Alegadamente à esquerda

No telejornal da RTP, uma peça jornalística refere o papel do coronel Jaime Neves durante o biénio revolucionário pós-Abril – o ex-comando está na calha para ser «canonizado» como major-general, sendo esse o sentido da peça – como o de alguém «que se confrontou então com militares alegadamente mais à esquerda». Utilizando a expressão que habitualmente associa a presunção de inocência ao criminoso em vias de ser julgado. Mais um sinal de tontice e de ausência de perspectiva histórica do tamanho de uma viatura Chaimite. Existem livros de todos os tamanhos sobre os episódios desse «então» e alguns até são daqueles fininhos e com muitas imagens. Ninguém os avisou?

    Apontamentos, Memória

    Resgate e redenção

    Israel

    Por onde quer que distribuam a sua acção e a sua influência, é própria de todas as religiões – mesmo das seculares – a vontade de determinar um ethos, identificado com o bem comum e a moral individual, capaz de justificar a prescrição de certas atitudes e a proscrição de outras. As religiões do livro em particular, todas elas, têm séculos de experiência neste campo. E é nesta tradição que se pode encaixar a actividade da organização não-governamental israelita JONAH – Jews Offering New Alternatives to Homosexuality – que procura prevenir e actuar sobre pessoas que sintam «atracção por outras do mesmo sexo». Como sempre, a intenção declara-se benévola: aliviar o tormento de quem sofre a sua «anormalidade», bem como o dos entes queridos destas pessoas, que com elas têm de partilhar esse lado «triste» e doloroso da vida. Afinal, declara na página oficial da JONAH o rabi Shmuel Kamenetsky, «nada existe que a Torah proíba e o ser humano não seja capaz de controlar.» Mudando de hábito de acordo com o lado onde nasce o sol, esta gente vive num mundo cerrado que roda a uma velocidade lenta, mas nem por isso deixa de procurar impor onde pode um perigoso higienismo.

      Atualidade, Democracia, Olhares, Opinião

      Os ricos que paguem a crise

      Capitalismo

      O PCP pretende que a Assembleia da República produza um quadro legislativo capaz de permitir a «criminalização do enriquecimento ilícito». Já em tempos o tentou sem sucesso, mas considera agora, «tendo em conta que a evolução e a própria vida», que existem condições para que a proposta seja aprovada. Não estou em condições de comentar a substância jurídica desta iniciativa, mas de uma coisa estou certo: naquilo a que chamamos um estado de direito ninguém pode ser julgado duas vezes, e duas vezes condenado, pelo mesmo crime. Se o enriquecimento é ilícito, existiu antes dele um acto, ou existiram diversos actos, provavelmente conjugados, que determinaram essa ilicitude. Os quais deverão, sem qualquer dúvida, ser investigados, julgados e punidos de uma forma rápida, eficaz e exemplar. Am I wrong? É que de outra forma poderemos antecipar a culpa e retornar aos tempos – por certo saudosos para os presumíveis proponentes – da abjecção proudhoniana da propriedade, da punição dos kulaks pelo facto de o serem ou da criminalização discricionária dos «sinais exteriores de riqueza».

      Adenda: No seu estilo próprio, sempre com algo de agreste que o distingue dos outros e lhe confere um sal que aprecio, Nuno Ramos de Almeida comenta este post apodando de «santa ignorância» a ausência de perspectiva que, na sua opinião, o terá determinado. Não vou contrariar o juízo, obviamente, até porque nem o Nuno sabe aquilo que eu sei nem eu domino tudo aquilo que ele conhece, mas de uma coisa pode estar certo: tenho os olhos suficientemente abertos, e experiência que baste, para distinguir a declaração de necessidade de legislação própria e ágil contra os crimes «de colarinho branco» – com a qual essencialmente concordo – da vontade indómita, presente em certos discursos, de mandar toda a gente com mais de cinco zeros no saldo bancário para as galés. É esta, pelos perigos que comporta, que me repugna. Quanto ao epíteto de «anti-comunismo» lançado sobre a intenção, talvez seja um bocadito exagerado: pelo menos tanto quanto o anátema de «anti-socialismo» lançado sobre quem apenas não aprecie José Sócrates e os seus queridos muchachos.

