz. Umas semanas bastante aborrecidas, ocupadas com infinitas horas de vagas e areal, intervaladas de sestas, merendas e sonos noturnos para descansar do excesso de mar, sol e areia. Num certo ano, porém, os meus pais resolveram aproveitar a altura, sem pedirem opinião, para tentarem fazer de mim um desportista, inscrevendo-me por atacado em três cursos de formação. Um ensinava a andar de patins e o objetivo era, naturalmente, prepararem o futuro jogador de hóquei: fui a uma única lição, estatelei-me duas vezes e desisti logo ali. Outro curso ensinava natação mas percebeu-se imediatamente que aquele não era o meu ambiente natural: enquanto as outras crianças começaram a nadar à quarta ou quinta aula, e eu só o consegui, e mal, à décima segunda. ler mais deste artigo

            Apontamentos, Atualidade, Memória

            Subindo, temos

            Paul Celan aos 18

            Estacas com bandeiras
            recrutadas para dar as boas-
            -noites à esquerda
            do leme.

            cardumes de olhos, oceânicos
            por dentro, para sempre
            por sobre
            as baleias
            que nadam até ficar cegas,
            lançam para cima
            os seus últimos males,
            para o que, subindo, temos
            de sondar.

            Paul Celan – De A morte é uma flor. Poemas do espólio
            (Trad. de João Barrento)

              Olhares, Poesia

              O historiador mudo

              Fotografia de Mehmet Kirmizi

              Desde que alguém passou a ocupar parte da vida a reunir e a dar um sentido a fragmentos do passado, expondo-os aos olhos dos outros, existe uma reflexão sobre a função e a condição de quem a essa tarefa se dedica. Numa entrevista publicada em 1997 na Sciences Humaines, Jacques LeGoff falava de três grandes obrigações, que de algum modo interferem nas circunstâncias com as quais o historiador convive: investigar, ensinar e divulgar. O modo de o fazer, ou de o não fazer, é que define os diferentes pontos de vista. Seria fastidioso, e seguramente pouco motivador para a leitura casual e instantânea que se faz no espaço de um blogue, a exposição e o debate das diferentes conceções, tendências ou atitudes que sobre esse papel complexo têm sido produzidas e divulgadas. Mas vale a pena olhar para um lado do assunto que se presta a frequentes equívocos. Principalmente numa época como esta que cruzamos, na qual, apesar do recuo da História como saber nos programas escolares, nas preocupações dos governantes e na consideração pública, a palavra dos historiadores continua a ser utilizada, ou cirurgicamente manipulada, como instrumento de legitimação do discurso político, tanto do lado dos que procuram conservar o poder como da parte dos que o tentam conquistar. ler mais deste artigo

                História, Memória

                Berlim 61 e a morte de Günter Litfin

                Na noite de 12 para 13 de Agosto de 1961, precisamente às duas da manhã, começou em Berlim, sob a direção de Erich Honecker, secretário do Comité Central do Partido Socialista Unificado da Alemanha para os assuntos oficiais, a construção do muro destinado a separar as zonas de ocupação francesa, britânica e americana da área então controlada pelos russos. Para a União Soviética e as autoridades da República Democrática Alemã, responsáveis pela decisão, esta destinava-se a «defender» a sua forma peculiar de socialismo da «agressão capitalista». Na verdade, o primeiro objectivo foi pôr termo ao êxodo massivo da população da Alemanha Oriental, que representava uma enorme hemorragia demográfica e económica para o bloco de Leste e abalava a sua imagem internacional. ler mais deste artigo

                  Apontamentos, História, Memória

                  As escolhas do Bloco

                  Fotografia de Márta Szabó

                  Há cerca de 14 meses, logo após o desastre eleitoral que o BE produziu e viveu nas legislativas de 2011, e em consonância com um debate público, alargado a não-militantes, que então parecia ir ter lugar, escrevi aqui quatro posts sob o título comum «O Bloco no seu labirinto». O tempo passou, a discussão parece ter-se escondido, e um conjunto de práticas então criticadas manteve-se aparentemente inalterável. Este texto retoma, resume e atualiza alguns dos argumentos ali avançados. Mas procura, pois agora só isso é urgente, olhar principalmente para o futuro.

                  Não me parece, ao contrário do que por aí se diz e escreve, que as dificuldades do Bloco de Esquerda, a clarificação das dúvidas sobre os caminhos que pisa, o esclarecimento público dos seus objetivos, passem necessariamente por mudanças profundas no núcleo dirigente. As escolhas, claro, são feitas por pessoas: elas têm rosto, traduzem percursos, sugerem as expectativas e as qualidades de quem as toma. Mas não parece existirem clivagens que imponham a troca de dirigentes com rodagem e com energia para cumprirem o seu trabalho político, por outros que, numa mera operação de cosmética, apenas poderão oferecer, como numa mudança de logótipo, uma imagem pública diferente. O alargamento e a renovação dos organismos de direção, a expansão da sua representatividade e colegialidade, o combate ao sectarismo que ainda se deteta, a ampliação dos militantes com formação qualificada, integram uma solução; já deitar fora ideias, experiência, dedicação, não tem necessariamente de fazer parte dela. A solução deve encontrar-se noutro lado. ler mais deste artigo

