Ana Proletária

Anna

Anna Walentynowycz, Proletariuszka, a «Ana Proletária», era uma mulher de estatura muito baixa. Com 51 anos, estava a começar a ganhar algum peso, mas no gigantesco Esta­leiro Naval Lenine continuavam a chamar-lhe também «Mala Anna», a «Pequena Anna». Sempre cheia de energia e de trato afável, toda a gente a conhecia e era um dos operários mais populares do estaleiro. Tinha trabalhado ali durante trinta anos e estava agora a cinco meses da reforma. Tendo ficado órfã durante a ocupação da Polónia pelos nazis, tornara-se então militante comunista. O seu projecto de vida tinha sido participar na construção do socialismo e o lugar onde começou a bater-se por essa tarefa foi o Estaleiro Naval Lenine.

Era uma operária exemplar, uma soldadora que por causa da baixa estatura era enviada muitas vezes para os recantos mais difíceis e estreitos da estrutura dos navios. Em 1951, aos 29 anos era membro da Brigada de Trabalho Rosa Luxemburgo e ganhou o prémio Herói do Trabalho. Se­gundo o discurso de louvor, no ano anterior tinha aumentado a sua produtividade laboral em 270% («um dos momentos de que mais me orgulho na minha vida», diria muito mais tarde). Após dezasseis anos a manejar o maçarico, Anna ascendeu a uma posição mais responsável, como operadora de grua. Somente um punhado de mulheres do estaleiro – que fabricava sobretudo cargueiros para exportar para a URSS – tinha as qualificações necessárias para manobrar uma maquinaria tão cara e potencialmente perigosa.

Em 1965 foi­-lhe diagnosticado um cancro e deram-lhe poucos anos de vida, mas mais tarde, depois da radioterapia, os médicos descobriram que se tinham enganado e que afinal ela sempre estivera de perfeita saúde. Ao longo de todo aquele tempo mantivera-se sempre uma operária empenhada, «patriótica e leal ao comunismo». Era tão respeitada que os colegas de trabalho começaram a consultá-la cada vez mais com problemas pessoais. Ela tentava ajudá-los de forma prática, ou então limitava-se a ouvir as suas queixas com empatia. Começou a abrir os olhos aos poucos e a aperceber­-se de como a sua «nova Polónia» estava bem longe do paraíso socialista pelo qual tanto trabalhara.

Os acontecimentos precipitaram-se em 1970, quando num grosseiro erro de timing, apenas uma quinzena antes do Natal o governo aumentou em 36% os preços de alimentos básicos como a carne, o pão, o leite e os ovos. Estalaram então motins em várias cidades polacas. O mais violento foi em Gdansk, onde a polícia disparou contra manifestantes desarmados no exterior do Estaleiro Naval Lenine. Morreram ali 44 operários. Ainda assim, Anna manteve-se longe dos problemas. Porém, tal como muitos dos seus compatriotas, começou a radicalizar-se à medida que se ia inteirando da vida quotidiana na «Polónia socialista». Referia-se sempre aos operários que tinham morrido em 1970 como «mártires» e tornou-se uma das pessoas que procuravam assegurar que houvesse sempre velas e flores nas suas campas. Descobriu entretanto um esquema de extorsão que envolvia uma fraude a larga escala, da qual beneficiavam pessoalmente os dirigentes do sindicato oficial do estaleiro, naturalmente controlado pelo Partido Comunista.

No 1º de Maio de 1978 deu então o primeiro passo que a iria colocar sob a mira dos apparatchicks do Partido como um problema potencial. Juntou-se a um grupo criado nesse dia, chamado Comité Fundador para os Sindicatos Livres da Costa Báltica. Em breve este comité receberia um nome mais fácil de decorar: Solidarnosc, ou Solidariedade. Começaram a publicar um jornal, O Trabalhador Costeiro, que na primeira página da sua edição inaugural declarava o seu principal e objectivo: «Somente os sindicatos independentes, que contam com o apoio dos trabalhadores que eles representam, têm uma oportunidade para desa­fiar o regime. Somente eles conseguem representar um poder com o qual as autoridades terão de lidar um dia numa base de igualdade.» Anna Walen­tynowycz foi um dos 65 activistas que assinaram a carta de direitos do jornal no dia da sua fundação.

