Disse-me que eu tivera muita sorte, pois tinha podido ler o Fritz Kahn enquanto ele só conseguira folhear, às escondidas dos pais, aquele livro do Professor Egas Moniz que se vendia nas farmácias. Mas ainda tinha em casa alguns exemplares avulsos da Bomba H que comprara na tabacaria do bairro por vinte e cinco tostões. Eu contei-lhe que conseguira um dia num alfarrabista uma colecção completa da Gaiola Aberta, mas que a perdera da última vez que mudei de casa. Não lhe falei do papel de Wilhelm Reich e da ex-mulher de Roger Vadim na minha vida porque a conversa ficou por ali.
Fealdade que se dissipa
Storia della Bruttezza, o último livro de Umberto Eco, deveria chamar-se em português História da Fealdade, e não História do Feio, como aconteceu na novíssima edição da Difel. Pois aquilo que se expõe neste esplêndido livro-álbum (precedido de uma História da Beleza publicada em 2004) não é o relato da sucessão de debates em redor do conceito, mas antes uma avaliação, formal e situada no tempo, «do feio em si mesmo (um excremento, um cadáver em decomposição, um ser coberto de chagas que emana um cheiro nauseabundo)» e também «do feio formal, como desequilíbrio na reacção orgânica entre as partes e o todo». A ambos associa ainda Eco um terceiro tipo, resultante da representação artística dos dois primeiros.
É então em redor das figurações da fealdade que concretizam o conceito flutuante de feio, que este livro é construído. Que ele nos vai mostrando um cortejo de diabos, monstros e portentos, de figuras grotescas e carnavalescas, mulheres pavorosas, bruxas e seres sádicos. E também de românticos que se comprazem da sua fealdade (infelizes, doentes, perseguidos, solitários), de decadentes, freaks, fantasmas e mortos-vivos, de produtos resultantes da recusa vanguardista do consenso, das expressões desequilibradas do kitsch e da estética camp. Integrando reproduções de imagens e de textos que, longe de qualquer paradoxo, produzem no leitor uma sensação ambígua, amálgama de repulsa e de atracção, de horror e de beleza. Recorrendo a uma estratégia de compulsão que o triunfo da imagem e as estratégias contemporâneas da comunicação conduziram hoje a um ponto de neutralidade. A este lugar onde os conceitos de belo e de feio perderam o seu lado aparentemente absoluto e deixaram de funcionar como opostos. Podemos, a partir das páginas deste livro, perceber melhor o modo como aqui chegámos.
Desculpem (pelo Adriano)
Custa-me ouvir o Adriano Correia de Oliveira. E explico porquê. Não é pela simplicidade e pelo carácter datado dos arranjos musicais das suas canções: a sua voz, poderosa e afectiva, magoada às vezes, algumas das palavras que foi cantando enquanto por cá andou, quase os fazem esquecer. A verdade é que, ao escutá-las agora, viajo no tempo, recuando ao país-Portugal, sequestrado e em luto, no qual ele viveu quase toda a sua vida. Por isso, para mim que conheci esse país, ouvir hoje Adriano é como revisitar uma prisão, como ler as memórias de um torturado, como ver um documentário sobre a pátria que foi, como olhar a fotografia de um emigrante sozinho na Gare de Austerlitz. Dói-me e evito fazê-lo.
«Gabinete especial»
Em 1921, Lenine, ordenou a criação de um laboratório de venenos secreto, um «gabinete especial» que tinha por missão «combater os inimigos do poder soviético». Mas este rapidamente foi transformado num instrumento de ataque aos dirigentes comunistas que podiam fazer sombra à tomada do poder por José Estaline. Foi o caso do general Mikhail Frunze, envenenado logo em 1925 no decorrer de uma intervenção cirúrgica à qual foi submetido contra a sua vontade. Após longa investigação, o escritor e jornalista russo Arkadi Vaksberg traçou, em Laboratório de Venenos (da Alêtheia), a história minuciosa de uma interminável série de assassinatos políticos, que começaram nos tempos de Lenine e de Estaline e continuaram, já após o fim da União Soviética, com a eliminação de Anatoli Sobtchak, o antigo presidente da câmara de São Petersburgo, do deputado e jornalista Iuri Chtchekotchikhine e do espião Alexander Litvinenko. Victor Yushchenko, o presidente ucraniano, terá escapado por pouco.