        Apontamentos, Atualidade

        Outubro revisitado

        1917

        Não é todos os dias que de um trabalho criterioso resulta uma noção de razoabilidade aplicada à governação de Estaline, mas é isso que acontece com este livro. Ao procurar devolver a complexidade original a um dos episódios fundadores do mundo contemporâneo que mais vezes tem sido reduzido a estereótipos, Mário Machaqueiro mostra como vale sempre a pena reapreciar, procurar os detalhes, detectar novos nexos e contradições naquilo que muitas das vezes pensamos nada mais ter para oferecer senão a repetição das evidências.

        Durante a maior parte do século passado, tanto a historiografia oficial como a oficiosa, mesmo parte daquela que poderia e deveria assumir uma maior vigilância crítica, fez eco de traços da revolução de 1917 aceites como inquestionáveis: desde logo o carácter radicalmente fundador da tomada do poder pelos bolcheviques, mas também a sua actuação colectiva como corpo submetido a uma disciplina rígida, a inscrição da sua intervenção num fluxo histórico de sentido progressivo e universalista, a dimensão unívoca e previdente da intervenção de Lenine. Nesta obra de sociologia histórica, Machaqueiro arruína esses pressupostos, mostrando de que forma a tomada do poder pelos comunistas, desde a sua fase de preparação até aos tempos iniciais de construção e defesa da nova ordem, se definiu através de processos que nada tiveram de lineares ou de previsíveis, em regra resolvidos à vista e caso a caso, entre importantes divergências, e, no que diz respeito a Lenine, definindo um percurso até bastante sinuoso, no qual a intuição e o voluntarismo se sobrepunham muitas vezes à planificação e à gestão racional da mudança.

        Aqui a transição iniciada em Outubro «deu-se menos sob a cobertura de um paradigma disponível do que sob a busca de um paradigma fugidio perante uma realidade crescentemente volátil», na qual a luta de facções no interior do próprio bolchevismo, projectada muito antes da morte de Lenine e persistindo alguns anos mais depois desta acontecer, se tornara uma constante. Só com Estaline tal estado de coisas terá sido dominado pela intervenção de uma vontade coesa, forte e demolidora. Boa parte do livro aplica-se aliás, contestando a teoria de Thomas Kuhn que fala de rupturas revolucionárias repentinas impostas por posições inconciliáveis, a estabelecer um reconhecimento detalhado dos complexos «processos de transição societal» que foram permitindo, a partir da revolução, desenhar os constantes avanços, recuos e mudanças de direcção, considerando que «só o estalinismo constituiu, a bem dizer, um paradigma societal na história da Rússia soviética.» Uma porção substancial do volume ocupa-se ainda com as construções e representações identitárias que permitem hoje «interpretar o devir da Revolução Soviética», as quais passaram, atendendo ao lugar ocupado pela Rússia e à profunda complexidade social que então a atravessava, pela centralidade de «identidades de fronteira» e de bloqueios que se mantiveram após 1917. Também neste campo, apenas a ordem estalinista acabará com a indefinição.

        Mário Machaqueiro, A Revolução Soviética, Hoje. Ensaio de releitura da revolução de 1917. Afrontamento, 344 págs. Publicado originalmente na LER de Março de 2009.

          História

          Whadda mistaka da maka!

          Bertorelli

          Não deixa de ser curiosa a forma como um certo tipo de glosador da realidade circundante – da mesma espécie que correu em passo acelerado a acusar o Bourbon madrileno de sobranceria quando este sugeriu publicamente a Hugo Chávez que simplesmente deixasse os outros falarem -, ignore agora, ou refira só de raspão, a frase pronunciada por Isabel de Inglaterra quando esta se espantou, durante a régia recepção aos políticos do G20, com o tom vagamente tumultuoso, ou no mínimo alterado para o ambiente tranquilo do Palácio de Birmingham, da voz do cavaliere Berlusconi. Como este não é Chávez, agora o escândalo morreu à nascença e os exaltados de serviço deixaram as acusações no saco. O que até é injusto, dado fazer todo o sentido estranhar-se que uma figura como Isabel II ignore os traços dominantes de um dos personagens centrais de Allo, Allo!, uma das melhores séries de comédia para a televisão produzidas no interior dos seus reais domínios. Refiro-me ao sonoro Capitão Bertorelli, obviamente, que o estrepitoso Don Silvio descaradamente plagia.

