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Um genocídio soft

Todos os meses entro numa farmácia. A doença crónica, que não assassina mas amolece, força a peregrinação. Apanho geralmente com pessoas à minha frente e fico por ali à espera de vez. São quase sempre pobres ou remediados os outros clientes. Poderei frequentar a farmácia errada, mas raramente por lá vejo pessoas com aspecto próspero. Sei que muitas destas também não têm saúde, mas encontrarão sempre quem compre os comprimidos, as gotas e os unguentos por elas. Os pobres não. Os remediados também não. Esses chegam e ficam por ali, pacientes, tristes, calados ou a falarem baixinho, a contarem os cêntimos e as desgraças. Tenho reparado, e não poucas vezes, naquilo que os jornais acabam de relatar como uma novidade filha da crise: pessoas que não levam todos os medicamentos receitados porque não os podem pagar, escolhendo os mais baratos ou aqueles com os quais mais se familiarizaram. Deixando uma parte do tratamento para dias melhores, se é que algum dia esses dias virão. Outros, também já os vi, pedem «para assentar», prometendo liquidar a dívida mais tarde, quando receberem a reforma. Outros ainda pagarão com dinheiro emprestado. O preço, os lucros e as condições de acesso aos medicamentos são dos factores de injustiça e de falta de solidariedade mais perturbantes desta sociedade que vamos partilhando. Daqueles nos quais o Estado – social sem vergonha de o ser – teria a obrigação moral e política de intervir para impedir o genocídio soft e silencioso com o qual pactua por omissão. Daqueles que deveriam ter o lugar de destaque que não têm no combate político e nos movimentos sociais.

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    Isto quer dizer alguma coisa

    Deolinda

    Provavelmente estará tudo dito sobre «Parva que sou», dos Deolinda. Pró, contra e assim-assim. Eu sou pró porque há muita coisa contra a qual é preciso estar. Quem já não é, ou jamais foi, capaz de pensar as dinâmicas do protesto, ou de se indignar com o que vai mal e proclamá-lo sem rodeios, inventa argumentos para desqualificar a canção. Diz que «Parva que sou» tem uma estrutura pobre, simples, sem arranjos elaborados, por exemplo. Ah, pois tem, claro que tem, mas é aí que está em parte a origem da sua pujança e da exaltação que tem despertado. A arte pode ser complexa e ter uma dimensão subversora, como toda a gente sabe, mas em democracia uma canção de intervenção, que é aquilo que esta é, tem necessariamente de ser assim simples, límpida, «dizendo coisas» preto no branco como as diz um panfleto. Não pode ser murmurada. Precisa ser directa para agitar. Diz-se também, por exemplo, que é demagógica quando declara que «para ser escravo é preciso estudar». Como se isto traduzisse um apelo ao menosprezo do valor social do ensino. Só quem já não tem pinga de capacidade para perceber os caminhos da insegurança, ou vive fechado no seu mundinho tutelado, é incapaz de entender aquilo de mau que passa pela cabeça de quem entra nas universidades com o futuro já adiado sine die e o trabalho precário ou o desemprego no horizonte. Não estive no Coliseu do Porto e só ouvi «Parva que sou» através do YouTube. Mas há muito que não pressentia por cá uma cumplicidade tão grande entre a palavra cantada, o público que a envolve, e o mundo agitado e injusto que os aguarda lá fora. De certeza que isto quer dizer alguma coisa.

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      Reflexos pavlovianos

      down

      Foram de surpresa as reacções diante dos acontecimentos que ocorreram nas margens sul-leste do Mediterrâneo. Como era possível tanto movimento numa paisagem que parecia suspensa no tempo para sempre? Mas depois da surpresa veio a esperança. E depois desta o cepticismo.

      A esperança fundou-se na percepção de que afinal os cidadãos dos Estados islâmicos não são apenas barbudos com os olhos raiados de sangue, militares brutais, homens ignorantes ou mulheres veladas e submissas. Vemos à frente das câmaras pessoas de todas as qualidades, principalmente jovens, em estado de revolta pura, com a aparência de terem dispensado Deus e os Mestres. Ainda há dois dias, no Público, Paulo Moura relatava a partir do Cairo: «Aqui qualquer um pode inventar uma frase e lançá-la. Não há um partido, nem um sindicato a orientar coisa nenhuma». Tudo parece uma gigantesca festa, embora todos saibamos que as festas têm uma duração limitada e acabam por doer. Mas tudo também parece valer a pena para viver um tempo no qual muitos sentem a História a pulsar. Foi o que fez, por exemplo, com que antigos activistas jordanos e libaneses – invoco dois casos reais que a prudência aconselha a não identificar – deixassem o emprego e o descanso para viajarem até ao Cairo ou Alexandria e passarem noites na rua a bater-se pela democracia. A ausência, ou pelo menos a discrição dos islamitas, contribuiu aliás para determinar o sentimento de confiança.