Anna morreu hoje, aos 80 anos, no mesmo desastre de aviação que vitimou o presidente da Polónia e um grande número de dirigentes e quadros do país. Dirigiam-se todos para Smolensk, na Rússia, com o objectivo de participarem nas cerimónias fúnebres em memória das vítimas do massacre de Katyn, ocorrido em 1941 quando a polícia secreta estalinista, o NKVD, executou mais de 20 mil oficiais polacos capturados pelo Exército Vermelho. Dela poucos falarão, mas aqui fica a lembrança.

NOTA – Parte substancial deste post foi escrita recorrendo a Revolução 1989. A Queda do Império Soviético, um livro do jornalista húngaro Victor Sebestyen editado em 2009 pela Presença.

    Atualidade, Democracia, História

    To Whom It May Concern

    Ela

    Além de se servir de uma fotografia minha com  menos dez anos e mais dez quilos (não é gralha), a editora Angelus Novus deturpou completamente as minhas respostas a um inquérito sobre a Coca-Cola. Padeço de Doença do Refluxo Gastro-esofágico – Bill Clinton também – e não devo por isso consumir bebidas gaseificadas. Solicito pois que não tomem demasiado à letra o que aqui se pode ler. Principalmente as supostas graçolas, pouco condizentes com o meu perfil severo e comedido. Assaz, diga-se de passagem.

      Devaneios, Novidades

      Exageros

      Fangio

      Ainda mal que pergunte, mas por que razão apoiar Manuel Alegre para PR – até instruções em contrário da minha consciência, será isso que farei – requer transformar o mesmo em Vate da Pátria? Do ponto de vista literário, Alegre é um conservador e escreve, muito classicamente, sobretudo coisas «bonitas» (para determinados gostos, not mine) e «com mensagem» (algumas delas foram importantes para muitas pessoas, inclusive para mim). Ficará, sem dúvida, num parágrafo da História da Literatura Portuguesa. E terá sempre quem goste de o ler. Mas daí a ser cantado e decantado como um Juan Manuel Fangio da pena vão umas quantas voltas ao Circuito de Monza…

        Atualidade, Devaneios

        Com um sorriso nos lábios

        Comrade Cola

        Já perdi a conta ao número de vezes que apontei para crónicas de Antonio Muñoz Molina saídas no suplemento Babelia. Quando o faço é quase sempre para realçar evocações, vidas ou ideias das quais me sinta cúmplice. Mas desta vez será diferente: sirvo-me de um artigo do escritor andaluz para rejeitar a perspectiva que adoptou no artigo desta semana. Intitula-se «Un elogio de la socialdemocracia» e nele Molina esboça uma resenha histórica das conquistas proporcionadas pela experiência social-democrata – equiparada por grande parte da esquerda, desde a intervenção revisionista de Eduard Bernstein, a uma «sistematização da traição» – que funciona ao mesmo tempo como elogio e obituário.

        Primeiramente Molina celebra as conquistas:

        «Todos, sin excepción, en Europa y en Estados Unidos, somos beneficiarios en algún grado de la revolución socialdemócrata, que supo favorecer la igualdad y la justicia fortaleciendo y no sólo conservando las libertades individuales: cuando vamos al médico, cuando asistimos a la escuela o mandamos a nuestros hijos a la universidad, cuando tomamos el tren o el metro, incluso cuando conducimos nuestro coche privado por una autopista que no habría podido construirse sin enormes inversiones públicas.»

