Les feuilles mortes


| Yves Montand em Parigi è sempre Parigi (1951), de Luciano Emmer

Elegia e Recordação da Canção Francesa
por Jaime Gil de Biedma

C’est une chanson
que nous ressemble.
J. Kosma e J. Prévert: Les feuilles mortes

Lembrai-vos: a Europa estava em ruínas.
Todo um mundo de imagens me resta desse tempo
descoloridas, a ferir-me os olhos
com os escombros dos bombardeamentos.
Em Espanha, a gente apertava-se nos cinemas
e não existia aquecimento.

Era a paz – depois de tanto sangue –
que chegava andrajosa, como a conhecemos
os espanhóis durante cinco anos.
E todo um continente empobrecido,
carcomido de história e de mercado negro,
de repente foi-nos mais familiar. ler mais deste artigo

    Olhares, Poesia

    A espionagem que veio do frio

    Berlim
    Berlim. Fotografia de brain d. bug

    Uma das formas de desrespeito pelos direitos dos outros – e também de aviltamento da condição humana – passa pelo uso seletivo, contra alguém ou contra grupos, de insinuações, meias-verdades ou completas mentiras. Pode ser que quem o faça consiga os seus intentos imediatos, mas não ganha com isso, com toda a certeza, a consideração de quem se apercebe de tais estratagemas. Eis uma «lei universal» que a todos se aplica: não é possível respeitar quem, para obter vitórias fáceis e rápidas, ou para depreciar publicamente alguém, recorra à mentira ou à manipulação das palavras. Fazê-lo é, entre outras coisas, sinónimo de falta de transparência e de caráter. As duas ou três pessoas com quem nesta vida me incompatibilizei, justificaram a minha atitude justamente pelo uso reprovável da manipulação, da mentira, da depreciação de outros. Distorcendo as suas palavras ou fazendo eco, sabendo o que faziam, de calúnias produzidas por terceiros. Produzindo pravda, «verdade revolucionária», em vez de verdade. ler mais deste artigo

      Apontamentos, Atualidade, Olhares, Opinião

      Imperdoável, Mr. Eastwood

      Clint Eastwood em Gran Torino

      Boa parte do cinema que tem pautado os modos de ver ou de imaginar uma certa identidade norte-americana passa pela carreira longa e pela figura esguia de Clint Eastwood. Começou a participar em filmes, ainda como ator secundário, em 1955, mas a projeção mundial obteve-a como «Homem Sem Nome» («Joe», «Manco» ou «Blondie») na trilogia «dos dólares», modelo do western spaghetti, rodada entre 1964 e 1966 por Sergio Leone: Por um punhado de dólares, Por mais alguns dólares e, mais conhecido, O Bom, o Mau e o Vilão. Aí protagonizou o tipo de herói, comum na ficção americana, mostrado como um indivíduo violento e sem grandes princípios, em conflito à escala diminuta com a ordem dominante, que as circunstâncias empurram para atitudes que o espetador reconhece como «justas» e nas quais, por isso mesmo, a violência, incluindo a mais extrema, parece aceitável. Este será o modelo retomado pelo Eastwood das décadas de 1970-1980, na pele do detetive Harry Callahan, «Dirty Harry», num conjunto de filmes onde, uma vez mais, a brutalidade e a falta de escrúpulos do polícia duro e automarginalizado surgia como uma necessidade determinada pela procura da justiça.

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        Atualidade, Cinema, Opinião

        História pouco edificante

        Em Dezembro de 1949, no mesmo ano em que foi proclamada a República Popular da China, Mao Tsé-Tung fez uma visita de Estado a Moscovo e a Estaline. Levou consigo uma autêntica arca do tesouro de ofertas chinesas e vários vagões carregados de arroz. Muitos dos ornamentos de laca ainda hoje decoram as paredes do apartamento, situado na Rua Granovski, onde Molotov viveu. Já o arroz, então um bem raro na capital soviética, foi distribuído pelos altos dignitários do Partido. Em troca, segundo conta Simon Sebag Montefiore, Estaline ofereceu os nomes dos agentes soviéticos infiltrados no Politburo dos comunistas chineses. De regresso a Pequim, como seria de prever, Mao liquidou-os imediatamente.