      Mas na opinião que vai correndo existe também o outro lado, o dos profetas da desgraça que reagem de forma pavloviana. Alguns consideram, por exemplo, que o Egipto irá inevitavelmente seguir um processo «à iraniana». Apoiados na democracia, dizem, os extremistas tomarão conta do poder, como o fizeram em tempos os seguidores do ayatollah Khomeini. Esquecem-se porém de um pormenor: essa é uma experiência com mais de trinta anos e no Irão de hoje o extremismo é claramente minoritário, mantendo-se graças apenas à ditadura. No entanto, de acordo com todas as possibilidades, um Irão mais democrático, que o povo iraniano tem vindo a reclamar, será bem mais moderado que o poder obscurantista de Ahmadinejad. Por sua vez, os actuais governantes de Israel sentem-se também bastante incomodados. Vangloriando-se, com alguma razão, de administrarem a única democracia da região, logo que um grande país vizinho pareça dirigir-se para um tempo de liberdade, esquecem os grandes princípios e o pânico instala-se entre eles, provando que convivem bem melhor com as ditaduras do que com os riscos da mudança.

      Claro que ninguém poderá excluir o pior. A sombra dos Irmãos Muçulmanos, partido da regressão e do fanatismo religioso, está no ar: depois de um alheamento inicial, procuram agora apanhar o comboio da revolta egípcia. Mas, como perguntou no Libération Laurent Joffrin, fará algum sentido que, antes mesmo de o ditador cair e de o povo egípcio exprimir de forma livre aquilo que realmente deseja, deva prevalecer o medo do que poderá vir depois de morta a esperança? Uma atitude desta natureza traduz, a par de um chocante cinismo, uma enorme falta de confiança nos valores regeneradores da liberdade e da democracia. E estes só existem se alguém, em algum momento, se bater por eles.

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        Tudo ao monte

        RSS

        Como muitos sabem, a tecnologia RSS serve para agregar conteúdos originários de diversas fontes, permitindo aos utilizadores da Internet, através de programas ou de sites vocacionados para a função, reunir num único lugar informações provenientes de serviços que mudam ou se actualizam regularmente. O sistema tem já alguns anos e é extremamente útil para quem deseje estar a par das novidades associadas a sites de notícias, a blogues, etc., sem precisar de visitá-los a toda a hora e um a um. Sirvo-me dele há bastante tempo e tenho a certeza de que se não fosse dessa forma muita da informação à qual consigo aceder passar-me-ia completamente ao lado. Já nem sei, por exemplo, ler blogues de outro modo, uma vez que é impossível visitar, semanalmente sequer, muitos daqueles que me agradam ou que me podem ser úteis. Leio então os cabeçalhos e as primeiras linhas no agregador e depois, se o assunto e o tom me interessarem, viajo até à fonte.

        O processo não me trazia problemas até há pouco tempo, mas agora as coisas mudaram. Explico-me: os computadores tablet permitem instalar agregadores – como o Early Edition ou o Flipboard, para falar dos que tenho no iPad – que se comportam como verdadeiros jornais em papel ou portais de notícias, com uma disposição gráfica e processos de leitura e de apreensão da informação idênticos aos tradicionais. Até aí tudo bem, não fora toda a informação, apesar de condicionada pelas nossas escolhas, surgir ali de uma forma algo aleatória. Significa isto que aparecem referências e notícias chegadas da BBC, da Reuters ou do El País, lado a lado, e sem hierarquia visível, com aquela que é fornecida por um blogueiro da Marmeleira ou um enragé de Almofarizes de Cima (sem ofensa para os enragés de Coimbra). Isto é, novidades provenientes de agências ou publicações credenciadas visualmente misturadas com aquilo que possa escrever, num repente e sem intermediação, um cidadão alfabetizado e infoincluído. Desconfio que isto ainda vai provocar transtornos em muitas cabeças.