        Mas logo de seguida começa a diagnosticar a visível decadência:

        «Y sin embargo, desde los tiempos de Margaret Thatcher y Ronald Reagan, el descrédito de lo público se ha extendido como una gangrena, en la derecha y también en la izquierda, que cuando llega al poder muchas veces adopta un lenguaje entre tecnocrático y cínico. Lo público es ineficiente. Cualquier servicio lo puede prestar mucho mejor una empresa privada, que se rige por la racionalidad del beneficio y no por la rutina o la corrupción de la burocracia. Hay una manera de que las profecías se cumplan: a los servicios públicos se les quitan los medios y se descuida su gestión y así se demuestra que no funcionan y que necesitan ser privatizados»

        O que me tocou negativamente neste artigo não foi o desembaraço da análise, que é patente e nada oferece de novo, mas a perspectiva da qual Molina parte. Propõe uma crítica da esquerda lançada a partir do seu interior, num sentido, aparentemente regenerador, que até pode parecer positivo. Mas a «esquerda» da qual fala, e a única que parece verdadeiramente preocupá-lo, é a do PSOE de Zapatero, ou aquela alardeada por partidos análogos. Esquece pois, ou parece esquecer, que os compromissos à esquerda têm necessariamente de passar por uma abertura que envolva correntes e sensibilidades muito diversas, com tradições também elas diferentes. Tanto quanto possível devidamente imunizadas contra o vírus anestesiante do realismo político e unidas por cinco grandes vocações. A primeira impõe que as conquistas proporcionadas pela social-democracia nos países do capitalismo avançado sejam património a desenvolver e não a rever; a segunda requer que à esquerda não exista «linha justa», e muito menos «científica», à qual as outras se devam submeter; a terceira faz com que seja preciso manter uma grande abertura crítica e uma grande capacidade para ultrapassar os dogmas do passado; a quarta determina que as liberdades públicas e os direitos humanos são, à escala planetária, factores essenciais de equilíbrio e felicidade; e a quinta exige que para construir uma sociedade melhor, mais justa e mais igualitária seja preciso muito mais do que uma gestão «civilizada» do capitalismo: é preciso manter no horizonte a necessidade da sua superação. E trabalhar para isso, é claro. Desconfio, porém, que jamais um vislumbre de tal caminho faça com que Zapatero ou Sócrates adormeçam com um sorriso nos lábios.

        Publicado também no Vias de Facto

          Atualidade, Olhares, Opinião

          A máquina de contar o tempo

          tempo

          Num dos prefácios o autor faz notar que «a medição do tempo é apenas um aspecto de um assunto muito mais vasto: o significado do tempo e a variedade das formas como é percebido e usado». Por isso esta história dos relógios é bastante mais que um relato detalhado da invenção e do aperfeiçoamento desses aparelhos mecânicos de medir os dias: representa também um esforço de compreensão da forma como estes rapidamente alteraram a vida colectiva e o modo dos humanos decifrarem o mundo. David S. Landes procurou, no fundo, fazer com os relógios aquilo que outros fizeram com a imprensa, mostrando como o seu uso fez detonar um conjunto de processos que excederam em muito os contornos da revolução tecnológica.

          Publicada originalmente em 1983, A Revolução no Tempo foi revista em 1998 na sua edição em inglês, e foi esta que a Gradiva agora traduziu. Preservaram-se as três partes constitutivas da primeira edição – a que aborda a razão pela qual a invenção e o aperfeiçoamento do mecanismo ocorreu lugar na Europa, a que relata o modo como o relógio foi aperfeiçoado para ser cada vez mais portátil, fiável e duradouro, e a que descreve as vidas, os trabalhos e as conquistas dos que os foram produzindo – mas deu-se agora ênfase suplementar às profundas alterações técnicas das últimas duas décadas do século passado, em particular aquelas que disseram respeito à «revolução do quartzo» e ao uso do telemóvel, do computador, da rádio e da televisão como marcadores do tempo de todos os dias. Talvez seja sob este aspecto, porém, que esta obra acusa algumas falhas, uma vez que não discute o modo como a introdução destes novos processos de medição começou a apagar essa divisão do quotidiano em parcelas, em tempos fixos, que a utilização dos relógios mecânicos ainda supunha, substituindo-as por um «antes» e um «depois» cujo referente pode ser agora a chamada telefónica, o indicativo musical ou o programa de televisão.