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    Nós e o Holocausto

                    Uma parte importante de Portugueses no Holocausto, escrito por Esther Mucznick, procede a um trabalho de rememoração das circunstâncias que conduziram o governo da Alemanha nazi a passar de um antissemitismo visceral à decisão política, abertamente genocida, da Solução Final. Aquela que determinou os horrores mais extremos e sem remissão do Holocausto. Até há relativamente pouco tempo, esta era uma história bem conhecida; no entanto, o recuo do conhecimento da história do século vinte por parte de um segmento importante das gerações mais novas, associado a uma certa influência das teorias revisionistas e negacionistas, torna imperativo o retomar dos factos e das circunstâncias do horror. Não é este, porém, o objetivo primordial da obra, principalmente centrada na forma como uns e outras se relacionaram com Portugal e com os portugueses, ou pelo menos com muitos dos seus descendentes. ler mais deste artigo

                      História, Memória

                      Les feuilles mortes


                      | Yves Montand em Parigi è sempre Parigi (1951), de Luciano Emmer

                      Elegia e Recordação da Canção Francesa
                      por Jaime Gil de Biedma

                      C’est une chanson
                      que nous ressemble.
                      J. Kosma e J. Prévert: Les feuilles mortes

                      Lembrai-vos: a Europa estava em ruínas.
                      Todo um mundo de imagens me resta desse tempo
                      descoloridas, a ferir-me os olhos
                      com os escombros dos bombardeamentos.
                      Em Espanha, a gente apertava-se nos cinemas
                      e não existia aquecimento.

                      Era a paz – depois de tanto sangue –
                      que chegava andrajosa, como a conhecemos
                      os espanhóis durante cinco anos.
                      E todo um continente empobrecido,
                      carcomido de história e de mercado negro,
                      de repente foi-nos mais familiar. ler mais deste artigo

                        Olhares, Poesia

                        A espionagem que veio do frio

                        Berlim
                        Berlim. Fotografia de brain d. bug

                        Uma das formas de desrespeito pelos direitos dos outros – e também de aviltamento da condição humana – passa pelo uso seletivo, contra alguém ou contra grupos, de insinuações, meias-verdades ou completas mentiras. Pode ser que quem o faça consiga os seus intentos imediatos, mas não ganha com isso, com toda a certeza, a consideração de quem se apercebe de tais estratagemas. Eis uma «lei universal» que a todos se aplica: não é possível respeitar quem, para obter vitórias fáceis e rápidas, ou para depreciar publicamente alguém, recorra à mentira ou à manipulação das palavras. Fazê-lo é, entre outras coisas, sinónimo de falta de transparência e de caráter. As duas ou três pessoas com quem nesta vida me incompatibilizei, justificaram a minha atitude justamente pelo uso reprovável da manipulação, da mentira, da depreciação de outros. Distorcendo as suas palavras ou fazendo eco, sabendo o que faziam, de calúnias produzidas por terceiros. Produzindo pravda, «verdade revolucionária», em vez de verdade. ler mais deste artigo

                          Apontamentos, Atualidade, Olhares, Opinião

                          Imperdoável, Mr. Eastwood

                          Clint Eastwood em Gran Torino

                          Boa parte do cinema que tem pautado os modos de ver ou de imaginar uma certa identidade norte-americana passa pela carreira longa e pela figura esguia de Clint Eastwood. Começou a participar em filmes, ainda como ator secundário, em 1955, mas a projeção mundial obteve-a como «Homem Sem Nome» («Joe», «Manco» ou «Blondie») na trilogia «dos dólares», modelo do western spaghetti, rodada entre 1964 e 1966 por Sergio Leone: Por um punhado de dólares, Por mais alguns dólares e, mais conhecido, O Bom, o Mau e o Vilão. Aí protagonizou o tipo de herói, comum na ficção americana, mostrado como um indivíduo violento e sem grandes princípios, em conflito à escala diminuta com a ordem dominante, que as circunstâncias empurram para atitudes que o espetador reconhece como «justas» e nas quais, por isso mesmo, a violência, incluindo a mais extrema, parece aceitável. Este será o modelo retomado pelo Eastwood das décadas de 1970-1980, na pele do detetive Harry Callahan, «Dirty Harry», num conjunto de filmes onde, uma vez mais, a brutalidade e a falta de escrúpulos do polícia duro e automarginalizado surgia como uma necessidade determinada pela procura da justiça.

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                            Atualidade, Cinema, Opinião

                            História pouco edificante

                            Em Dezembro de 1949, no mesmo ano em que foi proclamada a República Popular da China, Mao Tsé-Tung fez uma visita de Estado a Moscovo e a Estaline. Levou consigo uma autêntica arca do tesouro de ofertas chinesas e vários vagões carregados de arroz. Muitos dos ornamentos de laca ainda hoje decoram as paredes do apartamento, situado na Rua Granovski, onde Molotov viveu. Já o arroz, então um bem raro na capital soviética, foi distribuído pelos altos dignitários do Partido. Em troca, segundo conta Simon Sebag Montefiore, Estaline ofereceu os nomes dos agentes soviéticos infiltrados no Politburo dos comunistas chineses. De regresso a Pequim, como seria de prever, Mao liquidou-os imediatamente.

                              Apontamentos, Etc., História

                              Mestre de culinária

                              Avô paterno do atual senhor do Kremlin, Spiridon Ivanovich Putin (1879–1965), foi um caso único da arte culinária ao serviço do poder instalado em Moscovo. No tempo do czar chegou a cozinhar para o monge Rasputine, mas fez carreira principalmente como chef privado de Lenine e de Nadia Krupskaia, bem como de José Estaline. Depois da morte deste trabalhou ainda numa dacha do Comité de Moscovo do PCUS. Pelo que dele conta o neto, parece que era pouco falador e particularmente reservado a respeito dos episódios aos quais pôde assistir a partir do excelente posto de observação que é sempre a cozinha dos poderosos. Não deixa de ser curiosa a ligação deste homem silencioso e esquecido com os três grandes regimes da Rússia contemporânea.

                                Apontamentos, Etc.