O livro apresenta uma massa documental impressionante, com o senão de, referindo muitos dos fundos de arquivo consultados, não identificar outros e remeter para o seu espólio pessoal a origem exacta de informações cruciais. O que reduz a possibilidade deste livro se transformar num libelo acusador de efeitos devastadores para a imagem pública da acção política da maioria dos principais dirigentes soviéticos e russos. De Lenine a Putin. Ainda assim, a sua leitura, que deve ser feita de uma forma crítica, não deixa de impressionar pelo modo como mostra o grau de refinamento que essa antiquíssima forma de eliminação violenta dos adversários políticos foi adquirindo por aquelas paragens. E por preparar-nos para as cenas dos próximos capítulos.
Les amis du peuple
Acabava de rever em DVD, muitos anos depois da primeira vez, La Chinoise, de Jean-Luc Godard. E, de repente, na pacatez da minha noite suburbana e burguesa, um monólogo que chega do passado:
«Sabemos que a revolução social não está ao virar da esquina e que as lutas a travar em cada momento são aquelas que o estado de consciência das massas permite. É através da luta pelos seus interesses imediatos e objectivos parciais que os explorados se unirão e organizarão para lutas superiores. Exige-se-nos um trabalho paciente, que não se compadece com radicalismos verbais. Porém, ao empenharmo-nos nessas lutas diárias, por reivindicações muitas vezes modestas, não perdemos de vista que a sua utilidade é incutir gradualmente nos trabalhadores a confiança nas próprias forças, o repúdio pela ordem capitalista, a consciência e determinação revolucionárias. São positivas as lutas que contribuem para pôr explorados e exploradores em confronto, não as que semeiam ilusões na colaboração de classes. Alertamos os trabalhadores contra a miragem de que uma espiral infinita de reformas transformaria gradualmente o inferno capitalista num paraíso socialista. Dizemos que conquistas verdadeiras só com lutas superiores podem ser alcançadas e que tudo depende de se criar um campo resolutamente anticapitalista.»
A alegria do almoço-rápido
Já não podemos dizer que as boas medidas deste governo são só aquelas que não implicam encargos adicionais para o Orçamento de Estado. Para 2008, o OE propõe que os pastéis de bacalhau desçam ao nível dos croquetes, com uma redução do IVA de 12 para 5%.
Fátima, os fariseus e o kitsch
1. Fátima ressurge. Mas o que me preocupa no seu ressurgimento não é a intrusão, na paisagem caótica daquela incaracterística cidade de oito mil habitantes e de não sei quantos milhares de forasteiros, de mais uns quantos edifícios e de uma igreja gigantesca. É a forma acrítica como a comunicação social se extasia – tal como aconteceu com os estádios do Euro – com o seu luxo e dimensão. É a forma passiva como faz reverberar o significado dos acontecimentos de 1917 e da sua leitura pelos poderes instalados após o 28 de Maio. É o modo como a transmissão da «mensagem divina» nos é mostrada como acontecimento e não enquanto construção. A maneira como a ignorância, a superstição e o desespero surgem nas reportagens e nos ecrãs envolvidos numa atitude farisaica de benévola aceitação, de quase cumplicidade. A meu ver, também de crueldade.