          Para além de um volume enciclopédico de informação sobre a história e a tecnologia dos relógios, produzida a partir de Galileu e da sua descoberta do isocronismo das oscilações do pêndulo, que só por si justificaria o interesse deste livro, destaca-se ainda o papel atribuído pelo autor ao facto da revolução produzida implicar uma metamorfose ética imposta pela possibilidade de rentabilizar os dias – detecta-se aqui uma articulação visível entre a nova forma de medir o tempo e uma ética calvinista do trabalho que teria escapado à análise de Max Weber – que se traduziu, para os europeus que rapidamente a adoptaram, num catalisador do crescimento económico e da sua afirmação planetária. Esta mudança ofereceu também à própria percepção da história um «cenário cronológico» anteriormente desconhecido, com implicações nos domínios da filosofia, da teologia, da literatura e até da política.

          Publicado na revista LER de Março

          David S. Landes, A Revolução no Tempo. Os Relógios e o Nascimento do Mundo Moderno. Trad. de Edgar Rocha. Gradiva, 544 págs.

            História

            Bruxelas como jamais

            La Monnaie
            Devia ser o Théâtre Royal de La Monnaie

            Todas as cidades vivem saturadas da sua própria imagem. Em especial as pequenas, pela razão evidente de possuírem menos ângulos a partir dos quais é possível obter perspectivas inéditas. Habito uma cidade dessas: se acreditarmos apenas no que proclamam as prédica oficiais ou lemos nos seus jornais, a imagem que a maioria dos seus habitantes tem do local onde mora é inflexível, ainda que desgastada. Nela a história serve habitualmente de argamassa. Um grafito numa parede – entretanto apagado por vândalos disfarçados de funcionários municipais – proclamava em tempos: ISTO JÁ NÃO É AQUILO QUE NUNCA FOI. Sabedoria rara que proclamava o óbvio: toda a repetição é inútil, uma vez que só se conserva igual aquilo que cada um deseja que assim pareça. Por isso gosto de imaginar, imaginar mesmo, cidades perpetuamente instáveis, das quais é sempre possível esperar mais e esperar melhor. Mesmo quando se trata das aparentemente mais monótonas ou aborrecidas. E por isso me atraiu um livro de itinerários de Bruxelas que encontrei, publicado pela Casterman, contendo textos de Christine Coste e desenhos de François Schuiten (com Benoît Peeters um dos autores da esplêndida série de BD Les Cités Obscures). Aqui toda a cidade é revista de alto a baixo, projectando-se imagens desejáveis, ou imagináveis, da face aparentemente oculta da capital dos belgas. Gostaria de ver a minha cidade assim tratada. Dessa maneira talvez fosse incapaz de deixar de gostar dela.

              Cidades, Fotografia

              Revolução, esperança e nostalgia

              Poucos temas são tão delicados para a consciência histórica partilhada pelas esquerdas quanto o é Cuba e a sua experiência após o 1º de janeiro de 1959. Sublinho a palavra escolhida: «esquerdas» e não «esquerda», uma vez que para regressarmos ao ponto em que era possível, no mundo capitalista, uma proximidade de expectativas e de metas entre as correntes divergentes que se reclamavam do socialismo – e que se reivindicavam da esquerda como sua «casa comum» – será preciso recuarmos ao tempo em que, há mais meio século, naquela noite de São Valentim, os guerrilheiros barbudos da Sierra Maestra entraram em Havana para expulsar o ditador Batista e os seus patronos norte-americanos. Naquela altura, é bom relembrá-lo, a Revolución cubana, apesar da cuidadosa desconfiança inaugural das rígidas chefias da União Soviética e dos partidos comunistas que as seguiam, fazia o pleno da simpatia e das esperanças do que então se designava «a humanidade progressista».