          Apontamentos, Etc., História

          Mestre de culinária

          Avô paterno do atual senhor do Kremlin, Spiridon Ivanovich Putin (1879–1965), foi um caso único da arte culinária ao serviço do poder instalado em Moscovo. No tempo do czar chegou a cozinhar para o monge Rasputine, mas fez carreira principalmente como chef privado de Lenine e de Nadia Krupskaia, bem como de José Estaline. Depois da morte deste trabalhou ainda numa dacha do Comité de Moscovo do PCUS. Pelo que dele conta o neto, parece que era pouco falador e particularmente reservado a respeito dos episódios aos quais pôde assistir a partir do excelente posto de observação que é sempre a cozinha dos poderosos. Não deixa de ser curiosa a ligação deste homem silencioso e esquecido com os três grandes regimes da Rússia contemporânea.

            Apontamentos, Etc.

            Revolução

            Para Antonio Muñoz Molina algumas das maiores revoluções da sua vida aconteceram aos outros. Em lugares onde não estava, como Lisboa, Berlim ou o Cairo. Uma experiência frustrante que pode ser partilhada. Não estar ali, naquele momento, no lugar onde tudo aconteceu. Quando a História toma o freio nos dentes e por instantes as grandes expectativas, outrora adiadas para futuros incertos, ganham forma em vidas que não são as nossas, em cidades que jamais habitámos, em línguas que não nos pertencem. Delas chegam-nos então as imagens rápidas, televisionadas, das correrias pelas ruas, dos cartazes que se agitam, dos gases irrespiráveis, das mots d’ordre na ordem do dia. Nessas alturas reconhecemos na ira dos outros, no rasgo que dela chispa, um impulso simpático que partilhamos, necessário para que as nossas vidas possa, também elas, incluir uma dimensão de esperança. Se é verdade, como escreveu Ralph Waldo Emerson, o filósofo e poeta americano de Oitocentos, que cada revolução começa por ser uma ideia na nossa própria cabeça, então vislumbrá-la nesses horizontes distantes ecoa em nós, através dos outros, noutras vozes e noutras praças, a consciência da sua possibilidade. Tudo acontece rapidamente e a festa acaba demasiado depressa, mas ficam as marcas, os despojos, insinuando que um dia pode voltar a acontecer. Algures, talvez aqui, talvez connosco.

              Atualidade, Devaneios, Olhares

              Os artistas, nós todos

              Talking. Fotografia de Sébastien Tabuteaud

              O cerco imposto pela «política do real», aquela que apenas atende aos dados objetivos, ao deve e ao haver, às necessidades materiais mais elementares, a metas quantitativas, é, entre os partidos da democracia, protagonizado agora pela quase totalidade do espetro político. À direita porque essa é a atitude natural, esquecidos que foram, levados pelo tempo, os impulsos do velho personalismo a propósito da «comunidade de pessoas», depois adotados pela defunta democracia cristã. À esquerda porque se desistiu de pensar uma política do impossível – indispensável para projetar a mudança – em favor do pragmatismo que apenas olha para o ritmo das refeições. Passo pelas palavras do Padre Manuel Antunes, publicadas em 1979 no seu notável Repensar Portugal, e revejo a premente necessidade de voltarmos a procurar naqueles que pensam de forma imprevisível – em confronto com as necessidades humanas, mesmo as mais íntimas e imateriais – o caminho da esperança e do futuro.