2. Os templos católicos são hoje, quase sempre, museus do kitsch. Juntam à sua arquitectura original, imagens toscas, peças avulsas, decorativas, onde predominam rendas e brocados, sedas e tafetás, acessórios electrónicos obsoletos, lâmpadas fluorescentes, alcatifas carmesim, anexos atípicos mandados erguer por um qualquer pároco ou benemérito. Num certo sentido, essa deprimente profusão de objectos sem norte cumpre a sua função sacralizadora, dado o padrão de gosto e a capacidade de elaboração simbólica da maioria esmagadora dos crentes. Por isso, a nova Cruz Alta de Fátima, concebida pelo alemão Robert Shad – e que, sempre optimista, Frei Bento Domingues tanto elogia numa crónica hoje publicada – é de facto, na sua concepção ousada, moderna, um objecto espúrio. Enquanto deambulam pelo terreiro grande da Cova da Iria, dele dizem quase todos os entrevistados que «é uma decepção», «não me diz nada», «não percebo». Poderia ser de outra forma?
Problema de sintaxe
Ando há semanas a tentar ler Descascando a Cebola, o livro autobiográfico de Günter Grass sobre o período que vai de 1939 a 1959. Não é autor que me encha as medidas, já aqui o disse. E, como também já escrevi, não me agrada que ele, a «consciência do povo alemão», tenha demorado tanto tempo a reconhecer em público que pertenceu a um destacamento das SS. Mas a dificuldade da minha leitura – que antevia como a de um testemunho – deve-se sobretudo à óbvia ausência de empatia com a tradução da obra. António Guerreiro já tinha chamado, no Expresso, a atenção para, entre outras falhas, «frases sintacticamente incorrectas ou demasiado próximas da sintaxe alemã», o que a tradutora e a editora procuraram refutar dois números do mesmo semanário depois. Não sou capaz de julgar com rigor de que lado está a razão, ou se todos a têm. Estudei alemão durante dois anos mas já quase esqueci o pouco que aprendi. Avalio a tradução, por isso, apenas através do gosto e da sensibilidade. Do ouvido também. E estes não me deixam um impressão positiva, tendendo a simpatizar com a opinião do crítico do Expresso. Assim, soam-me mal, muito mal, frases como «demo-nos com vontade à boa disposição», «abasteciam-nos com o jargão tradicional, excedendo-se a eles próprios na descoberta de chicanas subtis», «não seria mais premente falar actualmente» ou «repetidamente se atiçavam fogos de esperança que convidavam a aquecer na sua proximidade o ânimo enregelado», entre muitas outras, largas centenas delas, de idêntico recorte. Será por isto que continuo a andar para a frente e para trás com o livro. Sem avançar grande coisa, fazendo ainda o possível por não desistir.
Não sei quantos, não-sei-quê
Ao meu lado, duas estudantes, universitárias pelo negro trajar, procuram um livro. «Ele deve gostar deste, não achas?», pergunta uma delas, segurando um título que fala de um amor que não sei quantos. Abre o volume e fecha-o de novo sem ler uma linha: «pensando melhor, talvez ele não goste disto». E atira-o para cima da mesa. «Olha, Sónia, talvez, este», diz a outra. «Qual deles, Martinha?» «Este da Margarida não-sei-quê não-sei-quê».
Doris Lessing
Sabe bem ver tantos jornais do mundo com a fotografia de uma mulher muito bonita na primeira página.
Um caso à beira-serra
Ao falar do comportamento dos dois senhores agentes da PSP que entraram armados em bufos dentro da sede sindical na Covilhã, Ângelo Correia, na televisão, colocou, em forma de boutade, o dedo na ferida: «No tempo do Dr. Mário Soares como primeiro-ministro isto nunca aconteceria.» Quando a cultura da liberdade passa a ser apenas uma florzinha rubra na lapela no dia vinte e cinco do quatro, e todos os atropelos se desculpam em nome da eficácia ou da autoridade do Estado, coisas destas acontecem. E eu até nem sou soarista. Nem ele, o Dr. Ângelo.