              Criava-se então uma «lenda de Cuba», grata desde logo a um grande número de intelectuais da esquerda ocidental, e que foi capaz de seduzir, como experiência onde era possível projectar todas as expectativas de igualdade, boa parte da juventude do mundo inteiro. A guerra de guerrilha que se seguiu ao acidentado desembarque do Granma e que conduzira em pouco tempo à derrota de um exército e de uma força aérea apoiados pelo governo dos Estados Unidos, parecia, vista de fora, algo de miraculoso. E o facto da pequena ilha açucareira, situada a apenas noventa milhas marítimas da Florida, se haver tornado o primeiro «Estado socialista» do hemisfério ocidental, não fez senão crescer essa admiração. Em The Fellow-Travellers. Intellectual Friends of Communism, David Caute observou que a revolução cubana se tornara à época «a Revolução», funcionando como um exemplo e um modelo, reforçado, sobretudo entre gerações que acabavam de despertar para a experiência política, pelo facto de parecer desenvolver-se «sem cedências», ultrapassando, assim escrevia Simone de Beauvoir, «as noções do possível e do impossível». E, aspeto não menos importante, sem copiar o figurino de qualquer dos sistemas de poder então conhecidos.

              O controlo de um Estado independente por homens e mulheres sem rugas ou complexos, belos e de porte informal, romântico, que utilizavam positivamente e sem limites palavras proscritas ou depreciadas em quase todas as partes – «revolução», «rebeldia», «anti-imperialismo», «igualdade», «coletivização» ou «alfabetização» – e atuavam centradas no presente, potenciou essa simpatia que tocou intelectuais e activistas, jovens ou maduros, tão diferentes como Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Régis Debray, Susan Sontag ou Hans Magnus Enzensberger. O desembarque invasor pró-americano de 1961, na Praia Girón/Baía dos Porcos, o apoio político e militar prestado pelas novas autoridades cubanas a diversos movimentos de guerrilha espalhados pelo mundo, o empenho na alfabetização maciça da população da ilha, o esforço de colectivização da maior parte da propriedade fundiária, uma indiscutível ampliação dos serviços prestados aos trabalhadores nos domínios da saúde e da educação, fariam com que a auréola de exemplaridade do regime cubano não parasse de aumentar, sendo ampliada ainda com a atividade carismática de figuras desprovidas dos maneirismos e da linguagem estereotipada dos estadistas conhecidos, como eram a de Fidel, a de Camilo Cienfuegos, ou a do singular «Che» Guevara. Os textos de Régis Debray (Révolution dans la Révolution, 1967) e de K. S. Carol (Guérilleros au Pouvoir, de 1970), na sua época muito lidos e traduzidos em diversas línguas, contribuíram, e bastante, para ampliar esse processo de mitificação do significado e da missão daquela particular estirpe de «revolucionários em movimento».

              Uma imagem poderosa da ilha de José Martí como, nas palavras de François Hourmant, um «cocktail de rum branco e de aparente euforia geral», ou como localização da utopia terrena possível, onde até o trabalho possuía uma dimensão festiva, fixava-se pois em numerosos ambientes, produzindo um «tropismo cubano» com um vigor tal que ainda hoje perdura na lembrança de bastantes pessoas da geração que recebeu o seu primeiro impacto, dando forma a algumas das suas actuais convicções, ou fazendo com que outras se continuem a mostrar incapazes de criticar abertamente as autoridades de Havana, ainda que muitas das iniciativas por estas tomadas nas últimas décadas já lhes não pareçam sedutoras ou sequer justificavéis. Como escreveu o ensaísta e crítico de arte cubano Iván de la Nuez em Fantasia Vermelha, para um certo número de pessoas «Cuba não é apenas Cuba, é qualquer coisa mais», funcionando como «um pretexto para criticar um mundo ordenado sob o signo do mercado, e, por extensão, os males do capitalismo», e mostrando ao mesmo tempo que aquilo que a maior parte dos cidadãos do planeta entende como democracia representativa é para algumas delas algo de dispensável. Para estas, a frase com a qual Sartre encerrou a sua visita a Cuba – «os cubanos devem triunfar ou perdemos tudo, até a esperança» – faz ainda todo o sentido. A esperança associada à nostalgia é, de facto, uma arma poderosa. 

              Rui Bebiano

              Dois outros posts sobre o tema que fui escrevendo e permanecem razoavelmente actuais: A imensa tristeza (já de 2003) e  Relógios cubanos (de 2009).