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          Esperança e desengano

          No Libération de hoje, Bernard Guetta sugere quatro novos vectores de desenvolvimento nos processos de mudança política a decorrerem nos Estados islâmicos. O primeiro refere-se a um despertar do Islão associado à ampliação daquilo a que chama os valores universais da democracia; o segundo diz respeito ao peso adquirido por uma juventude numerosa, descontente e impaciente, que recebe da Internet o impacto cultural da globalização; o terceiro dá um grande valor ao exemplo da actual Turquia, permitindo mostrar que islamismo, laicidade e desenvolvimento económico não são inconciliáveis; e o quarto sugere a instalação inexorável de um novo «xadrez democrático» que vai de uma esquerda activa e moderna a partidos religiosos conservadores mas capazes de superarem os sinais bestiais do islamismo. Guetta é um jornalista sénior, especialista em geopolítica, que conhece razoavelmente o universo do qual fala desta forma tão animadora, e nós, depois de habituados a olhar para aqueles territórios como inapelavelmente esmagados por ditaduras brutais e líderes religiosos todo-poderosos, facilmente olhamos as suas projecções como sinais de uma transformação positiva. Só que este optimismo em versão wishful thinking é perigoso e desarmante, pois nada nos garante que o Islão aparentemente democrático, moderno e urbano, que de repente tirou o véu e mostrou um rosto benigno, não seja rapidamente esmagado, antes ainda de deixar semente, pelas hordas de resignados, facilmente manipuláveis pelos tiranos ou pelos pregadores, que têm atrás de si séculos de uma cultura de submissão e pouco treino nas subtilezas da democracia. Por aqui, no conforto desta Europa por estes dias fria e chuvosa, esperar que aconteça aquilo que mais desejamos – deparar de repente com um Islão afável, de gravata, óculos de marca ou boné de basebol – pode levar a uma desilusão imensa. O jogo está lançado mas o desfecho é imprevisível. E como nada podemos fazer, resta-nos esperar por um bom resultado, sem sabermos muito bem qual possa ser ele.

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            Entre sombras e silêncios

            Em crónica saída na revista New Statesman, o escritor ucraniano Andrei Kurkov descreveu Sussurros, de Orlando Figes, como «uma fascinante enciclopédia das relações humanas», considerando-o, a par do Arquipélago Gulag, de Soljenitsine, e dos Contos de Kolima, de Varlam Chalamov, como «um dos maiores monumentos literários do povo soviético». Não se trata de uma desnecessária hipérbole, pois esta é, de facto, uma obra soberba e claramente inovadora. Convém à partida desvanecer um eventual equívoco: este não é mais um dos muitos estudos históricos descritivos e estatísticos sobre Estaline, o estalinismo e as suas vítimas proporcionado pela abertura dos arquivos que se seguiu à Glasnost. Mergulhando nas sombras, surge antes como uma abordagem da vida diária das pessoas comuns e da forma como esta foi condicionada pela engenharia social do «homem novo». (mais…)

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              Armadilhas do PowerPoint

              PowerPoint

              Fui e sou um utilizador prudente do PowerPoint. Pareceu-me desde o início um expediente útil mas potencialmente negativo, por simplificar aquilo que é complexo, por transformar com dois cliques o que é trama, o que é novelo, numa fórmula perfeita ou em rede de linhas demasiado regulares. O estilo de operação ao qual o seu utilizador recorre tem passado muitas vezes por «pedagógico» e é justamente aqui que se situa a fonte da minha desconfiança. Debati este tema há algumas semanas durante uma aula de mestrado e por um acaso – ou talvez não – dias depois encontrei na Visão uma entrevista com o jornalista francês Franck Frommer na qual este vem ao encontro das minhas dúvidas. A entrevista saiu a propósito do lançamento, pela La Découverte, de um livro de Frommer cujo título é todo um projecto: La pensée PowerPoint – Enquête sur ce logiciel qui rend stupide (O pensamento PowerPoint – Inquérito sobre este programa que estupidifica). O autor considera-o de facto um dispositivo perverso: «Dá a ilusão de criatividade, mas, ao mesmo tempo, é constrangedor. Pouco permite sair de um fio condutor linear e não favorece a interactividade. Parece muito ‘científico’ embora seja simplista. Como transforma toda a argumentação em listas de pontos, impede o debate. Inventa laços de causalidade artificiais.»

