Alemanha’45. Coreografia da queda

O trabalho do britânico Ian Kershaw tem sido ocupado principalmente com a história alemã do Terceiro Reich e o trajeto pessoal e político de Adolf Hitler. Em Até ao Fim aborda os últimos dez meses da existência do regime nazi, aqueles que vão da tentativa de assassinato do Führer, em 20 de julho de 1944, até à rendição do regime, ocorrida em maio do ano seguinte. Fá-lo procurando obter uma resposta para uma pergunta posta logo no início do livro: o que terá feito com que a Alemanha, cuja derrota já então se mostrava inevitável, optasse por combater até ao fim? Afinal, mesmo nas guerras mais mortíferas do passado, sempre ocorrera um momento no qual os comandantes vencidos reconheciam a derrota e chegavam a um compromisso com os vencedores, na tentativa de evitar males maiores ou de salvar a própria pele. Todavia, com a Alemanha de Hitler nada disto aconteceu, tendo o território germânico de ser conquistado aldeia a aldeia, rua a rua, cidade a cidade, numa espiral de violência que fez com que na classificação macabra das baixas civis e militares da Segunda Guerra Mundial os alemães tenham ficado num macabro segundo lugar, logo após os soviéticos. A larga maioria das vítimas, incluindo cerca de metade dos soldados alemães mortos na guerra, pereceu no entanto, justamente, nesses derradeiros meses, sobretudo como consequência dos bombardeamentos maciços dos Aliados e do avassalador avanço do Exército Vermelho.

Esse aspeto perturbante da paisagem alemã do final da guerra encontra-se associado a um conjunto de condições que tornavam inevitável a queda no abismo justamente da forma como ela ocorreu: a persistência de um núcleo de obstinados nazis, dispostos a morrer pelas suas convicções megalómanas, a preservação de estruturas do Estado e do Partido Nacional-Socialista eficazes e disciplinadas, capazes de se conservarem de pé quase até ao final da guerra, e uma população em larga medida indiferente ou conivente com o regime, que pouco fez para acelerar a sua já fatal queda. Associados a estas condições estiveram, Kershaw mostra-o bem, fatores de peso como o fanatismo de parte da elite, a interferência cerrada da propaganda e a omnipresença do medo. O fanatismo é aliás um aspeto muito importante, uma vez que forneceu um suplemento de convicção, ou pelo menos de fé, na possibilidade de uma reviravolta de última hora no sentido tomado pela guerra, que impeliu muitos quadros para um combate decidido e sem quartel. Pelo seu lado, a propaganda foi capaz de insinuar junto da maioria da população a ideia de que a vitória era ainda possível, logo que certas armas «nunca vistas» e imaginárias reservas de soldados fossem lançadas no combate, numa lógica própria dessa «guerra total» proposta em 1943 pelo ministro Goebbels. Já as bases do medo haviam sido lançadas durante o processo de instalação dos nazis no poder, mas foram particularmente reforçadas na fase final da Guerra, quando os combates se travavam já em território alemão, com ameaças, internamentos, torturas e execuções sumárias, impostas sem piedade pelos comandantes mais obstinados e destinadas a impedir qualquer atitude de colaboração com os invasores aliados.

Este livro de Ian Kershaw documenta de forma completa e bastante vívida, uma certa «coreografia da queda», posta em marcha num cenário que parecia destinar a Alemanha à demolição integral e definitiva. Como Hitler declarou por diversas vezes nos meses finais, um povo «demasiado fraco», que não tinha sido capaz de cumprir o seu destino histórico, de ganhar aquela guerra reputada como vital e inscrita como um destino e uma necessidade no fio da História, «não merecia viver». Na Alemanha, até ao dia da derrota, poucos foram capazes de contrariá-lo e de resistir à política de terra queimada, a essa «ordem de Nero», decretada pelo Führer em março de 1945, que deveria ter efeitos apocalípticos deixando ao inimigo uma terra germanica deserta e em cinzas. Até ao momento em que a derrota foi formalizada, os alemães que tentaram impedir a vertigem de destruição pretendida pelo ditador, pagaram-no quase sempre com a vida.

Ian Kershaw, Até ao Fim. Destruição e derrota da Alemanha de Hitler. 1944-1945. Trad. de Ana Saldanha. Dom Quixote. 708 págs. Versão revista e alargada de um texto publicado na LER de Outubro.

    História, Memória.