              Que espécie de sociedade desejamos? Que espécie de sociedade deseja o povo português? Ouso interpretar. De resto é essa uma das funções, se não a principal função do intelectual na cidade. Para além, claro, da missão de defender o seu próprio ideal e as suas pró­prias opiniões, mesmo quando esse ideal e essas opi­niões não vão ao sabor dos senhores da hora. O intelectual não deve ter medo de ser ou parecer diferente dos outros, de querer escapar ao nivelamento univer­sal em que, por via de regra, esses mesmos senhores pretendem rasoirar os que, de uma certa forma, lhes estão sujeitos. Por isso, como avança Oskar Morgenstern, os governos fazem mal em só prestarem atenção aos dados sociais, económicos e técnicos dos mundos que administram. Deviam também consultar os artistas pela sua «extraordinária presciência» do que se passa ou vai passar na profundidade desses mesmos mundos.

                Apontamentos, Olhares, Opinião

                Bibliocrime

                Existe quem defenda que roubar livros não é crime, uma vez que os bens culturais devem dispor de trânsito livre, universal e gratuito. Ressalvando os casos em que o ladrão tem em vista a raridade bibliográfica que pode seguramente valer uma boa maquia, trata-se de um produto do qual realmente só se apropria sem passar pela caixa registadora quem é um real connaisseur ou dele precisa mesmo. Rouba-se então pelo gosto, para alguns pela necessidade, de ler. Ou então pela compulsão bibliófaga. Rimbaud roubava livros, e Genet, como não podia deixar de ser, também o fazia. Sei de cidadãos, alguns de perfil público, que em dado momento das suas vidas, por aperto financeiro ou gosto do risco, se dedicaram com tenacidade e bom proveito a essa pequena mas nobre arte. Que fiquem descansados em relação aos efeitos casualmente perniciosos da minha memória, pois não sou delator. Além disso, e para ser sincero, não estou em condições de poder garantir não ter eu próprio sucumbido no passado à cobiça, deixando-me envolver – devido provavelmente às más companhias – no emocionante submundo da transgressão associada ao consumo de produtos brochados ou encadernados. ler mais deste artigo

                  Apontamentos, Olhares

                  Futebol e desencontros

                  Como no amor, aconteceram, na história da literatura, das artes ou da filosofia, desencontros que poderiam ter sido belos encontros. Possíveis que se revelaram impossíveis. Karl Marx e Charles Darwin tiveram uma reunião prevista, marcada por um amigo comum, mas esta acabaria por não acontecer. Soljenitsine e Nabokov falharam por muito pouco uma prometida conversa. E nos anos quarenta Orwell marcou um encontro com Camus em Saint-Germain-des-Prés, mas como este se atrasou um pouco, aborreceu-se e foi-se embora. Conhecendo o percurso de ambos, as causas que partilharam, as marcas que deixaram, aquele poderia ter sido o princípio de um belo entendimento. ler mais deste artigo

                    Apontamentos, Olhares

                    Plano de fuga

                    Não define a ausência
                    o conhecimento da terra,
                    a proximidade dos lírios, das
                    estradas sem destino.
                    Não conhecem roteiros a
                    sabedoria do sol e o silvo
                    dos insectos sem asas e cegos
                    que procuram água.
                    Não existe poesia sem
                    conhecimento, saber sem sal,
                    na vida diária feita de passos e
                    de réstias e de perdas.
                    Não sabem os trilhos dos mapas
                    perdidos inventados
                    ou da existência de um norte
                    frio, férreo, inamovível.
                    Não produzem os passos linhas
                    e nós de navegação
                    para que possamos desenhar
                    um ótimo plano de fuga.