              Algumas pessoas poderão dizer que isto é verdadeiro, mas que, em contrapartida, nas actividades da sala de aula ou durante uma conferência o recurso ao programa responde também às dificuldades de percepção dos alunos ou do público, podendo ainda, como um teleponto, ajudar o orador a ser mais claro, metódico e convincente. Existirá um grau de verdade nisto, sem dúvida. Mas podemos e devemos também colocar o problema ao contrário: não convidará a simplificação induzida pelo recurso sistemático a este dispositivo à preguiça de quem comunica e à passividade de quem ouve? não fará ela com que se vá perdendo o treino na percepção de formas complexas de pensamento e no desenvolvimento de uma capacidade retórica rica e sofisticada, integrando quem assiste num plácido e silencioso rebanho de carneiros? Sei que uma resposta cabal as estas perguntas não pode inferir-se de uma mera opinião individual, mas eu penso que sim. É quase sempre assim que acontece. E por isso vou continuar a usar o PowerPoint muito moderadamente, desligando o projector logo (ou sempre) que possível.

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                Perderam o medo

                perder o medo

                Ninguém sabe que caminho tomará e até onde poderá ir a revolta popular que irrompeu na Tunísia e está a alastrar a outros países islâmicos que vivem debaixo de ditadura. A insurreição parece incontida: multidões ocupam ruas e praças, clamando de uma forma intensa, bem audível, profundamente física, por mudanças numa vida colectiva feita de privações, repressão e desespero. A repressão actua e não é afável, fere e mata pessoas, mas não parece ser capaz de conter os efeitos de uma tensão que, percebe-se agora, atingiu os limites do tolerável e acabou por explodir. Os objectivos parecem ser claros e vagos ao mesmo tempo, pois se a maioria talvez não identifique com clareza aquilo que deseja sabe muito bem o que não quer. E não quer, em primeiríssimo lugar, continuar a ver na televisão, em fotografias gigantescas, em estátuas erguidas em espaços públicos, rostos que são sinais da estagnação e da ausência de liberdade. Sim, porque a palavra liberdade é audivelmente pronunciada por muitos dos revoltosos. E a palavra democracia também.

                Ao mesmo tempo, basta-nos seguir as notícias, ouvir os especialistas, ver fotografias e vídeos que vão chegando, para concebermos a diversidade da revolta. Na Tunísia, por exemplo, vemos muita gente da classe média, muitas mulheres e muitos jovens, manifestantes que se percebe terem um certo nível de formação. No Iémen quase só encontramos homens, invariavelmente com sinais da mais extrema pobreza. No Egipto confluem grupos e rostos muito diversos. Alguns sectores estão sedentos de democracia e de desenvolvimento, a outros preocupa principalmente a sobrevivência.  Mas seja para onde for que se caminhe, uma coisa já é certa: esta vaga de rebelião tem vindo a devolver ao mundo islâmico o respeito e a simpatia de milhões de pessoas que não fazem parte dele e dele tantas vezes desconfiam. Estas podem finalmente perceber que a «rua islâmica» não é território exclusivo de homens barbudos, prontos a degolar os infiéis que ousem duvidar da sua fé mas submissos diante dos déspotas. Centenas de milhares, milhões talvez, estão a mostrar ao mundo o que apenas há um mês lhes pareceria absurdo: que perderam o medo.

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                  Os 178 trabalhos de Cuba

                  Cuba

                  «É preciso suprimir as preocupações paternalistas que atenuam a necessidade de trabalhar para viver», disse Raúl Castro após mais de 50 anos ligado a um governo que cedeu a tal descuido. Para dois milhões de cubanos, funcionários do Estado, 500.000 agora e mais 1.500.000 a prazo, isto significa uma acusação formal de mandriice. E a obrigação de procurarem um novo modo de ganhar a sua vida. Como? Trabalhando numa das 178 actividades privadas que o governo lhes permite ter, ainda que não possuam formação para qualquer uma delas ou um financiamento básico para lançarem o negócio. A lista – anexo 1, da resolução número 32 de 7 de Outubro de 2010 – parece uma sucessão de deixas para um mau programa de humor. Abre com «reparador de instrumentos de música» e encerra com «alugador de bicicletas». Pelo meio, «poceiro» (o operário que abre poços), «cabeleireiro», «engomadeira», «fabricante de cintos», «polidor de metais», «pedreiro», «vendedor de vinho», «figura folclórica» (imagino o que possa ser), «cartomante» (sic), «vendedor de flores artificiais», «descascador de frutos naturais», «par de dança» ou, acreditem, «dandy» (talvez em Cuba signifique outra coisa). Pode também entrar-se com expectativas na carreira de «estofador de botões» (a pessoa que reveste de tecido alguns modelos antiquados daqueles acessórios do vestuário), «tratador de cães», «carregador de isqueiros», «colector-vendedor de matérias primas» (aquele que remexe no lixo para recolher e revender o que se puder aproveitar), «operador de compressor de ar, reparador de pneus e de câmaras de ar», ou «preparador-vendedor de bebidas não alcoólicas ao domicílio». Como disse o Castro mais novo, «é preciso acabar de vez com a ideia de que em Cuba é possível viver sem trabalhar». Existe agora um mundo novo de possibilidades, bem preciso e bem delimitado, que liberta o Estado dos inúteis e dos preguiçosos e que prepara o futuro do país. Basta solicitar licença para exercer uma actividade que conste do catálogo, aguardar pelo deferimento e ficar à espera do milagre da sobrevivência. Para pelo menos dois milhões de trabalhadores cubanos e para as suas famílias é este o deprimente horizonte.