Adenda: «O ministro da Administração Interna considera que, com base no relatório preliminar divulgado hoje pelo inspector-geral da Administração Interna sobre a visita da PSP às instalações do Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC) na Covilhã, segundo o qual a polícia não cometeu qualquer infracção, que ‘não há lugar à instrução de processo de inquérito ou processo disciplinar’.» [Público online]
Tudo bem, portanto. E assim fica aquela gente a saber que pode agir impunemente. Que o poder político a protege e compreende. Afinal, atemorizar cidadãos não é, só por isso, crime previsto no código penal. Como o bicho-papão, o polícia mau faz parte do nosso imaginário colectivo e é conveniente que nele permaneça.
Discurso do método
Afinal o Vaticano ainda não deferiu a canonização dos três pequenos pastores da Cova da Iria. Só a diferiu. Parece que falta uma evidência confirmada em laboratório. Para a Santa Sé, diz o sibilante cardeal Dom José Saraiva Martins, natural de Gagos de Jarmelo e prefeito da excelentíssima Congregação das Causas dos Santos, são sempre necessárias «provas científicas do milagre».
Guerra fria
Eu falei-lhe de Bukarine. Ela falou-me de Lumumba. Nós nunca mais nos falámos.
Leica® (desde 1925)
Cartier-Bresson usava uma todos os dias. E Robert Capa também. E Corbijn, Erwitt ou Rodchenko. E Arbus, e Kertész, e Lagerfeld. E Frank. E Winogrand. Salgado também usa. Sem ela a representação do mundo conhecido seria outra, o poder da imagem seria forçosamente menos indeclinável, a nossa memória comum seria infinitamente mais pobre, mais disforme.
A Birmânia não é aqui
Este post foi originalmente publicado há seis dias. Pela actualidade que mantém, é de novo chamado à primeira linha. Com algumas pequenas alterações.
O desinteresse dos principais partidos da esquerda portuguesa pelas frentes do combate democrático que vão sendo sucessivamente abertas pelo mundo surge-nos como uma triste constante. Exceptuando-se, naturalmente, as «solidariedades» ocasionais escolhidas caso a caso. Mesmo quando os sinais evidentes da repressão e da revolta, ou os primeiros indícios de novos genocídios, nos entram em imagens brutais pelas casas adentro. Para o PCP e para o Bloco de Esquerda, o drama birmanês permanece distante, quase como se nada tivesse a ver connosco, como se não justificasse um estremecimento de emoção, uma palavra de protesto, uma clara reprovação. Que importa afinal o ruído que chega da rua distante quando mantemos o nariz mergulhado no prato da sopa e nas tristes agendas eleitorais? A despolitização da política e o sectarismo, cara e coroa da mesma moeda, castram e desumanizam a experiência da cidadania, questionando o próprio conceito de democracia de quem os pratica.
Suplemento educativo
Vale a pena seguir a interessante série «Eles adoram queimar», publicada por Francisco José Viegas n’A Origem das Espécies. A propósito do episódio da incineração de uns quantos exemplares da revista Veja por esta incluir um artigo muito crítico da personalidade e da acção de Che Guevara. A série é, no mínimo, bastante educativa.
Já depois de publicado este post chegou-me o número da Veja. O artigo em causa, do qual, aliás, em boa parte discordo – mais pela leitura parcial que propõe do que pelos factos que invoca – é um texto opinativo completamente banal, igual a milhares de outros que todos os dias nos chegam. O problema residirá na proposta de questionamento de uma certa dimensão do sagrado. E desta vez não se trata de Maomé…
Ernesto no aniversário da sua morte
A imagem pública de Ernesto Guevara de la Serna manteve, praticamente desde a sua integração na guerrilha cubana, um grande destaque mediático. Parte importante da auréola de romantismo revolucionário que acompanhou a tomada do poder pelos barbudos da Sierra Maestra, deveu-se à forma como Fidel, Camilo Cienfuegos ou Guevara projectaram, para um público mundial, a representação de uma causa que se mostrava radicalmente jovem, igualitária e justiceira. Assim, pelos inícios da década de 1960, o argentino era já uma lenda viva, cuja importância simbólica transcendia até os sectores da esquerda que viam no regime cubano a materialização das suas utopias e a superação do já decaído modelo soviético do socialismo. Ainda que acidental, a fotografia de Alberto Korda, projectando uma imagem heróica e poética do Che, foi obtida em 1960, quando este ocupava já um lugar de destaque como protagonista da Revolución.
