O título do livro explica-se de forma simples, embora brutal: estima-se que ao longo dos últimos cem anos cerca de 150 milhões de pessoas foram vítimas de iniciativas persistentes de extermínio, responsáveis, no seu conjunto, pela duplicação do número de mortos em combate contabilizados em todas as guerras que tiveram lugar no mesmo período. A tese central de Daniel J. Goldhagen apoia-se nesta contabilidade avassaladora para mostrar que ela não dependeu de acasos, de circunstâncias, ou da iniciativa isolada de dirigentes transfigurados em serial killers, mas antes de escolhas políticas apoiadas num razoável ou mesmo num amplo consenso social. A ideia já se encontrava, aliás, presente numa obra anterior deste cientista político americano, motivo pelo qual foi objeto de feroz crítica: em Hitler’s Willing Executioners, saída em 1996, considerava que a busca da Solução Final determinada pelos nazis apenas fora possível com a cumplicidade, ou pelo menos a complacência, das pessoas comuns, alemães e aliados de outras nacionalidades, sem os quais os burocratas e os destacamentos especiais do Terceiro Reich não poderiam ter levado a cabo de modo tão eficaz o seu trabalho sujo. A obra foi, aliás, criticada por historiadores como Norman Finkelstein, que acusou o seu autor – sendo ambos, acusador e acusado, filhos de sobreviventes do Holocausto – de justificar com a sua explicação a criação de uma «indústria do Holocausto» de orientação sionista. (mais…)
A decisão de anular, numa altura em que estavam já marcadas e anunciadas, as entregas dos prémios de 500 euros destinados aos dois melhores alunos de cada escola secundária pública, é, obviamente, uma vergonha e um ato de maldade pura. Atirou para o lixo as expectativas dos jovens premiados, muitos deles com dificuldades económicas, e deu-lhes um mau sinal sobre a forma como o Estado deve ser (ou não deve ser) considerado «pessoa de bem». Ensina-se assim o cidadão de amanhã a não confiar em ninguém. Desde logo, e em primeiro lugar, em quem dirige a coisa pública. Algumas das escolas, tentando minorar a deceção dos seus alunos mais esforçados, estão agora à procura de entidades privadas que possam, a troco de alguma publicidade, ajudar a reduzir um pouco os danos.
O caso vem trazer para primeiro plano um problema, periodicamente debatido, sobre o qual existem posições divergentes, transversais até na relação com o mapa político e partidário. A saber: justifica-se ou não a existência de prémios destinados a laurear os melhores alunos? Algum pensamento devoto do ensino «centrado no aluno» – já malevolamente cunhado de «eduquês» – considera que não, entendendo ser apenas necessário criar condições para que todos se sintam motivados. No dia ideal em que tal acontecer, só não terá boas notas quem não quiser ou for mesmo burrinho. Numa área à gauche, mais voltada para a «criação das condições objetivas», pensa-se que a atribuição de prémios contraria o igualitarismo, amplia os contrastes sociais e coloca sobre os ombros dos jovens uma responsabilidade que deve caber ao Estado. À direita, os prémios são muitas vezes defendidos, mas como instrumento de gradual composição de um escol, de uma meritocracia, que assenta na definição de uma elite de futuros «mandantes» com lugar de destaque numa sociedade devidamente ordenada. Na qual é suposto mandar quem sabe (e pode) e obedecer quem deve. (mais…)
Ainda sobre a beleza dos comboios e da corrente de vida, de ar e de calor que a partir deles é possível desfrutar, recorto um fragmento da crónica de Antonio Muñoz Molina («Apunte de Alemania») publicada no suplemento Babelia deste sábado. Traduzido livremente.