            Atualidade, Opinião

            Poética social

            Gente

            Intimidade Cultural, subintitulado Poética Social no Estado-Nação, é uma colectânea de ensaios publicada entre 1986 e 1995 pelo antropólogo Michael Herzfeld, um professor da Universidade de Harvard que há cerca de trinta anos vem pesquisando e escrevendo sobre os caminhos da Grécia contemporânea. Se existe uma orientação comum aos diversos artigos compilados, ela traduz-se na tentativa de compreender a forma como aquilo a que chamamos «valores» se incorpora na experiência das relações sociais. É neste âmbito que se coloca o que Herzfeld chama aqui de «intimidade cultural», um lugar do espaço colectivo onde os valores que os indivíduos e grupos consideram como seus se cruzam e interagem com os demais. Esta intimidade cultural apoia-se, por sua vez, numa «poética social», observada como «apresentação criativa do eu individual», e que se apresenta aqui como expressão da «função poética da linguagem»: a possibilidade, inscrita na língua e na cultura de cada um, de jogar a todo o instante com os códigos que são apropriados e emitidos pelos outros. É também abordada neste livro a integração do Estado neste processo, uma vez que este é sobretudo «um conjunto de instituições e de estratégias que se apoiam nos mecanismos sociais mais quotidianos», e que, precisamente por isso, não pode ignorar as crenças e os mitos, os localismos e as segmentaridades, as identidades e os estereótipos. Uma reflexão estimulante, que nos deixa ver para além do realismo político que do mundo em volta apenas capta o óbvio e quase sempre o tristonho. [Trad. de Marcelo Félix, Edições 70, 368 págs. Originalmente na LER de Março.]

              Atualidade, Olhares

              As visitas

              As visitas

              Como era de esperar, a mudança de morada deste blogue trouxe consigo uma redução temporária (espera-se, claro) dos acessos. Neste momento, para pouco mais de um terço do que ocorria ainda há poucos dias. Parte desta redução deve-se a que muitos visitantes chegam ao blogue através de motores de busca ou de posts citados que apontam para a outra direcção. Mas existe uma porção significativa de acessos que chega através das listas oferecidas por outros blogues ou dos favoritos guardados nos browsers. Pede-se por isso aos amigos e interessados n’A Terceira Noite que não se esqueçam de actualizar essa informação. Entretanto, devido à extensão da nova barra lateral, a lista completa de blogues recomendados encontra-se agora na página Blogues.

                Etc., Oficina

                Cuba Sí, pero…

                Fidel e Camilo Cienfuegos
                Fidel e Camilo Cienfuegos

                Alguns dos factores que no início da década de 1960 transformaram a revolução cubana e os seus rostos salientes – um Fidel persistente e carismático, o efémero mas decisivo Cienfuegos, um Che em breve tornado imortal – num factor de atracção e de romântico entusiasmo para toda uma geração de europeus ocidentais e de nascidos nas Américas que incluía intelectuais e revolucionários, mas também muitas pessoas pouco politizadas, parecerão hoje algo paradoxais. Sobretudo se observarmos aquilo em que Cuba se transformou e se identificarmos o perfil político daqueles que hoje ainda defendem sem hesitações o regime que governa o país. Essa atracção e esse entusiasmo advieram, justamente na época em que os partidos comunistas começavam a perder o pé junto de alguns dos sectores mais dinâmicos da esquerda ocidental e de uma nova geração de estudantes e de trabalhadores, do facto de os revolucionários da ilha de Martí parecerem evidenciar uma acentuada ruptura em relação à cartilha ideológica proposta a partir de Moscovo e à imagem cinzenta, gerontocrática, fornecida pelos rostos que, da tribuna do Kremlin, zelavam diariamente pela sua preservação.

