Socorrendo leitores compulsivos deste blogue «reaccionário» – estou a citar – capazes de levarem a sua filantropia ao ponto de considerarem que ele não se percebe, mas continuando ao mesmo tempo a consumir algum do seu precioso tempo a lê-lo e a oferecerem palpites, em vez de irem passear o cachorro ou de passarem um serão a ouvir cassetes de 90′ da Orquestra e Coros do Exército Vermelho (pentear macacos também pode ser uma boa alternativa, embora à noite o Zoológico esteja fechado), aqui vai uma dica: literalista é um adjectivo e um substantivo dos dois géneros que se refere àquele ou àquela que, por opção ou inépcia, se restringe à interpretação literal dos textos. Melhor não sei explicar.
Magalhanês em 10 lições
1 – O Tux escondeu algumas coisas. Encontra-las na boa ordem.
2 – Dirije o guindaste e copía o modelo.
3 – Pega as imagens na esquerda e mete-las nos pontos vermelhos.
4 – Primeiro, organiza bem os elementos para poder contar-los.
5 – Quando acabas-te, carrega no botão OK.
6 – Abaixo da grua, vai achar quatro setas que te permitem de mexer os elementos.
7 – Com o teclado, escreve o número de pontos que vês nos dados que caêm.
8 – Tens a certeza que queres saír?
9 – Aprende a escrever texto num processador. Este processador é especial em que obriga o uso de estilos.
10 – Quando o tangram for dito frequentemente ser antigo, sua existência foi somente verificada em 1800.
[Fonte: Expresso]
A firma responsável por esta estufa de horrores diz terem sido os mesmos provocados por um programa de tradução automática. A desculpa, neste caso, apenas agrava a culpa. A culpa da empresa que produziu os conteúdos, a daquela que vende o produto, e a das entidades escolares e governamentais que distribuíram o computador sem fazerem a necessária revisão.
Da pág. 161, que venha a quinta
Recebo do Francisco José Viegas, que já antes o havia recebido de alguém que entretanto nomeou, um desafio que me desperta. E me leva a quebrar o vago compromisso que havia declarado de meter uma sabática ilimitada em matéria de cadeias-na-linha (prudente, tinha no entanto deixado claro que galgaria o prometido se o desafio fosse irrecusável, sendo afinal este o caso). A proposta é transcrever a quinta frase do texto da página 161 do livro que por estes dias tenho mais à mão. Não preciso de um grande esforço físico, felizmente: estendo a dita e o resultado é surpreendente: «…don’t you know little fool, you never can win?». Uma linha agridoce de Cole Porter em I’ve got you under my skin. A quinta frase, da página 161 da Obra Completa de Nuno Bragança. Aqui n’A Noite o Riso, o romance em forma de tríptico datado de 1969. Segue o desafio para o Luís Januário (ele não gosta de empreitadas, eu sei), a enigmática Miss Allen, o Sr. Pamplinas, a Cristina Gomes da Silva e a Joana Amaral Dias.
No dia seguinte: Acabo de reparar que tinha há alguns meses atrás respondido já a um repto rigorosamente igual àquele ao qual responde este post. O curso rápido da informação amarfanha-nos a memória e leva-nos a pequenos lapsos destes. Todavia, a enunciação pública de duas 5as. frases de duas páginas 161 é qualquer coisa que fica sempre bem no currículo de um blogger.
À volta do Império do Meio
Adaptação do original publicado na revista LER de Fevereiro
Os chineses denominam a China de Zhongguo, traduzido no passado como Império do Meio e hoje como País do Centro. A designação reflecte uma visão sinocêntrica do mundo, concebendo-se inicialmente Zhongguo como a quase totalidade da terra conhecida, cercada apenas por alguns potentados tributários que se submetiam ao poder do imperador. Do lado de fora, a distância geográfica, a efabulação presente nos escassos relatos e as imagens de exotismo colocavam os chineses num mundo à parte, admirado ou temido mas sempre estranho e insulado. Dentro e fora da Grande Muralha e das linhas de fronteira, fixava-se um desconhecimento mútuo, que já só no século XX, com a expulsão do último imperador da Cidade Proibida, o estrépito planetário da Revolução Cultural, ou, mais recentemente, a abertura económica ao mundo, pôde ser abalado. Mas como diz Harry G. Gelber neste O Dragão e os Diabos Estrangeiros, o fluxo e o refluxo do interesse dos outros Estados e das outras sociedades pela China tem sido relativamente ignorado.