Há lugares perfeitos. Há viagens perfeitas. A viagem de comboio numa manhã de domingo entre Hanôver e Munique, por exemplo. Está nublado e ténues grinaldas de nevoeiro flutuam sobre os prados ou sobre as encostas com grandes bosques de coníferas. O único defeito que encontro na maior parte das viagens de comboio nestes tempos é que duram muito pouco. O comboio de Hanôver para Munique é bastante bom, é ótimo, confortável e rápido, silencioso também, e mais ainda nesta manhã na qual por ser dia de festa há menos viajantes. Não é um comboio de alta velocidade, sem dúvida, nem faz falta alguma que o seja. É um comboio perfeito. A luz do dia nublado torna ainda mais acolhedor o interior das carruagens. Quase todos os passageiros vão a ler os seus pesados jornais de domingo. Um dos muitos inconvenientes de não saber alemão é não poder desfrutar gulosamente dessas páginas tão amplas mas para as quais, ao mesmo tempo, tanto parece importar a palavra escrita. O rumor das páginas dos jornais vai dando ao silêncio do interior do comboio uma qualidade de atmosfera de biblioteca. O movimento é tão regular que me permite tirar tranquilamente apontamentos num caderno. Demasiadas tentações que é preciso desfrutar de maneira simultânea, para não prescindir de nenhuma: observar os prados e os bosques, os rios de curso opulento e tão calmo que refletem nitidamente na sua superfície as árvores das margens e as nuvens passageiras, as aldeias de telhados angulosos muitas vezes cobertos de painéis solares, as agulhas de ardósia das igrejas, as fábricas que imagino de produtos supertecnologicos mas que não ofendem a paisagem. E ainda a leitura, sem tirar os olhos do livro que me tem acompanhado nestas idas e vindas desde que saí de Madrid.
Essa do «disco que marca uma geração» tem que se lhe diga. Como o próprio conceito de geração, que pode ser útil quando se olha o tempo de uma certa distância mas tem o inconveniente de fabricar generalizações, diluindo experiências singulares, caminhos que foram ínvios, vozes que fizeram o seu percurso em ziguezague. As referências que identificam a geração são, pois, flutuantes e de significado muito relativo, tendo só valor de referência. E muitas vezes a referência de uma geração representa algo de muito diferente para a seguinte. Um bom exemplo disto foi dado agora pela evocação planetária, de forte teor nostálgico, do concerto ao vivo que resultou do reencontro de Paul Simon e Art Garfunkel no Central Park de Nova Iorque, ocorrido em 19 setembro de 1981. Lembro-me bem, muito bem mesmo, desse concerto, que vi pela televisão como tantos milhões de pessoas, para além das 500.000 que o viveram no local, e do enorme enfado que na altura me provocou. Nessa tarde a anoitecer, ouvindo versões um tanto espaventosas e já com um brilho algo artificial das canções sentimentais ou rebeldes que amara quinze anos antes – como «Mrs. Robinson», «America», «The Sounds of Silence» ou «50 Ways To Leave Your Lover» – percebi que a página de Simon and Garfunkel tinha sido voltada e que estava agora perante dois simpáticos vestígios dos bons velhos sixties. Que era melhor continuar a olhar à volta em vez de ficar paralisado a imaginar-me «Still Crazy After All These Years».
S & G quinze anos antes, em 1966, quando interpretavam «I am a Rock» com outra energia:
Reconheço poucas experiências percorridas pelas quais sinta efetiva nostalgia. Aborrece-me andar às voltas e reviravoltas com o meu próprio passado, tentando reaver o irrecuperável, reencontrar a memória dos que se dissolveram ou transformaram noutras pessoas. Uso-o apenas como depósito ou armário de bibelôs, aos quais faço visitas espaçadas e esquivas. Apesar de ter mais tempo de vida vivida do que aquele que pressinto pela frente, não me apetece repetir-lhe os passos. Acontece-me muito mais, isso sim, deixar-me seduzir por épocas que não conheci, por espaços que não habitei, atravessados por causas nas quais gostaria de ter acreditado e pelas quais teria até (é fácil dizê-lo agora) sido capaz de dar a vida. Regresso então a catedrais de arquitetura desconhecida e a pessoas que nunca vi mas julgo conhecer.