                À deriva proto-nacionalista de grande número de partidos e organizações comunistas tradicionais, ao esgotamento do padrão de sociedade que estas erguiam como paradigma, ao impacto perturbador da invasão da Hungria pelos soviéticos e das revelações de Kruchtchev no XX Congresso do PCUS, contrapunha-se a emergência de um novo e polissémico universo de expectativas que os agora renovados movimentos sociais reivindicavam, e que os barbudos cubanos, jovens, informais, arrebatados e com os olhos no futuro, com Fidel à cabeça, pareciam materializar. Não por acaso, os insubmissos cubanos, bem como os seus primeiros e incondicionais apoiantes – com Sartre, já então saído do PCF, à cabeça – foram vistos de início com muita desconfiança pelos mesmos partidos comunistas que então, é bom não esquecer, denunciaram o «aventureirismo guevarista». Hoje deparamos com a inversão destas atitudes de afeição e de desconfiança: politicamente insulada, a «revolução cubana» viria a fixar-se nos modelos de autocelebração que originalmente repudiara. Por sua vez, privados das anteriores referências fundacionais, alguns partidos comunistas passaram a erigir como modelo o regime que um dia olharam com desconfiança ou mesmo com animosidade. A História faz-se de factos, por muita reescrita que a possa envolver, mas nela a Revolução Cubana terá sempre um lugar de destaque.

                  História, Memória, Opinião

                  O outro 1º de Abril

                  Guerra Civil

                  No dia Primeiro de Abril de 1939, perfazem-se hoje setenta anos, terminou a Guerra Civil de Espanha. Singularmente violenta e persistentemente traumática, causou mais de 600.000 vítimas civis e militares caídas de ambos os lados, tendo servido de palco para um número ainda indeterminado de atrocidades. Viveu os primeiros bombardeamentos aéreos sistemáticos sobre populações civis efectuados por aviação fornecida pela Alemanha nazi e pela Itália fascista; assistiu à eliminação metódica de um grande número de militantes do POUM, a organização comunista antiestalinista, por parte de agentes da polícia política soviética lançados no terreno; e coabitou com execuções sumárias de suspeitos, em regra membros do clero ou pessoas das classes média e alta, consumadas por anarquistas e comunistas. Ao mesmo tempo, os nacionalistas faziam assentar o seu avanço militar, e o poder no terreno que a partir dele iam exercendo, sobre a chacina, o terror e depurações sistemáticas, prolongadas por muitos anos após o termo dos combates.

                  Para além da preservação da dimensão lendária desta guerra, em boa parte justificada pela forte mobilização da opinião pública ocidental que provocou e pelo empenho nas fileiras das Brigadas Internacionais de um grande número de artistas e intelectuais antifascistas, a sua memória é presentemente objecto de um combate colectivo que visa libertar do silêncio a recordação dos actos de brutalidade praticados pelos franquistas. Alterando a narrativa parcial e artificialmente benigna que estes produziram a propósito das condições em que chegaram ao poder e sobre a forma como o mantiveram. E procurando promover a reconciliação com o seu próprio passado da metade da Espanha que ao longo de décadas permaneceu calada.

                  Adenda: os Caminhos da Memória referem aqui um conjunto de seis vídeos sobre as circunstâncias e o decurso da guerra, enquanto o El País e o Público.es têm vindo a publicar excelentes artigos sobre o tema.

                    História, Memória

                    E-people

                    Teach them

                    A informação chega-me através de um artigo de Miguel Gaspar: o governo britânico está a estudar uma reforma do ensino básico que pretende destacar a aprendizagem das novas tecnologias, em especial a das redes sociais da Internet, em detrimento dos saberes considerados convencionais. Não tenho nada contra a divulgação alargada e sistemática destes processos – que uso diariamente, intensamente, produtivamente muitas vezes, e que recomendo –, mas tenho tudo contra a desqualificação do conhecimento estruturante em favor de uma deriva comunicacional apresentada como valendo por si mesma. O problema, julgo, advém em larga medida do facto dos centros de decisão política – leia-se: os partidos institucionais – estarem cada vez mais nas mãos de gente «especialista» em conhecimento funcional, que cresceu politicamente na gestão do imediato, e que descarta, como anticorpos, aqueles que pensam para além do momento. Daí também a desvalorização sistemática das humanidades e da reflexão crítica que estas oferecem. Temas aos quais regressar aqui com mais tempo e um outro cuidado.