                Atualidade, História, Memória

                Rostos e vozes de Hitler

                Poster nazi

                Não se trata de mais uma daquelas sinopses destinadas a difundir detalhes biográficos dos dirigentes do Terceiro Reich. Ferran Gallego, professor de história do fascismo na Universidade Autónoma de Barcelona, dirige-se aqui a quem já conhece os factos essenciais, procurando principalmente «compreender um movimento de época através da experiência pessoal que se cruza com o espaço público» e descortinar as motivações e os caminhos que levaram um certo de homens a materializar o compromisso activo de importantes sectores da sociedade alemã com o programa nacional-socialista. Enquanto experiência assente num poder absoluto de uma magnitude até então desconhecida, o nazismo é aqui apresentado como um caudal de energias que resulta da confluência de determinadas condições históricas com a acção decisiva de um conjunto de personalidades fortes próximas de Adolf Hitler.

                Gallego ocupa-se de um grupo de destacados colaboradores do Führer constituído por combatentes da primeira hora, todos eles com um lugar proeminente na construção do Partido Nacional-Socialista, e de um outro, formado por homens mais jovens que se mostraram particularmente preparados para assumirem um papel activo na direcção do partido e do Estado. Do primeiro fizeram parte Anton Drexler, pioneiro do nazismo e porta-voz de um nacionalismo popular, Julius Streicher, anti-semita convicto instrumental na ascensão de Hitler, Gregor Strasser, representante da esquerda nazi e «estratega pragmático», Ernst Röhm, instrumental na organização das forças paramilitares das SA, Hermann Göering, o criador da Gestapo e chefe da Luftwaffe, um conservador vinculado aos grandes interesses económicos, Robert Ley, responsável máximo pelo controlo do trabalho operário, e Alfred Rosenberg, o teórico aristocrata que fez dos factores raciais o núcleo do projecto utópico nazi. Alguns destes, como Drexler, Strasser e Röhm, viriam a ser eliminados ou marginalizados para que o antigo cabo pudesse emergir como líder irrefutável. No segundo grupo incluem-se Joseph Goebbels,  o nacionalista nihilista, esteta criador do mito de Hitler e ministro da Propaganda, Baldur von Schirach, o organizador da poderosa Juventude Hitleriana, Heinrich Himmler, líder das SS, administrador do Terror de Estado e responsável por «uma duplicidade de protecção e de repressão» que acostumou a sociedade à violência de massas, Alber Speer, o tecnocrata cínico e vaidoso do qual o historiador se serve para abordar a arquitectura no Terceiro Reich, e Martin Bormann, o burocrata eficaz que se transformou na «sombra do Führer».

                O livro abre e encerra com a evocação dramatizada do discurso de Thomas Mann pronunciado em Berlim em 17 de Outubro de 1930, no qual, confrontado já com a ascensão fulgurante do nazismo, o escritor pedia um compromisso salvador entre a democracia liberal e a social-democracia. Uma proposta destinada ao fracasso no momento em que, como recorda Gallego, tinha ganho já enorme peso uma percepção estética do «poder da Comunidade» que iria destruir a República de Weimar e riscar do mapa o jogo partidário.

                Publicado na revista LER de Março

                Ferran Gallego, Os Homens do Führer. A elite do nacional-socialismo. 1919-1945. Trad. de Carlos Aboim de Brito. A Esfera dos Livros, 528 págs.

                  História

                  Princípio da realidade

                  Jesse James

                  Pensei ter entrado na quinta dimensão. Li o título da nota noticiosa sobre o perdão concedido a Jesse James e por momentos julguei tratar-se da revisão do rico registo criminal do bem sucedido (com o gatilho) bandido do Missouri, abatido à má-fila por um traidor em Abril de 1882. Afinal tratava-se apenas do perdão de Sandra Bullock ao trastalhão do marido, homónimo do fora-da-lei, que se tem andado a divertir à grande, benza-o Deus, com uma tal de Michelle «Bombshell» McGee. Os mergulhos no passado têm-me distraído um pedaço das coisas importantes.

                    Devaneios, Etc., História

                    Vozes da Revolução

                    Silvio Rodriguez

                    Depois do cantautor Pablo Milanés é agora a vez de Silvio Rodriguez. Não se passa mesmo nada em Cuba para além dos murmúrios de uns quantos «mercenários do imperialismo», como se esforçam por fazer-nos acreditar os patéticos publicistas da Revolución traída e da ditadura?