                  Dados retirados do suplemento «Le Mag» do Libération de 23 de Janeiro.

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                    A água do capote

                    sofá

                    Quando em 1963 Hannah Arendt publicou Eichmann em Jerusalém, invocando aí o tema difícil da banalidade do mal, provocou uma onda de choque em muitos dos seus leitores judeus ou em pessoas que simpatizavam com as suas causas. O escândalo derivou, como tantas vezes acontece perante uma argumentação lúcida mas complexa, de uma incompreensão profunda e renitente. Na realidade, Arendt, ela própria de origem judia, não tinha declarado ali que os judeus haviam sido cúmplices do seu próprio aniquilamento às mãos da barbárie nazi, como alguns quiseram fazer crer, mas sim que uma certa passividade, ou desinteresse, mantido por muitos perante os avanços do nazismo e do anti-semitismo, os haviam transformado em inevitáveis vítimas. Quando acordaram não tinham alternativa. Sem dramatizar em excesso os resultados das eleições de domingo e pretender, o que seria um absurdo, que a situação política que vivemos tem algo que se compare à da Alemanha durante a República de Weimar – Cavaco não é propriamente Adolf Hitler e continuamos apesar de todos os males a viver em democracia – podemos ainda assim esboçar uma analogia com a explicação da teórica alemã. Olhar para o lado, incitar à indiferença, trouxe consigo, objectivamente, uma derrota que irá lesar muitos dos que por omissão a permitiram ou amplificaram.

                    É que aconteceu o que aconteceu porque um largo sector da «consciência global» da esquerda – um conceito que arrepia muitos dos seus segmentos, mas que existe para além da sua vontade – não só não foi capaz de gerar as condições para produzir uma alternativa convincente e mobilizadora, como se refugiou num desinteresse, numa maledicência, numa abulia que acabaram por favorecer uma direita unida, pragmática e razoavelmente enérgica. Manuel Alegre, de facto, apenas mobilizou os partidários de uma ideia de esquerda cheia de pergaminhos mas talvez demasiado retórica, imprecisa e pouco atractiva. Já os mobilizáveis que não foram mobilizados – leia-se, um bom número de militantes e compagnons de route socialistas – refugiaram-se num rancor absolutamente cúmplice. Agora justificam-se, entre gargalhadas, com um absurdo «eu não vos disse…», mas a verdade é que é fácil afirmar que Alegre foi estrondosamente derrotado – e foi-o – quando de facto tudo se fez para que essa derrota acontecesse, ainda que à custa de uma vitória esmagadora – que o foi – do homem de Boliqueime. A sua apologia da passividade não foi a causa exclusiva da derrota de Alegre, mas foi com toda a certeza responsável pela dimensão do triunfo do candidato da direita. Que não venham sacudir para cima dos outros, aqueles que se moveram, a água do capote.

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                      Frio polar