O que esta obra se propõe desenvolver não é, pois, uma mera história da China a partir do seu desenvolvimento interno, mas sim uma narrativa das ligações entre os chineses e o resto do mundo apoiada em três vertentes, conferindo-se especial ênfase ao modo como esse relacionamento determinou, e continua a determinar, a vida interna do imenso Estado e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do seu lugar no mundo. A primeira vertente aborda as relações físicas propriamente ditas, o contacto, frequentes vezes violento, dos chineses com outros povos: desde as primeiras incursões dos cavaleiros das estepes até às conquistas mongóis do século XIII, continuando depois com a chegada dos primeiros europeus, e prosseguindo até fechar com as reacções estrangeiras aos acontecimentos da Praça Tienanmen, em 1989. A segunda procura explicar o que movia as diversas potências no processo de aproximação ou de intervenção no território ou na política interna da China. A terceira identifica e documenta três problemas que se têm mantido recorrentes durante um tão longo período, determinando regularmente a vida interna chinesa e o relacionamento com o exterior: o enorme crescimento populacional, o carácter centralista e personalizado da administração central, e a volatilidade das fronteiras.
Como seria de esperar numa obra desta natureza escrita no início do século XXI, acompanhando a preocupação com este tipo de relacionamento encontra-se sempre o lugar de destaque que a China ocupa hoje no mundo. No capítulo final, «A Caminho do Futuro?», considera-se o seu papel de relevo no domínio da ciência e da tecnologia, bem como o modo como interfere nas actuais tendências da economia mundial, evidenciando um crescente peso na balança do poder global e criando as melhores condições para um retorno daquele medo que fora das suas fronteiras sempre despertou.
Harry G. Gelber, O Dragão e os Diabos Estrangeiros. A China e o Mundo, de 1100 a.C. até à actualidade. Tradução de Pedro Garcia Rosado. Guerra e Paz, 568 págs.
Sopa
Felizmente Leila Deen, uma simpática activista do grupo de acção directa Plane Stupid, não vive em Pequim, Havana ou Minsk e pode começar por atirar uma espécie de sopa verde à cara de um ministro falando de seguida, na maior das calmas, para as estações de televisão.
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Insolente à maneira de Xerxes
Segundo notícia do Guardian, as autoridades iranianas, em comunicado lido por um conselheiro do presidente Ahmadinejad, investiram agora contra a indústria ocidental de cinema, que acusam de ter atacado injustamente o povo iraniano e a sua revolução. Ao mesmo tempo exigem que Hollywood peça «desculpas aos iranianos pelos insultos e acusações feitos nos últimos 30 anos». Uma vez mais, aquela que poderia ser uma crítica justa a perspectivas etnocêntricas, em forma de propaganda, que podem produzir maus resultados, transformou-se numa acusação agressiva e arrogante contra a liberdade de criação e de expressão nefastamente «ocidental» que o governo iraniano considera desprezível. Um dos exemplos apontados, acusado de ter descrito os persas como bárbaros e de ser «uma completa mentira», é o filme 300, de Zack Snyder – construído a partir da banda desenhada de Frank Miller e Lynn Varley, e, claro, do relato de Heródoto – cujo argumento se serviu do combate desigual, travado em 480 a.C. no desfiladeiro das Termópilas pelo rei Leónidas, acompanhado de três centenas de combatentes espartanos, contra as tropas de Xerxes, numericamente muito superiores, que haviam invadido a Grécia central.
Deve dizer-se que o filme, estreado nos inícios de 2007 e rapidamente proibido no Irão, ensaia principalmente um devaneio, com uma fortíssima carga plástica, sobre o lugar de Esparta num combate «pela liberdade» – embora na realidade Esparta fosse dirigida por uma oligarquia militarista – contra os ímpetos despóticos do rei dos persas. Um filme que incorpora personagens mágicos, violentos ou grotescos que mais parecem caricaturas do bestiário de Tolkien, e representa os medo-persas como chacais um tanto estúpidos, ora medonhos, ora efeminados, e sempre amorais. Para além disso, trata-se de uma obra graficamente concebida como uma espécie de jogo de computador – até a coreografia dos duelos e das batalhas acompanha muito de perto a sua mecânica feita de impulsos – que parece apenas mais uma daquelas experiências de cinema romanesco de aventuras, a tender, como milhares de outras do mesmo género, para o extremar da separação política entre bons e maus, heróis e vilões. Com os do lado de lá do Mar Egeu a desempenharem, naturalmente, o papel desagradável.