                      Apontamentos, Cibercultura, Democracia

                      O troiano chinês

                      Webchina

                      Sempre tão ágil e zeloso a amordaçar a informação livre na Internet, o governo chinês cala-se perante a descoberta de uma rede de espionagem electrónica, sediada no seu território, que se tem dedicado a violar computadores de ministérios, embaixadas e associações de diversos países ocidentais e asiáticos. Não por um acaso, algumas destas associações têm tornado público o seu apoio ao respeito pelos direitos nacionais do povo tibetano, e pelo menos duas embaixadas portuguesas contam-se também entre os alvos atingidos pelos ciberpiratas chineses. O objectivo era instalar maliciosamente, em numerosos computadores, software capaz de actuar como um cavalo de Tróia, identificando referências ao Dalai Lama e encaminhando-as para servidores sediados na República Popular da China.

                      Preparemo-nos agora para a procissão do costume: o governo chinês irá primeiramente ficar em silêncio, depois negará qualquer intervenção no caso, e finalmente encontrará um qualquer funcionário de terceiro ou quarto escalão que possa servir de bode expiatório. Será então que os governos dos países afectados pela intrusão irão aceitar as explicações e curvar-se diante do governo imperial de Pequim. É claro que os chineses não são os únicos a fazerem isto e ainda há pouco tempo se soube que o governo alemão andou a navegar pelas mesmas águas lamacentas. E, evidentemente, há muitos anos que os americanos tomam medidas neste campo. Mas o gesto torna-se particularmente agressivo e repelente quando parte de um governo – ninguém acreditará que foi a «sociedade civil» chinesa que produziu tais hackers – que se dedica a controlar e a censurar abertamente a Internet, reprimindo com punho de aço o menor gesto de autonomia informativa dos seus cidadãos.

                        Atualidade, Cibercultura

                        Flamejante

                        Pet Shop Boys

                        Já desisti de tentar explicar por que razão um sujeito de meia-idade como eu, com uma educação clássica, responsabilidades profissionais e um problema com o excesso de glicemia no sangue, gosta tanto da música pop descarada e adolescente dos agora já meio-avelhados Pet Shop Boys. Aqueles dois tipos de country town, nascidos na Inglaterra deprimida dos anos 50, que desde os eighties andam por aí a colar à pop as chamadas «letras inteligentes». Eu próprio não percebo a origem da atracção. Evoco só antigas viagens matinais a caminho da praia, com o Neil e o Chris a rodarem no leitor de cassetes do carro em segunda mão. E sei que um dia gostaria de viver no universo epopeico e elementar que durante todo este tempo os rapazes da loja dos bichos me têm feito imaginar.

                        «King of Rome» é de Yes, o álbum já de 2009:

                        [audio:http://aterceiranoite.org/wp-content/uploads/2009/03/08-king-of-rome.mp3]
                          Memória, Música, Olhares

                          Lukashenko e as coelhinhas-tuga

                          Playboy

                          Durante a manhã considerei a possibilidade de escrever um post sobre a reunião dos blogueiros apoiantes dos grandes comunicadores Kim Jong-Il e Lukashenko, mas logo a minha atenção se desviou para a banca dos jornais. Como previsto, já lá estava em exposição o primeiro número da Playboy portuguesa. Convencido de que estava a ser espirituoso, disse à vendedora qualquer coisa como «temos finalmente a Playboy connosco». Mas esta não mostrou ter descortinado a alusão à conhecida frase do doutor do Vimieiro e respondeu com um «pois» que me pareceu estranhamente frio. A situação pareceu piorar quando se apercebeu de que eu queria mesmo comprar a revista. E não fechámos o negócio sem que ela devolvesse o troco da nota de cinco euros como se eu fosse portador do vírus da peste bubónica.