Este realce ampliou-se logo após o seu desaparecimento físico, transformando-lhe o rosto – o do combatente vivo e o do mártir morto – em símbolo maior de uma rebeldia com causa que uma parte da intelectualidade da esquerda mais heterodoxa olhava então com simpatia, e que a juventude dos sixties politicamente mais activa reconhecia como sua. Em Portugal, ainda durante o período marcelista, textos seus foram publicados e o seu estilo pessoal glosado, enquanto posters com a reprodução da célebre fotografia rivalizavam nos escaparates com os aforismos sentimentais de Júlio Roberto, e decoravam instalações associativas e quartos de estudantes.
Antes ainda da canonização, hoje reconhecível em Cuba e que omite as divergências que foi tendo com Fidel e o levaram a deixar Havana e a partir para o Congo e para a Bolívia – «a minha casa ambulante continua a ter duas pernas e os meus sonhos não conhecerão fronteiras» –, a universalização do Che começara já, impulsionada pelo próprio sentido internacionalista da sua concepção de socialismo, sinalizada com clareza na estrela de cinco pontas que usava na inconfundível boina. «Criar um, dois, três, muitos Vietnames» não era simples palavra de ordem, um mero slogan, mas todo um programa de enfrentamento do imperialismo americano que, como sistema mundial, deveria também ser combatido a essa escala, recorrendo-se para o efeito a uma guerra de guerrilha, descentrada em múltiplos focos rurais, que deveria tornar inoperacionais os regimes que colaboravam com o poder ianque, derrubando-os de seguida. E arrastando consigo as injustiças do próprio capitalismo.
Esse percurso original do guevarismo, partilhado, apesar de algumas divergências tácticas, pelos grupos e grupúsculos partidários da guerrilha urbana da década de 1970, terminou com o recuo global do socialismo de Estado enquanto modelo. Na «era do vazio» dos anos 80, viu-se então confinado a núcleos de nostálgicos, de activistas ultra-radicalizados ou de militantes dos velhos partidos comunistas, carentes de símbolos atraentes e que não hesitaram em transformar num dos (agora) seus aquele que antes haviam tantas vezes reprovado (os textos que o comprovam existem, e as memórias também, por muito que o tentem camuflar as posteriores operações de cosmética).
A última década do século passado reconheceu, no entanto, um manifesto «regresso do Che», reunindo simpatizantes e activistas de diferentes causas que, enquanto ícone e fonte de inspiração, transportaram para um novo quotidiano a sua imagem. A resistência ao unilateralismo e os movimentos antiglobalização recuperam então, reconstruindo-a, a dimensão rebelde e planetária de Guevara, não hesitando em ignorar ou em justificar o seu papel, comprovadamente marcado pela intolerância e pela defesa de actos de extrema «violência revolucionária» pelos quais foi responsável na fase de lançamento do regime cubano, e que foram recentemente lembrados num livro de Alvaro Vargas Llosa (Che Guevara Myth and the Future of Liberty).
Ao mesmo tempo, a revolução da informação e do consumo de massas, passaram também a aproveitar a sua imagem como produto de compra e venda, fazendo-a transportar na rua, por muitos daqueles que o Che sem dúvida desprezaria ou combateria, em t-shirts e pins, como gadgets e em tatuagens, como Homer Simpson ou Cristo. Numa mesma capa de revista, ao lado de Maradona ou Paris Hilton, o seu rosto passou a anunciar paraísos tropicais ou uma «revolução» transformada, ela própria, como produto de moda, em agente dinamizador do mercado de vestuário e bebidas. Em Che: Market and Revolution, a crítica inglesa Trisha Ziff reconhece mesmo, em cerca de trezentas peças assinadas ou anónimas, o aproveitamento comercial – se quisermos, a corrupção – da velha imagem obtida por Korda.