Percebe-se no entanto, pelo menos em parte, o «argumento» iraniano contra este filme, pois os espartanos eram gregos, e os exércitos gregos defrontaram durante séculos aqueles que se organizavam para lá da Anatólia para os combater. Num e noutro sentido: Ciro, Dario e Xerxes avançado para cá, Temístocles e Alexandre o Grande marchando para lá, num espadeirar longínquo que alimentou ressentimentos para muitos séculos. Tudo isso deixou um rastro profundo na memória colectiva. Porém, o que aqui Ahmadinejad verdadeiramente pretende agredir é o modelo de cultura ocidental que tem no mundo grego – ainda que neste os espartanos fossem uns párias, embora uns párias temidos – o seu torrão fundador.
A história é bem conhecida, mas pode ser relembrada. Tudo começou nos séculos VI e V a.C, quando, em poucas gerações, os gregos inventaram a tragédia, o debate democrático, a cultura científica, o relato histórico, a reflexão filosófica. Tendo a perfeita consciência de estarem a criar valores e liberdades que não existiam em mais lado algum. Aos restantes povos chamavam eles de «bárbaros» que não eram senão «todos os outros», aqueles que não falavam a língua grega e que não viviam como cidadãos, sem leis comuns e submetidos a déspotas. Foi esta noção de possuírem aquilo a que hoje chamaríamos uma identidade própria, mais humana do seu ponto de vista, o que de mais profundo os gregos legaram aos romanos e que, através destes, se espalhou depois pelas regiões «a Ocidente», isto é, do lado no qual o sol se põe para quem circula por terra e por mar em redor da península balcânica. Pelo lado de lá, a Oriente do Ocidente, principalmente nas áreas por onde os iranianos procuram hoje impor a sua hegemonia, distribuíam-se – a expressão foi usada por Marx antes de Weber a retomar – formas múltiplas de um execrado «despotismo oriental» que reduzia a grande massa dos seus naturais ao estado servil e, por vezes, dela se servia como máquina de guerra. Dois universos, ambos imperfeitos mas absolutamente opostos, com destinos históricos também eles contrários, padrões de desenvolvimento muito diversos e, ao contrário daquilo que um dia Montesquieu desejou, experiências de vida comum que se foram sempre confrontando. É este cenário, definido durante séculos com um vencedor um tanto arrogante e um vencido por vezes humilhado, que Ahmadinejad, insolente à maneira de Xerxes, pretende agora fazer reverter.
Querida nostalgia
FNAC de Coimbra, manhã de sábado.
Onde fica a revolução?
De acordo com um artigo publicado há menos de um mês no The Economist, e devido sobretudo ao rápido crescimento dos chamados países emergentes, pela primeira vez na História mais de metade da população mundial é composta por pessoas da classe-média. Mesmo vivendo em numerosos casos com dificuldades, pessoas que dispõem de automóvel, conta bancária, cartão de crédito, telemóvel, muitas vezes casa própria. Os «partidos da classe operária» estarão assim, por imposição da realidade, condenados a tornarem-se partidos de trincheira, exilados na nostalgia de um mundo que se perdeu e na recusa de um presente que lhes foge. Esperando que tudo piore e as chaminés voltem a fumegar, espalhando limalha e extremando atitudes, para poderem retomar o seu caminho redentor. Marx «regressa» na pior altura.