                      Olhares, Poesia

                      V. Ilitch e Fofanova

                      Numa rua de Kiev. Fotografia de Pavlo

                      É maior do que pensava a minha ignorância da petite histoire do socialismo e por isso estou sempre a encontrar episódios novos. Nos dias que antecederam a tomada do poder pelos bolcheviques, Lenine escondeu-se em Moscovo no número 91 da Rua Serdobolskaia, apartamento 41 (atualmente o 106 da Perspetiva Marx, apartamento 20). A proprietária era uma mulher moscovita de 34 anos, que não só alojou Vladimir Ilitch, fornecendo cama, mesa e roupa lavada, como lhe serviu de ligação com os restantes membros da direção do Partido. É legítimo supor que o relacionamento entre os dois não tenha sido apenas estritamente político, dado o bilhete, ainda hoje conservado, que Lenine lhe deixou quando abandonou o apartamento para ir mudar a história da Rússia e do mundo: «Vou agora para onde tu me pediste que não fosse. Adeus.» De onde se depreende que a camarada possuía um nome só aparentemente convincente: Margarita Vasilevna Fofanova.

                        Apontamentos, Devaneios, História

                        Síria: silêncio é cumplicidade

                        Na cidade síria de Alepo, a segunda do país com 2,5 milhões de habitantes, perante o avanço das forças de Assad, «um número muito grande de civis», encurralado pelos bombardeamentos cerrados de artilharia pesada por terra e ar, «reuniu-se em parques públicos em áreas mais seguras» ou então «refugiou-se nas escolas». A maioria dos cidadãos está desesperada, temendo pela vida e assistindo à destruição sem piedade da sua cidade-museu. O esquerda.net já viu aquilo que está a acontecer na Síria: uma chacina em nome da defesa de um regime massivamente contestado nas ruas de todo o país. Mas limita-se a noticiar, não toma uma posição. A «teoria do não-intervencionismo a todo o custo», em qualquer caso, independentemente de situações extremas nas quais o que deve importar é a defesa elementar de vidas humanas, conduz o Bloco de Esquerda a becos sem saída desta natureza. Já o Avante! apoia as forças do regime e vê coragem e nacionalismo, «defesa legítima» contra uma agressão externa «programada nos corredores do Pentágono», onde existe principalmente a brutalidade sem limites, lançada no terreno contra as forças anti-regime mas que atinge sobretudo civis que lhe não conseguem escapar. Enquanto o PCP é consequente com a sua fidelidade política ao inquebrantável princípio leninista do «inimigo principal» e ao velho parceiro na região da «saudosa» União Soviética, o BE evita tomar uma posição clara face a uma tragédia humana desta dimensão. Queira-o ou não, quem cala consente.

                          Apontamentos, Atualidade

                          Um Che imperfeito

                          Ernesto Guevara de la Serna
                          por Hans Magnus Enzensberger

                          Durante uns tempos, milhares usaram o seu pequeno boné
                          e multidões desfilaram com retratos seus
                          em grande formato, gritando bem alto o seu nome.
                          Agora, aqueles cortejos pela City quase parecem irreais,
                          como o país e a classe que o viram nascer.

                          Longe dos matadouros e das barracas e dos bordéis
                          ia-se desfazendo a casa do pai, junto ao rio. O dinheiro fora-se,
                          mas a piscina ficou. Um rapazinho tímido,
                          alérgico, muitas vezes quase a sufocar. Em luta com o seu corpo,
                          fumando charutos, fez-se homem (o que isso seja, não é história para aqui). ler mais deste artigo

                            Biografias, Memória, Poesia, Recortes

                            As noites da emancipação

                            Num dado momento do seu trajeto filosófico, Jacques Rancière (n. 1940) passou a dedicar-se aos discursos dos excluídos, daqueles que num dado momento da História se viram confinados ao silêncio, empurrados para as margens pelas vozes hegemónicas: os proletários, os pobres, as mulheres, as minorias. Este A Noite dos Proletários, originalmente publicado em 1981, integra-se nesse esforço, procurando encontrar no discurso «desclassificado» de um conjunto de operários franceses saint-simonianos, «letrados» autodidatas da primeira metade do século XIX, um olhar diferente do habitual a propósito de conceitos – como exploração, domínio, trabalho, fadiga, economia, libertação, associação ou saber – associados à afirmação, então em pleno curso, do capitalismo triunfante e da nova identidade do universo do trabalho. ler mais deste artigo

                              Democracia, História