                    Nota posterior importante – Como fui uma das pessoas enganadas pela informação que me chegara acerca da posição de Silvio Rodriguez, não posso deixar de apontar agora para o post «Diálogos Cubanos», no qual Joana Lopes oferece alguns links importantes para um mais completo esclarecimento do caso.

                      Atualidade, Democracia, Música

                      22,9 por cento

                      solo

                      Um inquérito feito junto de 3849 cidadãos e realizado pela Faculdade de Ciências Médicas da UNL revela que 22,9 por cento dos portugueses manifesta sintomas que os situam na categoria dos mentalmente perturbados. O número aproxima-se só dos 26,3 por cento que ocorrem nos Estados Unidos. A percentagem de casos está, aliás, muito longe da verificada em países maioritariamente católicos do Sul da Europa com os quais Portugal é frequentes vezes comparado em termos culturais – a Espanha tem só 9,2 por cento de pessoas com problemas e a Itália apenas 8,2 – e bem distante dos dois países com prevalências maiores, como a França (18,4 por cento) e a Holanda (14,8). Segundo o Público online, no topo dos problemas estão a ansiedade (16,5 por cento), as situações depressivas (7,9), o controlo dos impulsos (3,5) e perturbações relacionadas com o álcool (1,6). Além disso, os mais afectados são as mulheres, os jovens dos 18 aos 24 anos, as pessoas mais sós (separados, viúvos e divorciados) e aquelas com níveis baixo e médio de literacia. 33,6 por cento não recebe qualquer tratamento, mesmo em situações julgadas particularmente graves.

                      Não vamos agora assobiar para o lado, considerando que estes académicos são uns exagerados, ou dar de barato que são só as empresas farmacêuticas a tentarem ampliar o mercado. Nem declarar, sem provas por enquanto, que a culpa é «do Sócrates» ou «do Cavaco». Mas temos em mãos um problema em relação ao qual é necessário tomar algumas medidas e fazer alguma pedagogia, já que épocas de crise social e de empobrecimento como aquela que vivemos tenderão a agravar os quadros clínicos. Um problema tão real, tão real, que foi possível chegar-se a este ponto – mais de um quinto dos portugueses, pois, com claros problemas do foro psíquico – sem que aparentemente alguém se tivesse apercebido da situação. Quer isto dizer que existem fortes probabilidades de encontrarmos nos órgãos de decisão pessoas diminuídas pela doença mental, dada a inexistência de exames de robustez psíquica para o exercício dos cargos (e feitos por quem, já agora?). Além de que já descartámos as velhas teorias da antipsiquiatria, que sempre nos permitiriam duvidar da capacidade de quem quer que fosse para fazer diagnósticos absolutos e chegar a números tão peremptórios. Provavelmente vai ficar tudo mais ou menos na mesma, pois parece que andamos assim há bastante tempo e o país ainda não foi abaixo. No fundo, quase toda a gente acha o tema um bocado embaraçoso e prefere passar-lhe ao lado. Mas a partir de agora iremos duvidar sempre da razoabilidade do cidadão do lado. Como ele da nossa. Vai ser esquisito.

                        Atualidade, Olhares

                        O passado existiu?

                        Passado

                        No início do ensaio «Um dois, esquerda ou direita – o meu país», de 1940, integrado na antologia Livros & Cigarros agora editada pela Antígona, George Orwell escreveu o seguinte:

                        «Ao contrário do que muita gente julga, o passado não era mais fértil em acontecimentos do que o pre­sente. Se assim parece, é porque, ao recordarmos os tempos idos, amalgamamos coisas que sucederam com vários anos de intervalo, e porque são bem escassas as memórias que nos chegam genuinamente virgens. É em grande medida devido aos livros, filmes e remi­niscências vindas a lume entretanto que prevalece agora a ideia de que a guerra de 1914-18 possuiu um carácter tremendo, épico, que falta à guerra actual.»