Créditos: JCN, através do Twitter
Sinais de esperança
Em O Estilo do Mundo. A vida no capitalismo de ficção, Vicente Verdú separa três modelos de capitalismo: o de produção, centrado na mercadoria, encerrado com a Segunda Guerra Mundial; o de consumo, rematado com a demolição do Muro de Berlim e apoiado na transcendência dos signos; e o de ficção, com o qual convivemos desde os começos dos anos noventa, que enfatiza a teatralidade e o espectáculo. A cada um deles alia sinais: primeiro o estrondo das máquinas industriais, depois os jingles dos anúncios comerciais, finalmente o cintilar dos engenhos electrónicos. Mas também estados de espírito: o capitalismo de produção era triste, o de consumo foi trivial, agora o de ficção é lúdico e enganador. Fundado no prazer, na sedução e no logro da imortalidade, define características preocupantes, como uma tendência homogeneizadora que os processos da globalização acentuam, uma infantilização dos costumes alargada a toda a vida, uma competitividade que desvaloriza o humano em detrimento do desejo de superação do próximo, de vitória sobre os outros. Detectam-se, todavia, alguns sinais de esperança, como a vaga de defesa dos particularismos e das identidades, o desenvolvimento das organizações humanitárias, o alargamento dos movimentos pacifistas, a emergência de um feminismo libertador, uma consciência ecológica sem precedentes. O capitalismo de ficção terá, afinal, inflamado o crescimento de factores que poderão levar à sua própria destruição. É este, pelo menos, o desejo de Verdú. [Trad. de Pedro Santa María de Abreu. Fim de Século, 248 págs. Originalmente na LER de Fevereiro.]
Alto preço
«Ao mesmo tempo que se luta em defesa do véu islâmico no Ocidente, luta-se contra ele nos países de origem.» Na constatação deste paradoxo se resume o ponto de partida para O Preço do Véu. A guerra do Islão contra as mulheres, o livro militante de Giuliana Sgrena, a jornalista do Il Manifesto que em 2005 foi sequestrada por uma organização islamita iraquiana. A autora identifica rapidamente o objectivo do livro: «trazer à luz uma realidade pouco conhecida e pouco contada: a presença nos países muçulmanos de mulheres (mas também de homens) que se batem pelos seus direitos». Explorando, através do trabalho de reportagem e de diversas entrevistas, a situação das mulheres de países como a Tunísia, a Sérvia, o Iraque, o Irão, a Arábia Saudita, a Bósnia-Herzgovina, a Palestina, o Afeganistão, a Somália ou a Argélia, Sgrena procura mostrar de que forma o uso do véu representa, como símbolo mas sobretudo através do processo de negação objectiva do corpo que a sua imposição envolve, a opressão da mulher no mundo islâmico e o recente reforço de uma ordem acentuadamente masculina, implacável e reaccionária. O silêncio dos activistas ocidentais empenhados em não melindrar uma incerta e complexa «identidade muçulmana» também não sai incólume destas páginas. [Trad. de Alexandre Vaz Pereira, Pedra da Lua, 116 págs. Originalmente na LER de Fevereiro.]
Dos bons velhos tempos
Os negacionistas do Gulag e dos crimes do estalinismo continuam a preparar o seu caminho, contando para isso também com a cumplicidade activa das actuais autoridades chauvinistas russas. Começam por tentar sonegar informação para logo de seguida procurarem silenciar quem está em condições de a fornecer. Pode conhecer aqui o mais recente episódio deste processo repugnante.
Arendt, Aristóteles e o Hi5
Em Homens em Tempos Sombrios, Hannah Arendt revela a sua forma de conceber a amizade. Contra Rousseau, julga-a menor sempre que entendida apenas «como um fenómeno da esfera da intimidade, em que os amigos abrem o coração uns aos outros, alheados do mundo e das suas exigências.» É essa, considera, uma forma de insulamento do indivíduo moderno, «que na sua relação em relação ao mundo só se consegue revelar verdadeiramente na privacidade e intimidade dos encontros frente a frente.» Arendt revaloriza então a philia, essa amizade entre cidadãos, que para Aristóteles era um dos requisitos fundamentais para o bem-estar da Cidade e se materializava num diálogo aberto à comunidade dos seres humanos livres. Amizade e humanidade coincidem assim na exposição pública da voz humana: «Por muito que as coisas do mundo nos afectem, por muito profundamente que nos abalem e nos estimulem, só se tornam humanas para nós quando podemos discuti-las com os nossos semelhantes.» Por isso tudo quanto não possa ser objecto de diálogo – «o verdadeiramente sublime, o verdadeiramente horrível ou o misterioso» – pode encontrar, é certo, uma voz humana através da qual se exprima, mas jamais será exactamente humano. Os gregos davam a essa humanidade que se alcança no diálogo da amizade a designação de philantropia, «amor do homem», porque se afirma na vontade de partilhar o mundo com os outros.
