«Os 100 Dias»

Para um inventário do anedotário jornalístico de 2007: com um destaque idêntico aquele atribuído ao funeral de Benazzir Bhutto e à vaga de violência que o acompanhou, os telejornais recordaram ontem «os 100 dias no desemprego» do treinador de futebol José Mourinho. A normalização da falta de sensibilidade e de civismo associada à mais genuína estupidez.

    Etc.

    Déjà vu

    O último e mais substancial daqueles que, no Syllabus da encíclica Quanta Cura (1864), o papa Pio IX considerou serem os oitenta «principais erros» do seu tempo, consistia em aceitar que «o Pontífice Romano tem de se reconciliar e acordar com o progresso, o liberalismo e a civilização moderna». Condenava-se ali, sem contemplações, aquilo que na altura era associado à chamada «heresia do americanismo»: a defesa da liberdade de religião e da liberdade de pensamento, bem como o reconhecimento da separação da Igreja do Estado. Lê-se o relato da manifestação que decorreu hoje em Espanha, organizada pelo Arcebispado de Madrid, com perto de um milhão de pessoas a gritarem na rua «por la familia cristiana» e «contra el laicismo radical», e sobrevém uma enjoativa sensação de déjà vu. Mas também de receio e incerteza.

      Atualidade, História

      Vício solitário

      Dentro do grupo dos fumadores, faço parte de uma minoria que vai ser especialmente oprimida a partir do dia 1 de Janeiro. Acontece que gosto de fumar mas não sou viciado em tabaco: fumo apenas enquanto leio ou escrevo, no final de uma refeição mais forte ou demorada, em alturas sociais como jantares de amigos, aniversários, casamentos ou funerais. Além disso, pergunto sempre se incomodo antes de acender o cigarro, a cigarrilha ou um ocasional charuto, e jamais o faço em reuniões ou salas-de-espera, ou perto de crianças e de idosos não-fumadores. Depois não «travo o fumo», não o engulo, saboreio-o simplesmente, expelindo-o devagar e, por vezes, limpando com as mãos a nuvem que se forma. Um maço dá-me assim, à vontade, para três ou quatro dias. Na verdade fumo «culturalmente», levado, como acontece com todos os que fazem parte desta minoria, apenas pelo gosto genuíno de fumar e pela memória preservada do gesto. Parece-me assim injusto – além da nada razoável – que um hábito educado e pacífico passe a ser tomado como novo «pecado do vício solitário», execrado pelos moralistas de turno. Mas não me espantarei se estes vierem dizer-nos que provoca a cegueira, causa a impotência e conduz ao inferno.

        Apontamentos, Olhares

        O cão que mordeu o homem

        O telejornal da SIC tem abusado dos grandes planos de um dos pivots acompanhados de uma legenda que anuncia «ÚLTIMA HORA» sobre um fundo a vermelho. Na noite de ontem, a chamada de atenção da apresentadora Clara de Sousa serviu para anunciar «a contratação do treinador português Artur Jorge pela selecção de futebol do Irão». Isto «após outros três grandes treinadores internacionais terem rejeitado o convite da federação iraniana». Gostava muito de saber em que escola de jornalismo se ensina esta técnica idiota para ludibriar o espectador e descredibilizar o próprio conceito de notícia de impacto. Só por curiosidade.

          Apontamentos

          Descrença

          Creio que comecei a descrer por causa do Natal. Talvez por esperar que naquela noite um anjo me batesse à porta para anunciar: «e agora qualquer coisa de completamente diferente». Podia ser um sinal no céu, ou um enorme trovão, ou, melhor ainda, uma chuva de chocolates Candy-Bar (na época os meus preferidos). Mas nada, sempre nada. E cansei-me de tanto esperar. Talvez por isso, cada 26 de Dezembro passou para mim a ser um dia de conforto e bonança, no qual a ordem do mundo retoma o seu caminho sem qualquer mistério, equívocos ou truques baratos.

            Apontamentos

            Escritores da Liberdade

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            No âmbito de uma das correntes que neste momento deslizam entre os blogues que se expressam em português, Joana Lopes considerou-me merecedor do «Prémio Escritores da Liberdade». Agradeço a lembrança e a simpatia, perdoando-lhe o exagero óbvio. Desta vez, porém, não me sinto capaz de manter a esperada sequência. Procurando não ser demasiado verboso – e menos ainda um grande chato – tento explicar porquê.