É esta «domesticação» do Che que Rui Ramos glosa no artigo da revista Atlântico («O desprezo de Che Guevara»), mas pegando-lhe, a meu ver, de uma forma equívoca. Ou antes, fazendo-o através de uma leitura que tende a depreciar o papel histórico de Guevara e a ridicularizar, de uma forma parcial, politicamente comprometida e a-histórica, as leituras contemporâneas que atribuem um valor positivo e dinâmico ao seu legado. Efeito do qual a própria revista se serviu, reproduzindo na capa um desenho que o assemelha a Adolf Hitler. Se, como estratégia de marketing, pode ser uma boa ideia, este expediente tende a acentuar uma distorção essencial que o artigo promove, através de um processo de «descontextualização» da actividade e da influência do Che, de incompreensão perante as metamorfoses da sua figura, e de impaciência em face da sobrevivência visível dos ecos do seu legado.
Dois aspectos, que materializam duas divergências, separam aquela que me parece ser uma abordagem objectiva do tema na relação com aquela que é a leitura do autor do artigo.
A primeira tem a ver com a inscrição da acção de Guevara na história do seu tempo. Neste sentido, avaliar o Che como um falhado ou um oportunista, quase um louco, para quem «os males do mundo não o levavam a compadecer-se pelos outros, mas a desprezá-los», como o faz Rui Ramos, é tão pouco rigoroso como entendê-lo, à maneira das hagiografias, como ser perfeito ou semideus. No seu tempo, foi sim um agente transformador, integrado no fluxo mundial de expectativa de mudança vivido no decurso dos «longos anos 60», e, ao mesmo tempo, integrador de solidariedades e de projectos de emancipação que cumpriram o seu papel histórico. Incluindo-se neste, para além da sobrevivência do castrismo, a própria transformação do funcionamento dos regimes democráticos do ocidente e a valorização política e moral dos movimentos de emancipação do então chamado «terceiro mundo».
A segunda discordância tem a ver com a desvalorização da sobrevivência – naturalmente adaptada a diferentes circunstâncias – do legado simbólico do argentino. Em artigo aparecido há dias no El Pais, Iván de la Nuez, o ensaísta cubano que vive em Barcelona, autor de Fantasia Roja. Los intelectuales de izquierdas y la Revolución cubana, coloca a questão em termos que me parecem correctos, ao considerar que, se para a direita o «fetiche do Che» é «uma derrota cultural após uma vitória política», ao invés, para a esquerda, sobretudo para a actual esquerda radical, a manipulação desse fetiche significa «uma vitória cultural depois de uma derrota política». Quer se queira ou não, quer se goste ou não – e independentemente da imputação fundamentada de actos de barbárie que tem vindo a ser feita ao Che-homem de Estado – a verdade é que a sua auréola de idealista e de herói, a capacidade de sedução de alguns dos valores que orientaram a sua intervenção, a própria noção da violência revolucionária como necessidade, permanecem activas no imaginário de uma parte substancial das gerações mais recentes. Ainda que, muitas vezes, sob a capa de um ícone pop. Sobreviveram aos quarenta anos que, no próximo dia 9, se perfazem sobre a data da sua morte. E sobreviveram à própria decadência e anunciada morte dessa crença marxista e leninista que, muito antes de Fidel, o próprio Che assumiu como sua.
Artigo escrito a 6 de Outubro de 2007
Os seus livros
Um homem que amou muito os livros despediu-se dos livros que tanto amou. Não porque deixasse de os querer para si, mas apenas porque, aos 90 anos, no pleno uso das suas faculdades intelectuais, a vista simplesmente já não lhe obedece. Olhou os seus livros uma última vez, virou costas e foi à sua nova vida de estantes vazias. Conheço poucas histórias de renascimento tão tristes quanto esta.