Esta condição encontra hoje um novo lugar nas redes sociais da Internet, que tanto abalam quem ainda prefira associar a essência da amizade apenas a uma simpatia durável, estabelecida face a face entre duas pessoas e assente em afinidades ou experiências partilhadas exclusivamente na esfera do privado. Por muito nebulosos que possam parecer alguns dos seus caminhos, por perturbantes que sejam para a vida de quem os pratica alguns dos seus processos, por efémera que seja a maioria das ligações que estabelecem, essas redes têm a virtualidade, em tempos de individualismo e de quebra de participação na vida pública, de recuperarem, de uma certa maneira, a noção política de amizade que Aristóteles enunciou e que Arendt perfilhava. E quando repetidamente recuso, por incapacidade física de resposta diante de tanta actividade, os constantes pedidos que recebo para «fazer amizade» com Fulano, Beltrano ou Cicrano no Hi5, no Facebook, no Flickr ou no My Space, sei que posso com esse gesto estar a diminuir a minha capacidade para alargar uma relação filantrópica em condições, apesar de paradoxalmente chegar pela via das máquinas, de me humanizar um pouco mais. Por isso, quando sou forçado a varrer da Inbox as mensagens contendo os tais pedidos – «I’d like to add you to my hi5 friends network. You have to confirm that we are friends, and we’ll each get to meet more people.» – faço-o sempre com um ténue e sincero sentimento de culpa.
Lenine, Krupskaia e Tzara
Não sei onde foi a revista Os Meus Livros buscar a ideia segundo a qual o escritor e ensaísta francês Dominique Noguez acaba de publicar um livro que «coloca em causa o pensamento e a obra de Lenine», afirmando, «após anos de aturada pesquisa» que afinal este era um dadaísta. A verdade é que Lenine Dada, um híbrido de ensaio histórico e de ficção, foi publicado há já vinte anos, em 1989, na Robert Laffont. Imaginando a possibilidade um instante único na história contemporânea da Europa: o encontro de 1916 no Cabaret Voltaire, em Zurique, entre o poeta romeno-francês Tristan Tzara, paizinho do Dada, e Vladimir Illitch, o já então inflexível chefe dos bolcheviques. Em 1916, Lenine e Nadezda Konstantínovna Krupskaia viveram de facto, de casa e pucarinho, a dez minutos a pé do Cabaret Voltaire, mas jamais se deram com semelhante gente. O livro não é novo e não coloca em causa coisíssima nenhuma. Uma nota destas apenas deixa ficar mal a publicação e levanta algumas suspeitas sobre o rigor da informação que fornece.
Haruki vezes dois
Durante um jogo da Liga portuguesa, dizia há dias um comentador referindo-se a dois futebolistas brasileiros: «eles entendem-se pois falam ambos brasileiro». A língua é uma, embora não una, e a rapidez da compreensão nem sempre é fácil sem retroversão automática e gestos à mistura. Dentro do Brasil, dentro de Portugal, ou num voo que desça o mapa na direcção do Atlântico Sul. E tudo se enreda quando, com a língua que repartimos, cada um se refere à mesma coisa enunciando palavras que não coincidem. Leio de maneira diversa, consoante traduzo ou não a tradução de um título que a frase incorpora, duas linhas de Rakushisha, o último romance de Adriana Lisboa: «Um dos filmes era O Poderoso Chefão. Haruki começou a assistir, era a quarta ou quinta vez que assistia àquele filme.» Ou, ajusto eu as palavras, desfigurando a autoria: «Um dos filmes era O Padrinho. Haruki começou a assistir, era a quarta ou quinta vez que assistia àquele filme.» Não se trata apenas de duas frases brandamente diferentes, são duas distintas Haruki que se nos afiguram, dois sentidos para o enredo que se separam. Desentendemo-nos por vezes, falando em português.