            Como poderemos encontrar, no universo dos blogues, um «escritor da liberdade»? Um dos critérios será, naturalmente, seguir a trajectória do blogger, confirmando tanto quanto possível o seu papel, pela escrita e pela acção, e em todas as circunstâncias, na defesa da democracia e na afirmação da liberdade de expressão. Não vale, por exemplo, um resistente antifascista que no passado tenha fechado ou que hoje feche os olhos a múltiplas formas de coação da livre expressão da palavra. Esse jamais será um «escritor da liberdade».

            Outro critério, mais lato e difícil de definir, situá-lo-á como aquele que actualmente seja capaz de pensar de forma autónoma e de exercer o direito à crítica sem pensar se aquilo que escreve ou diz se conforma com este ou aquele modelo. Chamemos-lhe escritor-herói: o que sistematicamente utiliza os instrumentos que tem à mão – um blogue, por exemplo – para escapar à lógica de padronização e de conivência que domina hoje a política e a comunicação social mainstream. E, mesmo de entre estes, só poderão verdadeiramente contar aqueles que forem capazes de exercer até ao fim a responsabilidade e a convicção do seu gesto, dando o nome, um contacto, e, quando necessário, também a cara. De outra forma, a sua ousadia facilmente se transforma em nada.

            Nestas condições e feitas as contas – que não consideram muitos dos que já foram premiados, entre eles alguns dos nossos comuns amigos –, peço desculpa mas confesso-me incapaz de apontar mais do que dois ou três bloggers que conheço suficientemente bem para garantir a justeza do distintivo. Como julgo que eles pensam mais ou menos como eu, prefiro não os desafiar.

              Apontamentos, Memória

              Prémio Pessoa

              Ainda que com atraso, não posso deixar de referir a merecida atribuição do Prémio Pessoa 2007 à historiadora Irene Flunser Pimentel. Para além desta distinção chamar a atenção de um público alargado para releituras não-assépticas de alguns temas da história portuguesa recente (as organizações femininas no Estado Novo, os judeus em Portugal durante a Segunda Guerra Mundial, a PIDE e a censura, a propaganda da Mocidade Portuguesa Feminina, e, ao que se anuncia, também a vida de José Afonso), ela valoriza igualmente a requalificação da História como instrumento da cidadania. Permitindo ver de que forma se podem conjugar método e rigor com esse «dever de memória» que constitui, afinal, desde pelo menos Heródoto, a essência da própria actividade historiográfica. E mostrando como, neste campo, é possível – e também urgente – escrever ao mesmo tempo para dentro e para fora da academia. Sem que essa escolha implique necessariamente uma simplificação do discurso ou um abrandamento do seu grau de fundamentação. Os meus parabéns a Irene Pimentel.

                Atualidade, História, Memória

                Livros e mais livros

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                São numerosos os blogues portugueses que falam habitualmente de livros, mas poucos os que se ocupam sobretudo dos livros. E menos ainda aqueles que procuram acompanhar de perto a actividade editorial, oferecendo com regularidade, para além de artigos sobre outros assuntos, leituras críticas actualizadas e consistentes. Nesta altura, talvez só o Da Literatura, animado por Eduardo Pitta e João Paulo Sousa, e em parte A Origem das Espécies, de Francisco José Viegas, o tenham vindo a fazer sem quebras aparentes. Chega agora, porém, o Bibliotecário de Babel, da iniciativa do jornalista, crítico e «veterano da blogosfera» José Mário Silva (um dos animadores do saudoso Blog de Esquerda, que fechou sem deixar substituto à altura). Além das notas críticas regulares e de alguns apontamentos avulsos, o José Mário oferece também informação actualizada sobre o universo dos livros, dos escritores e da edição, colocando ao nosso dispor uma excelente ferramenta. Assim consiga, ao que parece inteiramente a solo, manter a energia com a qual arranca. Um único reparo para aspectos do grafismo – a dimensão das colunas, as cores em tonalidades light, as fontes escolhidas, em particular a usada na citação que encima a coluna da direita – que atenuam um pouco o prazer da leitura deste interessante (e, espera-se, brevemente babélico) Bibliotecário.