                          Mas a compra valeu bem o esforço e a desonra. A revista tem qualquer coisa de sadio e lustroso, com lugar garantido em antecâmara de consultório ou no porta-luvas de um taxista. Trabalho honesto, asseado, sem nada a ver com aqueles exemplares americanos, obtidos à socapa e em segunda mão, com os quais numa certa fase do passado aprendi, como dizia o Sr. Alberto Alfaiate, um pouco das «coisas da vida». Mas estas coisas de vida são, de facto, menos peludas, avantajadas e concupiscentes que as originais, nada que perturbe as famílias. E se alguém duvida é porque não folheou as páginas da novel revista. Ainda me enchi de esperanças quando na Carta do Director li uma frase na qual este aliciava o leitor com um «vamos a isto», mas cedo me desenganei sobre a possibilidade de existirem sugestões menos próprias. Afinal, na Playboy portuguesa fala-se dos sapatos da Madonna sem qualquer assomo de fetichismo e de fotografias tiradas a cheeseburgers por David La Chapelle sem qualquer vislumbre de crítica ao higienismo galopante. Anuncia-se inocentemente que 62% dos homens mais ricos do planeta se casam com mulheres de cabelo castanho e que 4 de cada 10 preservativos vendidos são adquiridos por senhoras. A Conselheira – cujo nome por momentos me pareceu evocar umas certas fantasias – desalenta logo qualquer um ao aconselhar à leitora Paz Diego, de Málaga, para «basicamente dizer ao seu marido não levar a questão a peito, até porque o peito é seu.» E ao pedido «gostava de perceber como funciona o sexo em mundos virtuais como o Second Life», a senhora dos conselhos não respondeu nada que se percebesse. Emocionante poderia ser a entrevista ao futebolista Costinha, mas quando li a pergunta sobre se este «chegou a privar com a realeza monegasca», resolvi passar à frente. Em boa hora, admito, porque logo de seguida dei com as 18 páginas (e um desdobrável) com fotografias de Rute Penedo, uma loira com implantes apresentada como «mulher de Artes». Não pude, no entanto, ver a grande reportagem com atenção porque a senhora da mesa do lado começou a olhar para mim com uma expressão esquisita. Por isso – admito que um pouco cobardemente – guardei a leitura da reportagem com Mónica Sofia, a «estrela da capa», para uma melhor oportunidade.

                          Acossado pelos olhares da matrona, tive pouco tempo para folhear as páginas que faltavam e me raspar dali. Ainda li uma citação de Bertrand Russel pressagiando a extinção da raça humana no final do século passado. E outra de John Wayne onde este declarava acreditar na supremacia branca «até que os negros sejam educados para atingirem um estado de responsabilidade». Passei os olhos por uma frase de Pedro Paixão na qual o escritor declarava peremptoriamente que «o amor é um trabalho pelo qual se tem de lutar e o que já se conseguiu dissipa-se no passado». E foi nessa altura que percebi ter passado mais de uma hora a tomar estes apontamentos e que já não tinha tempo para escrever o tal post sobre a reunião dos blogueiros apoiantes dos grandes comunicadores Kim Jong-Il e Lukashenko.

                            Atualidade, Etc.

                            Vento cigano

                            Cigano

                            Nascido gadjo, sedentário e de classe média, educado num universo provinciano e preconceituoso, é natural que tenha sido mais um daqueles rapazes cuja imaginação aceitou e manteve durante bastante tempo a representação romantizada e misteriosa, profundamente idealizada e fictícia, do cigano. Só recentemente e por acaso – a partir de uma referência de Kenneth White – li The Scholar Gipsy¸ de Matthew Arnold, onde o poeta inglês oitocentista que foi também inspector das escolas evoca o estudante oxfordiano que «partiu a aprender a sabedoria dos ciganos, / errando pelo mundo com esse povo indomado», mas colhi cedo um pouco do impacto da cultura livresca europeia, de Dumas pai a (muito mais tarde) Lorca, de Pushkin (apenas em fragmentos) ao Merimée da Carmen que depois Bizet celebrou. E procurei algo mais em Os Ciganos de Portugal, o livro que Adolfo Coelho publicou em 1892, hoje ultrapassado e esquecido. E na música de Liszt ou depois na de Camarón de la Isla. Sempre, sem a percepção certa de o fazer, a resistência ao modelo cultural que estranhava a experiência nómada, a perspectiva juvenil de noites ao redor da fogueira, a imagem fugitiva, entrevista numa velha tapeçaria, da cigana que não podia senão ser «bela e formosa» na exibição das gadelhas escuras e das arrecadas em oiro. Esse núcleo romântico foi-me esvaziado num instante pela intervenção radiante do materialismo dialéctico no seu molde mais inflexível, desprezando a especificidade cigana por ela escapar ao sentido incontornável da luta de classes e não participar na consagração do Trabalho como força edificadora da História. O desinteresse por quem se não fixava, por quem sobrevivia de expedientes mercantis, rejeitava toda a ideologia e se aproximava do lumpenproletariat, tornava-se um dos rostos de uma realidade que, do outro lado do combate social, dos ciganos reprovava a insubmissão, a ausência de polidez, a higiene pouco clara, a suposta promiscuidade.

