A esquerda e a caça aos gambozinos

pára-arranca

Vivemos tempos difíceis para a esquerda. Na realidade eles jamais foram fáceis, uma vez que o seu trajecto aponta desde a origem para a construção de uma sociedade solidária e igualitária, e esta é, em qualquer tempo ou lugar, uma tarefa difícil, morosa e armadilhada. Se a este objectivo primordial juntarmos a defesa da liberdade e valorização da democracia, então o preenchimento das agendas da esquerda torna-se ainda mais complicado. Por isso tantos preferem pluralizar o conceito: «esquerdas» parece, de facto, mais realista do que «esquerda», uma vez que a diferença é a regra, muitas vezes o obstáculo, e só no plano dos fundamentos se admite um caminho partilhado. Em Portugal, esta separação das águas foi reforçada, na comparação com experiências geograficamente próximas, pelo facto de ser praticamente inexistente, no mínimo desde o final da Segunda Guerra Mundial e dos tempos do MUD, o simples vislumbre de um projecto comum. De um calendário capaz de congregar diferentes sectores em torno de objectivos partilhados, voltados para a edificação objectivável de um outro país.

Mas se a dificuldade de encontrar à esquerda um caminho de aproximação não é de hoje, ela tornou-se agora particularmente penosa e incapacitante. Para uma consciência de esquerda que coloca os interesses colectivos acima dos objectivos circunstanciais deste ou daquele agrupamento, é particularmente difícil olhar o modo como a direita se encontra isolada na defesa de um modelo de sociedade selvagem e injusto sem que isso a distancie do acesso ao poder pela via do voto popular. Pelo contrário, ela mantém-se até pronta a assumir a governação e só a «esquerda de retórica», que esquecida dos seus princípios fundadores lhe imita os passos, parece em condições de lhe fazer frente nas urnas. Por outras palavras e dando o nome aos bois: enquanto o PSD e o CDS se preparam para gerir os destinos da nação, o PS, ou a linha de conciliação com a direita e o capitalismo que hoje o domina, limita-se a confrontá-los prometendo a mesma coisa mas de uma forma mais branda, moderna e simpática. Uns e outros projectando os seus programas sobre esse cenário de proclamada inevitabilidade que tem a destruição da dimensão social do estado como ponto assente e indiscutível.

É aqui que entra a apressada ideia, a pairar no ar desde há alguns dias, de uma alternativa eleitoral unitária de esquerda, capaz de congregar, no mínimo, o Bloco, o Partido Comunista e uma ou outra figura «independente» que com eles pudesse colaborar. Trata-se de uma intenção «piedosa», forçada pelas circunstâncias adversas e pelos sentimentos de impotência, que não seria impossível de concretizar se os responsáveis dos dois partidos para aí estivessem voltados. Não o estão, para já, como se depreende pelo menos das recentes declarações dos comunistas. Mas fica em suspenso a possibilidade obscura de se acenar ao eleitorado com a constituição de um hipotético «governo patriótico de esquerda». No entanto, a manter-se, esta simples possibilidade reforçará, nas circunstâncias actuais, a vitória dos partidos da situação, levando até a um acentuado recuo da esquerda à esquerda do PS. Em particular do ainda organicamente frágil Bloco, já que os comunistas contarão sempre com o seu edifício de betão e a sua imutável bolsa eleitoral.

A derrota estrondosa desta ideia será determinada pela realidade, factor ao qual os cidadãos eleitores são sempre «estranhamente» sensíveis. Isto é, será imposta pela inexistência de um modelo credível de governação a apresentar a quem irá votar. E pela consciência da impossibilidade de lançar em dois meses uma plataforma de unidade entre quem nasceu e viveu rigorosamente separado ao longo destes anos todos. Que modelo de gestão do país propor quando até agora apenas se pensou e apresentou aquilo que se não queria, actuando politicamente na lógica quase exclusiva do protesto? O que estabelecer como propósito, em termos práticos e objectivos, no momento particularmente grave e crítico que vivemos, para resolver os problemas mais básicos do financiamento do Estado e do emprego? Que atitude definir nas grandes e incontornáveis questões internacionais em relação às quais as divergências entre bloquistas e comunistas aparentam ser inultrapassáveis? Como lidar com os hábitos, estruturalmente formatados na lógica agressiva da «vanguarda» dirigente e da ideia de «traição», de relacionamento do PCP com as outras esquerdas? Como impedir, nestas circunstâncias, o afastamento para a abstenção, ou mesmo para a lógica do «voto útil» no PS, dos sectores do eleitorado que antes apostaram no Bloco justamente por encontrarem neste o vislumbre de uma esquerda moderna, mais adequada a uma sociedade complexa e de matriz não totalitária?

Nas circunstâncias actuais, um «governo de esquerda» na linha do horizonte é uma miragem incapaz de convencer quem não se reja por uma lógica política quimérica e voluntarista. No plano do jogo eleitoral e dos seus resultados – e é disto que estamos a falar – propô-lo agora será sempre desastroso. Sejamos realistas: no contexto das eleições legislativas agora antecipadas, a grande tarefa de uma esquerda plural que se queira alternativa não passa pela concepção de um cenário impossível de levantar, mas pela afirmação de três linhas que excluem forçosamente a fantasmagoria de uma improvável unidade. A primeira linha passa pela afirmação dos diferentes programas eleitorais partidários na lógica daquilo que se espera de cada um deles, da sua identidade, dos seus objectivos conhecidos; a segunda passa pela sua presença ininterrupta junto dos movimentos sociais, que nestes duros tempos de resistência não podem ser colocados entre parêntesis em favor de uma lógica estritamente eleitoralista; e a terceira impõe que cada uma delas se sirva do reconhecimento do presente impasse para projectar um debate aprofundado, necessariamente longo e difícil, sobre o que se pretende realmente de uma esquerda que venha a governar à esquerda e não se limite a protestar contra quem coloca a lógica do lucro, ou da «criação de riqueza», acima dos princípios mais elementares do equilíbrio social e do bem-estar das pessoas. Avançar sem isto resolvido com belas palavras sobre a possibilidade de um «governo patriótico de esquerda», ou lá o que lhe queiram chamar, será como partir armado e equipado, no meio do alarido da matilha, para uma inglória manhã de caça aos gambozinos.

Adenda – Existe, claro, quem veja tudo ao invés deste ponto de vista. Em nome de não se sabe bem o quê e do desejo muito grande de que esse algo seja «alguma coisa de esquerda», obrigatoriamente contra o PS. O movimento Ruptura/FER, numa moção à Convenção do Bloco, garante mesmo que a aliança PCP/BE «arrastaria mais votos e pessoas do que aqueles somados por BE e PCP», atraindo «sectores do PS, votantes de Fernando Nobre, sindicalistas e as novas gerações abstencionistas». Pois sim.

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