Impossível unidade

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© 2008 brandybuck

Desnecessárias e até um tanto grotescas para a maioria dos cidadãos, que as observam como a um evitável render da guarda, estão a chegar as eleições antecipadas, projectadas pela Grande Crise sobre um cenário de descrença. Face a elas, a esquerda à esquerda de Sócrates vê-se perdida num labirinto de possibilidades atravessadas por duas grandes incapacidades. A de construir um modelo que refunde e adapte ao século XXI a definição programática de socialismo, e a de propor linhas credíveis para uma «governabilidade à esquerda». Nestas condições, os partidos do centro-direita – o tal «arco da governação» rotativista que vai do actual PS ao CDS – vivem uma situação paradoxal: não têm a confiança da maioria dos cidadãos, cada vez mais alheados da política institucional, mas sabem que, ainda assim, só entre eles o poder será partilhado. Principalmente porque à esquerda dos socialistas não existe alternativa de governo e o voto dos cidadãos a ela destinados representará apenas, como tem acontecido nestes quase quarenta anos de democracia, um voto de resistência ou de protesto.

Muitas pessoas se aperceberam deste drama e algumas tentam mesmo, mais ou  menos em desespero, uma solução de circunstância. Na Internet, alguns bloggers falam de «unidade» e circula até um abaixo-assinado «por uma alternativa de esquerda» que tenta encontrar uma forma de resolver o problema. Mas quem tem tomado estas iniciativas fá-lo geralmente da pior maneira, procurando desencadear e fechar em semanas um processo que deveria ter sido iniciado há pelo menos vinte anos, com muita pedra partida pelo caminho. Buscam uma convergência espúria onde reina a desconfiança e pouco existe de aglutinador para além da resistência comum aos sucessivos PEC, a ideia de que é necessário «defender os trabalhadores» e os primeiros acordes da Internacional. Pois como é possível desenhar uma linha de unidade, tendo em vista a governação, com base numa aproximação que inclua o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista, a CGTP, os «movimentos sociais progressistas» e até «os partidos extra-parlamentares»? Só falta juntar à solução os Homens da Luta e os membros menos arrebatados do blogue Cinco Dias (onde teria, ainda assim, de ocorrer primeiro uma trágica cisão).

Não conta aqui a intenção de quem propõe – tenho a certeza de que é a melhor e visa encontrar «a solução possível» – mas ela é construída sobre um logro que teria, mesmo no plano eleitoral, consequências desastrosas, empurrando um número indeterminado de eleitores para o regaço de Santos Silva, Lello, Lacão ou outros apparatchicki de idêntico recorte. Não que os cidadãos tenham de votar obrigatoriamente em modelos pré-concebidos, ou em planos quinquenais traçados ao pormenor, mas foi justamente o facto de não se ter andado durante estas últimas três décadas a votar em políticas, mas antes, mais habitualmente, em rostos e bandeiras, que produziu o pântano político no qual vivemos. Pior: juntar-se-iam pessoas e ideias abertas a uma dinâmica de mudança com outras para quem a história parou em 1989 – ou se não parou, segundo elas deveria ter parado – continuando a associar esquerda a um ideal de socialismo centralista, anti-individualista e autoritário que hoje já só faz sentido na cabeça de uns quantos nostálgicos de distintas gerações. Um modelo político que, na sua diversidade libertária, as manifestações da «geração à rasca» seguramente mostraram estar fora do nosso tempo.

Não há então nada a fazer? Claro que há. Mas nas circunstâncias actuais aquilo que a esquerda não-neoliberal pode fazer é assegurar a bolsa de defesa necessária para sobreviver na selva. Procurando ocupar o seu lugar de voz resistente e de denúncia, bem imersa nos movimentos sociais que estão a crescer. E aproveitando entretanto a percepção do beco no qual se deixaram sitiar para começarem, passo a passo, a pensar a forma de se libertarem dele. Primeira sugestão, muito simples: discutir como se articulam com a experiência de cidadania, numa sociedade governada à esquerda, os conceitos de liberdade, de privacidade e de diferença. Bens que não enchem barrigas, bem sei, mas dos quais já ninguém prescinde e que fundam qualquer democracia.

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