                            De uma e de outra destas recusas resultaram as actuais perspectivas que apontam para o cigano como desejavelmente «integrado», na verdade aculturado, ou então merecidamente segregado e punido como ser socialmente irrecuperável. Uma e outra das atitudes excluindo a abordagem de temas centrais – o papel simultaneamente fulcral e subalterno da mulher, a relação com a propriedade e a exaustão de bens perecíveis, a «estranha» liberdade pedagógica praticada com as suas crianças – que a maior parte dos ciganos nos coloca diante dos olhos e com a qual não sabemos lidar. A política segregacionista – que Vasco Pulido Valente apontou em crónica recente do Público a propósito de uma escola situada perto de Barcelos, uma entre outras, que põe os meninos ciganos, isolados dos outros, a terem aulas dentro de um contentor – não é mais do que um sinal particularmente sórdido do nosso medo em revertemos às nossas próprias origens e em reconhecermos a nostalgia dos devaneios perdidos. De voltarmos ao tempo no qual também nós fomos nómadas, ou aos sonhos de infância nos quais acreditávamos ser possível viver do vento, sem trabalhar, numa carroça pela estrada fora.

                              Democracia, Memória, Olhares

                              Che Guevara – um rosto sem retoques

                              Regresso a um texto que em 2002 publiquei na revista História a propósito de uma então recém-editada biografia do argentino. Uma das poucas disponíveis no mercado que não é apenas «pró» ou «contra».

                              Retomada em imagens que povoam jornais e documentários, nos muros das cidades, na decoração de espaços privados, em t-shirts e tatuagens, a expressão decidida do Che Guevara, captada há mais de trinta anos pelo fotógrafo Alberto Korda, continua a povoar a nossa imaginação. Como sinal da memória, insígnia de utopias ou insólito produto pronto-a-usar. Omissões várias e umas tantas mentiras, somadas a um certo oportunismo político e comercial – em alguns países vende-se até uma bebida gaseificada, a Revolution Soda, com o rosto do Che estampado como logótipo – têm adensado a carga simbólica que envolve um dos heróis e dos ícones do século que passou. Vale a pena desvendar o mito na sua origem.

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                                Cinema, Democracia, História, Memória

                                Omid

                                Morreu na quarta-feira passada Omid Mir Sayafi, um blogger iraniano de 25 anos condenado a 30 meses de prisão por insultos ao ayatollah Ali Khamenei. O advogado de Omid – que pouco antes de ser detido definia o seu blogue como de natureza essencialmente cultural – disse à AFP que «ainda não existem documentos oficiais, mas os responsáveis da prisão afirmam que Mir Sayafi se terá suicidado». O governo de Teerão lançou entretanto uma campanha contra bloggers e internautas, acusados de escreverem textos hostis às autoridades e aos valores islâmicos. E os Guardas da Revolução anunciaram em comunicado uma intervenção enérgica para «desmantelar os mais diversos sites anti-religiosos, obscenos e contra-revolucionários», que publicam «artigos contra o regime islâmico», «os valores religiosos» e «histórias sexuais». Claro que os EUA são apontados como os primeiros responsáveis pela iniciativa dos internautas «degenerados», combatidos sem piedade pelos heróicos funcionários do Centro de Delitos de Internet dos Guardas da Revolução. Nem outra coisa seria de esperar.

                                  Atualidade, Cibercultura, Democracia

                                  Coimbra radical

                                  Só Deus sabe como aprecio durante 60 minutos em cada ano a música do Conjunto Diapasão (em particular a voz de veludo martelado do vocalista Marante), como abomino música sertaneja (os empregados do Gauchão também conhecem este ódio pessoal) e como experimento sentimentos assassinos quando sou forçado a ouvir a vozearia ululante acompanhada de ferrinhos e acordeão que o Estado Novo nos doou como «folclore do bom». Mas ouvir tudo isso em sistema random, a partir de colunas potentíssimas e mais altas que o Pau Gasol instaladas no hipocentro da universidade mais antiga do país, ao mesmo tempo me esforço até ao limite por conseguir dar uma aula debaixo de tal barragem de som, é experiência que tem qualquer coisa de transcendental. Aconteceu ontem à tarde e acabei a aula a falar da grande Maria do Carmo Miranda da Cunha, mais conhecida como Carmen Miranda.

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