                        De facto, a memória que reconhecemos como construída é frequentes vezes mais forte, e aparentemente mais sólida, do que os vestígios materiais que nos chegam do passado. Aquilo que me atrai é ver como essa memória construída ganha força, se autonomiza, e produz em nós certezas e percepções de experiências que jamais vivemos. Para o historiador profissional essa é uma dificuldade: a imaginação tolda a consciência e inventa ilusões, obrigando a um esforço suplementar, muitas vezes inglório, de busca da objectividade possível. Já para o cidadão comum essa dificuldade deixa de o ser, tornando-se até um factor adicional de enriquecimento do imaginário. O ideal, no limite, será podermos cruzar as duas perspectivas e perceber que a História não é apenas «o que foi» mas de igual forma aquilo que outros nos disseram que foi e nós próprios fomos construindo e interiorizando, sujeitos a múltiplas influências e leituras, como representação.

                        «Mas caso tenhamos vivido durante essa guerra e sejamos capazes de separar as nossas memórias genuínas dos acréscimos posteriores, verificamos que não eram habitualmente os acontecimentos grandio­sos que nos faziam vibrar. Não creio que a Batalha do Marne, por exemplo, se tenha revestido, para o público em geral, da natureza melodramática que mais tarde lhe foi conferida. Nem sequer me recordo de ouvir a expressão ‘Batalha do Marne’ até se terem passado vários anos.»

                        O trabalho de construção ficcionada do passado produz também esse efeito. Quanto mais nos distanciamos temporalmente dos acontecimentos, mais deles emergem os grandes momentos, os grandes movimentos, os campos magnéticos. Mas quanto mais os estudamos, quanto melhor lhes observamos os detalhes, os ampliamos, mais deles se destacam os pormenores irrepetíveis, da vida comum, de todos os dias. Sem filtros ou grandes explicações. A «verdade» está assim em todo o lado: no passado e nos sucessivos presentes que o foram remodelando. Está em toda a parte e ao mesmo tempo em parte alguma. Por isso jamais tem fim o trabalho do historiador e por isso a História é sempre parcialidade e incerteza. O que só enriquece o seu poder de questionamento e de atracção.

                          História, Memória

                          Pecado e remissão

                          De acordo com o cada vez mais inimitável diário i, João Paulo Borges Coelho, romancista e historiador, vencedor do Prémio Leya 2009 com O Olho de Hertzog, nasceu no Porto mas «confessa que optou por ser moçambicano». Vamos perdoar-lhe o pecado? Se confessa, por mim está perdoado.

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                            Silêncio romano

                            Silêncio

                            Os anticlericais mais impenitentes têm-se divertido bastante com a recente revelação em catadupa de casos de abuso de menores ou de práticas de exploração e comércio sexual levadas a cabo, durante décadas, por um número indeterminado mas seguramente alto de membros do clero católico. Claro que, neste como noutros casos ocorridos com a Igreja romana, a procissão jamais sairá do adro. Ao longo de séculos, a sexualidade ínvia determinada pelos Padres da Igreja, que encaravam o sexo como um mal necessário, apenas admissível por ser indispensável à reprodução da espécie, bem como a prática compulsória do celibato, ambas associadas a posições de poder e de influência sobre pessoas, terão contribuído para atribuir a tais práticas uma natureza inevitavelmente endémica e continuada da qual jamais será possível conhecer a verdadeira dimensão. No entanto, nem todos os casos podem ser avaliados do mesmo modo: uma coisa são os abusos, desejavelmente denunciados e eventualmente punidos, outra são as legítimas escolhas de cada um daqueles homens e daquelas mulheres para viverem a sexualidade que jamais deixaram de possuir. O que não está a ser devidamente realçado é, por isso, a dimensão de hipocrisia que preside à convivência entre este tipo de situações e a atitude formal da suprema hierarquia da Igreja católica: existem com toda a certeza dramas intensos de infelicidade e de solidão, vividos por pessoas obrigadas a habitar uma vida inteira com os seus fantasmas e as suas secretas fantasias, das quais Roma e os seus representantes jamais falarão com clareza e verdadeiro arrependimento.

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