O espectro de Lippe
Numa reportagem da RTP1 pergunta-se a um «pupilo» do Colégio Militar: «Fizeste os exercícios porque te obrigaram ou foi para exceder os teus limites?» A infâmia da pergunta imbecil e a presunção da resposta condicionada não merecem sequer um comentário, mas o caso que motivou a peça deve ser olhado com alguma atenção. Ele veio relatado no Expresso deste sábado e conta-se em poucas palavras. Um aluno de 17 anos foi condenado a quatro meses de prisão por maus-tratos a um colega de nove, mas a pena foi depois anulada pelo Tribunal da Relação que considerou adequado o castigo aplicado ao menor: palmadas no pescoço, flexões, abdominais, saltos de cócoras e posição de Cristo (de pé com os braços abertos). A vítima, um aluno hiperactivo, acabou por sair do Colégio, tendo os pais apresentado a queixa que conduziu a situação a tribunal. A Relação acabou por acolher o argumento de um antigo director da instituição, segundo o qual «apesar de não estar inscrito no regulamento, é habitual as faltas menos graves serem sancionadas pelos graduados com exercícios físicos». «Graduados» podem ser aqui, assinale-se, simplesmente alunos mais velhos, que assim adquirem informalmente o direito de exerceram formas de violência física sobre os novatos. A notícia refere ainda inúmeros casos de agressões, algumas delas, as mais graves, apenas associadas a ligeiras sanções internas.
Trocando isto por miúdos: um tribunal português aceitou castigos físicos praticados entre alunos do Colégio Militar como actos lícitos. Numa altura em que, finalmente (e felizmente), nas instituições de ensino superior os abusos das «praxes» começam a ser prevenidos e punidos, é no mínimo espantoso que este tipo de práticas, brutais, arcaicas e perigosas, possa sobreviver numa instituição de ensino. A aprendizagem da disciplina no trabalho e na vida faz parte de um bom processo educativo – obviamente mediada, no meio paisano como entre os militares, por condições de razoabilidade e de protecção dos direitos individuais – mas tal não pode significar a admissão do abuso de poder e da violência como «prática pedagógica» normal. Sob pena de continuarmos a formar – neste caso, de continuar o Colégio Militar a afeiçoar a este mundo – disciplinados monstrozinhos. Diz o actual director que «onde há rapazes, há sempre bulhas». O problema começa quando se considera que a suposta «naturalidade da violência» – temos aqui um director hobbesiano, nitidamente – possa ser enquadrada como instrumento normal de uma boa prática educativa. Foi o prussiano Conde de Schaumburg-Lippe quem entre nós, de 1762 a 1764, procurou associar, codificando nesse sentido os procedimentos disciplinares castrenses, a sageza militar à brutalidade dos castigos físicos e vexatórios. Mas isso aconteceu há perto de 250 anos atrás e entretanto o mundo deu umas voltas.
♪ Angels of Ashes
Fim de tarde com a chuva que regressa com o fim de Fevereiro. Agora sem televisão e sem notícias, sem ruído, sem murmúrio que não o de um velho álbum, 4, de Scott Walker. Quase uma cantiga de embalar, nua mas enfática. «The Angels of Ashes/will give back your passions/Again and again…huumm/Their light shafts/will reach through the darkness/and touch you my friend…huumm huumm». Scott tónico, vintage de 1969.
[audio:http://aterceiranoite.files.wordpress.com/2009/02/04-scott-walker-04-angels-of-ashes.mp3]Rong e Silva juntos e ao vivo
De acordo com a Lusa, um responsável do sector intelectual do Partido Comunista Chinês, Leng Rong, chefia a delegação da China ao congresso do PS português. Rong, de 56 anos, é membro suplente do Comité Central do PCC, vice-secretário da organização comunista no seio da Academia Chinesa de Ciências Sociais e director do Centro de Investigação Histórica do Partido. Augusto Santos Silva tem pois um interlocutor de gabarito e à sua altura.
Rosa, rosa, rosae, rosarum, rosis, rosis
Mas não é óbvio que a escolha dos nomes para as vice-presidências do PS (os indefectíveis prelados António Costa e Carlos César, a sempre-em-pé-não-se-percebe-porquê Edite Estrela, os críticos colaborantes Vera Jardim e Maria de Belém) apenas confirma a irrelevância destes cargos? Um bombom aos incomodativos alegristas que, como todos os bombons, dura apenas o tempo de umas voltas dentro da boca mas acalma e ilude a acidez do estômago. O resto é e será apenas unanimidade, foguetório e complacência.
Depois de escrito este post, chamaram-me a atenção para o facto destas vice-presidências se referirem à direcção da mesa do Congresso e não à do Partido. A notícia do Público online da qual me servi – e que segue em link no corpo do post – dá uma versão diferente, mas aqui fica a precisão. De toda a maneira, não me parece que o alcance simbólico dos nomes referidos e a carga política que contêm se alterem apenas por se tratar de um organismo de responsabilidade mais limitada.