                      frio polar

                      A manhã estava de sol mas estava triste. Votei às dez, depois de ultrapassar uma barreira aparentemente inabalável de pequenos lobitos em calções e lenço à Baden Powell, com as caras vermelhas e contorcidas pelos 2 graus Celsius, que por ali se mantinham comandados por um matulão de dezassete anos devidamente agasalhado. Tentavam vender calendários impressos a jacto de tinta aos cidadãos eleitores, que resistiam a tirar as mãos dos bolsos ou a descalçar as luvas. Não havia fila: entrei directamente para a mesa de voto e ainda me dei ao luxo de conversar durante dois minutos com os esforçados cavalheiros da mesa e a notória companheira bloquista. Sobre trivialidades, claro. Mas aproveitei para me queixar de ter sido deslocado de uma mesa de voto que ficava a 100 metros de casa para outra a três quilómetros bem medidos. Na minha insana sanha anticavaquista, lá depositei então o voto na urna. Não, não foi naquele senhor doutor médico que é todo ele boa pessoa, não foi no chefe da oposição na Madeira, não foi no funcionário cansado, mas sim no outro, aquele do verbo retumbante que o Sr. Lello detesta. O entusiasmo – o meu e o de toda a gente que vislumbrei – era nenhum. Suspeito, julgo que com algum fundamento, que não terá sido por causa do frio polar. Só vi pessoas a circularem de cá para lá, de lá para cá, com cara de quem acabou de tirar da caixa Multibanco um extracto de conta e está a precisar de um café bem forte e bem quente. Tenho a impressão de que não é assim que se levantam futuros, mas às tantas também estou a exigir demasiado da vida.

                      Nota importante – Ao escrever este apontamento constatei que anticavaquista (sem hífen) já consta entre as palavras reconhecidas pelo corrector ortográfico Flip, versão 8, como fazendo parte da língua portuguesa. Valha-nos isso.

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                        A cultura popular do salazarismo

                        cultura popular

                        A Angelus Novus editou no final de 2010, na série de História (que coordeno) da colecção «Biblioteca Mínima», o livro A Cultura Popular no Estado Novo, de Daniel Melo. Este constitui uma excelente e actualizada introdução a um tema sobre o qual o autor vem trabalhando desde há anos. A editora acaba entretanto de divulgar no seu blogue uma entrevista com o historiador. Nesta se fala, entre outros aspectos, da forma como o modelo de cultura popular estimulado ou construído pelo salazarismo serviu na época de «’almofada’ social». Ele oferecia, sublinha Daniel Melo, «um conforto existencial face aos receios que a mudança pode compreensivelmente despertar», mas funcionava também como «pilar ideológico, guia da acção e inculcador de certos valores, práticas, vivências e comportamentos, fortemente unidimensionais.» Pode seguir-se aqui toda a entrevista.

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                          No olho do vulcão

                          Túnis

                          Nawaat – a palavra significa «núcleo» em árabe – autodefine-se como «um blogue colectivo independente animado por tunisinos que dá a palavra a todos aqueles que pelo seu combate cívico a tomam, proferem e difundem». Tem publicado centenas de textos, fotografias e principalmente vídeos sobre o movimento popular de protesto que desde meados de Dezembro tem percorrido a Tunísia. É independente, não aceitando qualquer subvenção partidária. No ar desde 2004, foi desenvolvendo ao longo destes últimos seis anos a dose de engenho e de arte bastante para contornar a censura imposta pela ditadura de Ben Ali. E foi agora instrumental no lançamento e na organização dos protestos. Editado em inglês, francês e árabe, pode ser visitado aqui.

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                            Bom conselho

                            Chico

                            A esquerda em campanha parece incapaz de falar para os que precisam realmente de campanha. A fazer chover no molhado quando a savana está ali mesmo ao lado. Bate em Cavaco 24 horas sobre 24 junto daqueles que jamais votarão em Cavaco e não precisam de que lho lembrem. Dando ao mesmo tempo a este oportunidades para ir dizendo ao bom povo hesitante que é atacado pelos que «só sabem dizer mal» e que, no fundo, «nada fazem». A esquerda em campanha denuncia as trapaças e as malfeitorias de Cavaco de segunda a segunda como se parte importante do povo eleitor que decide não visse em muitos desses actos actos sinais de uma «esperteza» que cobiça ou lhe é indiferente. Porque não uma preocupação maior em explicar pacientemente e com imaginação, boca a boca, porta a porta, debate a debate, comício a comício, post a post, a tanta gente que hesita ou ainda duvida, AS RAZÕES pelas quais vale a pena votar positivamente no seu candidato? (Quase três da madrugada. Desligo o computador, apago a luz e desço as escadas trauteando a velha canção de Chico Buarque. «Oiça um bom conselho, que lhe dou de graça.»)