                  Novidades

                  «Meia prostituta, meia freira»

                  Como adenda ao post Outubro (7), um fragmento de Anna Akhmatova, essa «mulherzinha fanática», «meia prostituta, meia freira», «representante típica de uma poesia vazia e desprovida de ideias, estranha ao nosso povo», de acordo com as palavras públicas de A. Jdanov. Akhmatova seria excluída da União dos Escritores e proibida de publicar durante décadas. Muitos poemas seus circularam, todavia, em versões samizdat.

                  Fiquei a saber como murcham os rostos
                  como das pálpebras o medo assoma,
                  como o sofrimento escreve nas faces
                  rijas páginas de escrita cuneiforme,
                  como se tornam súbito prateadas
                  as madeixas ruças, madeixas pretas,
                  murcha o sorriso nos lábios subjugados
                  e no risinho seco tremem medos.
                  E estou a rezar não só por mim, mas
                  por todas que estiveram ali comigo
                  no calor de Julho e no frio cruel
                  junto ao muro vermelho e cego.
                  (…)
                  Porque receio esquecer, na morte calma,
                  o ribombar dos carros negros, o estalido
                  da porta odiosa, e como uivava
                  uma velha, tal um animal ferido.
                  Que das pálpebras imóveis de bronze
                  corra, como lágrimas, derretida neve
                  e a pomba da prisão arrulhe ao longe
                  e naveguem lentas as naves pelo Neva.

                  De Só o Sangue Cheira a Sangue (Assírio & Alvim)
                  Trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra

                    História, Recortes

                    Quelqu’un m’a dit

                    Anda meio mundo atarantado pelo facto de Mademoiselle Carla Bruni Tedeschi ser, ao que parece, a nova namorada de Monsieur Sarkozy. Não percebo o porquê do espanto: já ouviram bem as cançonetas melífluas e soporíferas da moça? «On me dit que nos vies ne valent pas grand chose, / Elles passent en un instant comme fanent les roses.» Incomodar-se com o caso, só mesmo por despeito.

                      Apontamentos, Etc.

                      Os melhores

                      Desconfio sempre de toda a iniciativa que procure dizer-me quais são «os melhores» nisto ou naquilo. Sejam eles restaurantes, vinhos, livros, perfumes, futebolistas ou mesmo… blogues. Nada tenho contra os prémios – nunca pensei devolver os poucos que ganhei – e parece-me bem que se premeiem publicamente qualidades ou capacidades. Mas referir «os melhores» sem explicar o porquê da designação parece-me uma forma de contornar o carácter relativo que comporta sempre um qualificativo dessa natureza. E a situação piora quando um suposto critério de qualidade («o melhor») é determinado por um factor essencialmente quantitativo: o maior número de votos obtidos numa votação assente em critérios vagos e subjectivos de gosto ou simpatia (para além de não imune, por vezes, a uma «chapelada» garantida por amigos, companheiros e clientes). Como dizer que só porque ganhou as últimas eleições legislativas José Sócrates é «o melhor político português». Ou porque vendeu não sei quantas centenas de milhares de exemplares de cada um dos seus livros José Rodrigues dos Santos é «o melhor escritor lusitano». Ou porque Salazar foi votado «o maior português de sempre» tenha sido de facto «o maior». Absurdo, não é?

                      Parece-me por isso de uma grande lucidez o comentário à sua própria vitória feito pelo autor do Bitaites, vencedor absoluto da interessante e repercutente iniciativa O Melhor Blog Português de 2007. Parabéns, dos sinceros, pela pedagógica honestidade. E pelo prémio também, naturalmente.

                        Atualidade, Cibercultura, Etc.