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                              Onde estará você a 23 de Janeiro? (2)

                              verderubra

                              Como não me prende qualquer dever de solidariedade para com um partido ou movimento dotado de programa, estatutos ou objectivos a curto prazo – com Albert Camus, reconheço apenas que «se existisse um partido daqueles que não têm a certeza de terem razão, eu faria parte dele» – posso dar-me ao luxo de ser sincero e de falar com quem me lê sem preocupações exageradas com o impacto do que escrevo. Posso dizer, por exemplo, que sendo adepto obstinado de uma intervenção cívica atenta e permanente, neste momento mais facilmente me revejo na expressão resistente da recusa e do protesto do que na associação a propostas programáticas voltadas para a acção organizada. Haverá quem diga que essa é uma posição cómoda, e provavelmente é-o, mas vivendo numa sociedade sem projectos políticos mobilizadores, sem movimentos nos quais confie ao ponto de aderir fisicamente a eles – já que a alma, lamento, essa só ao velho diabo a doarei –, não é nada de particularmente singular que faça parte da multidão de cidadãos politizados que se não revêem na militância de papel passado. Serão tentações de anarquista? Sim, um pouco, pois admito que entre o vermelho e o negro o meu coração já balançou mais. Mas as circunstâncias não carecem de grandes justificações: muito simplesmente, incomoda-me gritar palavras de ordem, vivas, hurras ou morras quando o meu apoio às ideias, instituições ou pessoas às quais elas se aplicam conserva uma razoável distância crítica.

                              Sim, já o disse aqui e repito-o agora: no dia 23 votarei em Manuel Alegre. Dele afasta-me muita coisa. Afastam-me desde logo certos pressupostos culturais e modos de estar. Não gosto da exibição de «moralina», essa palavra inventada por Nietzsche para designar uma arrebatada agitação declamatória, em forma de pregação, que nega a dimensão crítica e convicta da intervenção política. Não me agrada a sua concepção protocolar e estritamente canónica de cultura. Não me agrada o vínculo com um Portugal simbolicamente virilizado, taurino e venatório, que me parece de outras eras. Afasta-me também um trajecto recente marcado por atitudes de hesitação ou pouco claras, apesar da afirmação pública de inegável coragem que tem pontuado a sua vida. Aproximam-nos, todavia, factores que se relacionam com muito daquilo que representa, ou pode vir a representar, que é basicamente a reconstrução de territórios de política solidária, a activação de expectativas de mudança, de prioridades sociais, de uma sensibilidade centrada nas pessoas, que se encontram nos antípodas do que Cavaco Silva exprime. É este o campo de combate que agora interessa, muito mais importante do que o espaço para os gostos e os desagrados de pessoas mais ou menos como eu. Por isto, apesar de não andar por aí em desfiles ou comícios a gritar os tais vivas e hurras – sem nada, mas mesmo nada, contra quem o faz –, agirei a 23 sem hesitações. Não me posso refugiar em esquisitices pessoais, não me posso abster, quando, para além de Manuel Alegre, não existe alternativa capaz de impedir que por mais cinco anos tenhamos de conviver diariamente com a cabeça rústica mas perigosa daquele senhor esguio, azedo e de direita.

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                                A rua tunisina

                                Tunísia na rua

                                Os acontecimentos dramáticos da Tunísia, os duros recontros de rua entre os manifestantes e a polícia, e o seu resultado prático com a demissão compulsiva de Ben Ali, inesperados pelo menos para quem os observa de longe, podem ajudar-nos, nesta época de recuo dos movimentos sociais de natureza não-reformista, a perceber que não é através da instalação da cultura de escape ou do conformismo diante do arbítrio que se combatem a tirania, a injustiça ou a desigualdade. Que se revela a possibilidade da realidade que «é» ser bem diversa daquela outra que afinal «pode ser». Através de um processo de mudança apoiado num esforço para sairmos do nosso acanhado território de salvaguarda, dos nosso medos instalados e do nosso desalento. Da pequena vida ocupada com a sobrevivência em fugidios nichos de felicidade nos quais nos resguardamos para sobreviver.

                                Será um lição para os povos dos Estados do mundo islâmico, dentro dos quais o poder arbitrário, a desigualdade entre ricos e pobres, entre quem pode sempre e quem apenas deve, a pobreza extrema da maioria da população, a exploração do trabalho, a falta de liberdade, o analfabetismo e a ignorância, a intolerância usada como forma de opressão, são camuflados por uma retórica sectária, nacionalista ou antiocidental, apresentada pelas autoridades políticas e religiosas como vinculada a uma «tradição islâmica» na verdade inexistente. Foi o libanês Samir Kassir quem, num livro que lhe custou a vida – Considerações Sobre a Desgraça Árabe, editado em 2006 pela Cotovia – falou dos crimes dessa gente que se mantém no poder fazendo crer aos seus povos «que não têm outro futuro para além do que lhes destina um milenarismo mórbido», remetendo-os ao culto «da desgraça e da morte». Na realidade, uma alteração de política imposta pela revolta generalizada e pela vitória, ainda que temporária, dos objectivos nucleares dos sublevados, como esta que acaba de acontecer na Tunísia, suscita o exemplo de uma oportunidade, de um trilho, que só pode preocupar as elites criminosas, cujo poder se funda na opressão e se alimenta do ódio ao outro que vive a milhares de quilómetros de distância.

                                Mas será uma lição também para os povos do chamado ocidente, em particular para os da Europa do sul, contidos por sistemas políticos bloqueados, sem capacidade de renovação e de motivação, e narcotizados por uma comunicação social manipuladora, controlada pelos grupos financeiros, que se esforça para impor a ideia de que toda a perturbação é necessariamente má. Espalhando, como um vírus, a fantasia de que os núcleos concêntricos do poder são imunes aos protestos dos cidadãos e à possibilidade de uma mudança de orientação na organização da economia, na escala dos valores sociais, na escolha das prioridades políticas. A revolta extrema, dura e radical, com contornos por vezes brutais, como aquela que vimos agora nas cidades, vilas e até povoados tunisinos, pode desenhar num horizonte geograficamente alargado, a contracorrente, a percepção de que existe um momento no qual a paz social carece realmente de alguns safanões. Estes movimentos bruscos e perturbantes não são agradáveis – só um tonto ou um louco gosta do cheiro das barricadas em chamas, do ardor dos gazes lacrimogéneos, de sangue derramado –, mas podem ajudar a reencontrar a ideia de que a mudança radical não é um mal em si. E de que ela pode até representar a melhor forma de evitar males bem piores.

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                                  Édipo na Austrália

                                  Marie B

                                  Sobrinha-bisneta do imperador Napoleão I, a princesa Marie Bonaparte (1882-1962) foi uma figura central para a definição da psicanálise enquanto prática clínica e saber autónomo e reconhecido (ou antes, razoavelmente reconhecido, uma vez que ao fim de mais de um século de combate os seus inimigos permanecem activos e vigilantes). Muito próxima de Freud, a quem ajudou pessoalmente quando em 1938, já com 71 anos, este precisou de sair de Viena para escapar dos nazis, Marie usou a sua enorme fortuna – em boa parte herdada do avô, François Blanc, fundador do Casino de Monte Carlo – para financiar encontros científicos e trabalho de investigação na disciplina que ela própria viria a adoptar profissionalmente. O eco longínquo de um destes trabalhos acaba de me chegar através de uma referência num artigo de Evan Osnos saído na New Yorker («Meet Dr. Freud», sobre a recente voga da psicanálise na China após longas décadas de perseguição e clandestinidade). Ali se refere a dada altura o financiamento, por parte de Marie, de uma viagem do psicanalista e antropólogo húngaro Géza Róheim à Austrália com o objectivo de determinar se entre os aborígenes existia complexo de Édipo. Róheim concluiu que sim, em apoio da ocorrência de uma estrutura edipiana universal. A conclusão é respeitável, mas é também irresistível a analogia que pode ser feita entre aquela pesquisa e os esforços dos evangelizadores católicos do século XVI para determinarem pela observação empírica – por vezes com recurso à tortura – se os ameríndios possuíam alma (já que, de acordo com a opinião à época dominante, os negros não a tinham de todo). Fica a declaração urbi et orbi de que esta analogia vale por si, não transportando consigo qualquer preconceito em relação à teoria e à prática da psicanálise, à bondade da princesa Marie ou ao trabalho do notável ex-bolseiro húngaro.

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                                    Billy the Kid

                                    Prevaleceu o bom senso. Ao contrário do que chegou a ser anunciado, o Estado do Novo México não vai perdoar a Henry McCarty, ou melhor, a William H. Bonney, ou melhor ainda, a William Antrim, Jr., aliás Billy the Kid, 118 anos depois da sua morte às mãos do xerife Pat Garrett, os crimes cometidos, segundo palavras do governador Bill Richardson, «a saquear, a devastar e a matar os merecedores e os inocentes de igual forma». Salvaguarda-se assim uma parte do património americano que muitos milhões de pessoas foram partilhando. Pois faria lá sentido algum que agora, à revelia de tantos rapazes que vibraram com os seus assaltos, que se entusiasmaram com os duelos de carabina e revólver ganhos pelo herói-bandido com cara de bebé, se passasse um atestado de ignóbil inocência ao famigerado Kid?

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