                        A culpa não é do norte

                        Quando Cavaco Silva comentou no Porto o «caso sério» consubstanciado na vaga de criminalidade organizada que tem afectado o outrora florescente «negócio da noite» da cidade, referindo a necessidade de investigá-la criteriosamente, teve o cuidado de enfatizar o facto de «já terem ocorrido também problemas destes em Lisboa». Como quem diz: «não leveis a mal, mui nobres e sempre leais cidadãos da Invicta urbe, pois isto de perseguir estes gangsters não se trata de uma agressão torpe e soez dos sarracenos da capital». Cavaco, que para mais é quase berbere – algarvio, para ser mais preciso –, sofre também dessa «culpa do homem do sul» que tende a afectar um grande número dos nossos políticos nascidos abaixo da bacia hidrográfica do Douro, tratando o Porto com os paninhos particularmente aquecidos que não utilizam quando têm de lidar com Valença do Minho ou Vila Pouca de Aguiar. Eu se fosse do Porto sentir-me-ia seriamente descriminado.

                          Apontamentos

                          O aquário azul

                          No grande ecrã de plasma da superfície comercial, o cenário era azul, as luzes azuis, os rostos azulados pela refracção. A voz azul era a do fado pirotécnico de Dulce Pontes. Os fatos pareciam também eles azuis, embora o efeito luminoso pudesse contribuir para matizar o cinza-escuro. Enquanto os líderes europeus assinavam o Tratado Reformador da União, os liderados circulavam distraídos, alheios às imagens da refundação de uma Europa sem chama. Em tonalidades apagadas de um azul de aquário.

                            Atualidade, Olhares

                            Do lado errado da praia

                            eccebombo.jpg

                            Em Ecce Bombo, de Nanni Moretti (de 1978, mas editado agora em DVD nacional), uma sequência tão divertida quanto comovedora funciona como metáfora, talvez simples mas esplêndida, das expectativas, certezas e desilusões que invariavelmente se encontram na perseguição da felicidade. O grupo de jovens amigos que percorre o filme conversa madrugada afora e todos decidem ir até uma praia ver o sol nascer. Horas depois, surpreendidos, reparam que afinal já é dia. Tinham-se deixado adormecer e, além disso, encontravam-se do lado errado da praia.

                              Cinema, Olhares

                              Of course, Mr. Mugabe

                              Como seria de esperar, a defesa de Mugabe diante das suaves críticas sobre a situação dos direitos humanos no seu país que teve de ouvir durante a cimeira UE-África centrou-se na recordação do papel histórico das antigas lutas de libertação do jugo colonial – parece que elas justificam a longa licença sabática da democracia em África – e na «arrogância» ou no «complexo de superioridade» dos governantes europeus brancos que fizeram essas críticas. Aguarda-se que os defensores locais das atrocidades consideradas «compreensíveis», ou mesmo «justificáveis» (ainda que eventualmente «lamentáveis»), em nome da emancipação de um sempre luciferino «Norte» e dos direitos perpetuamente legítimos do «Outro» – seja ele qual for, desde que seja de facto «Outro» –, façam agora ouvir a habitual lengalenga.

                                Atualidade

                                Nostalgia vermelha

                                ODiario.info – uma revista electrónica apostada em ressuscitar, a partir das profundezas da memória, o espectro do antigo jornal da «verdade a que temos direito» –, acaba de editar, entre outros textos igualmente delirantes, um pedaço de prosa sobre a «revolução bolivariana» que se revela bastante pitoresco. Assinado pelos editores (José Paulo Gascão, Miguel Urbano Rodrigues e Rui Namorado Rosa), tem a particularidade de afirmar, preto no branco, aquilo que muitos dos membros da sua família política pensa, ou sonha, mas não tem o atrevimento de escrever. Nele se proclama entusiasticamente que «na pátria de Bolívar avança com ímpeto uma revolução que empolga os povos da América Latina e alarma o imperialismo pela sua meta assumida: o socialismo» e se lembra que a existência de desafios durante a «transição do capitalismo para o socialismo» constituirá sempre «um ensinamento inesquecível» desse «andamento maravilhoso e dramático da Revolução de Outubro de 17». Quando falam de uns malvados «trotskistas, anarquistas e toda uma chusma de intelectuais pseudo revolucionários – os pequeno burgueses enraivecidos de que já falava Lenine» que «somam agora as suas vozes às do imperialismo para profetizar o fim da revolução bolivariana» tenho a impressão que os autores se estão a referir a alguém mas não tenho a certeza de quem seja.

                                  Devaneios, Recortes