Existem, no entanto, exceções que procuro conservar. Uma das mais caras tem a ver com a memória persistente dos velhos comboios a vapor, nos quais, levado pelos adultos, ainda cheguei a viajar. Entre fumos e faúlhas, longos e obsidiantes silvos, intermináveis chiadeiras das engrenagens, cestos de vime com farnéis odoríferos, homens de chapéu e jaqueta espreitando das janelas da 3ª classe, matronas em traje dominical, longas e sonolentas esperas para o reabastecimento. Eram máquinas demasiado barulhentas que queimavam, sujavam, pintalgavam, poluíam, oscilando sobre carris estreitos e oleosos. Das quais sinto agora a falta porque me pareciam bonitas e inspiradoras. Porque me transportavam em inevitável devaneio, e ainda o fazem em reflexos, até um Faroeste infinito e a mil aventuras nas estepes da Ásia central.
Vídeo: Last Train Home (Railway Version), com o Pat Metheny Group.
Na crónica saída ontem no suplemento Atual, Pedro Mexia adianta um conjunto de reflexões e de dados sobre a personalidade de Marshall McLuhan (1911-80) que eu desconhecia. Sobre como alguém reconhecido mundialmente, ao longo de décadas, ou pelo menos desde a publicação em 1962 da Galáxia de Gutenberg, como o profeta primevo e maior da tecnologia aplicada à comunicação eletrónica, era na verdade um homem «antigo, conservador, católico devoto, puritano, distante». Conheço de alguma forma este tipo de mal-entendido, determinado por quem tem dificuldade em aceitar a complexidade do humano, das escolhas e das formas de vida combinadas de um modo não linear ou imprevisível. Cedo comecei a interessar-me por computadores e pela sua interação em rede. Fui pedindo emprestados ou comprando revistas e manuais, fiz alguns cursos (no mais recuado, em 1976, ainda aprendi linguagem Cobol), depois comecei a interagir com outras pessoas, na era pré-Internet, através das chamadas BBS. Por essa altura comprei o primeiro PC, mais tarde um modem lento e ruidoso, uma primeira conta de acesso à Internet (salvo erro, em 1994, com tráfego pago ao bit), depois um portátil, a seguir um primeiro PDA, um scanner manual, e por aí afora, quase sempre penetrando em tecnologia usada apenas por algumas orlas e à qual, por interesse e opção que impunha sacrifícios económicos, lá fui aderindo.
Curiosamente, esta foi, durante perto de duas décadas, uma atitude bastante incompreendida, vista por muitas das pessoas com as quais me ia cruzando, algumas delas até, por estranho que pareça, com conhecimentos desenvolvidos em áreas do saber informático, como uma excentricidade, uma esquisitice praticada com laivos de exibicionismo, uma modernice perigosa, incomodativa ou condenada ao insucesso para a qual nem valeria a pena olhar mais do que três segundos. E no entanto sempre o fiz por curiosidade e interesse, genuíno julgo, pela mudança das coisas. Jamais como forma de rejeição do mundo tátil no qual nascera e crescera. O mundo dos livros em papel, dos recortes de jornais, dos cadernos de Almaço, dos dossiês em cartão pardo, das canetas de aparo, dos lápis de cores, da cola Peligon e da tinta Pelikan, das máquinas de escrever, das caixas de sapatos servindo de ficheiros, do gosto pelos prazeres antigos, associados à escrita, à leitura e a uma aproximação ao conhecimento intemporal que ainda conservo. Contra a imposição do «ou/ou» ou a rejeição do «nem/nem», acredito pois que vale a pena preferir o cumulativo «e/e». Parece-me mais completo e próximo das realidades compósitas e emaranhadas, de transição veloz e sempre problemática, que vamos atravessando na nossa nave tripulada e que McLuhan, do silêncio do seu gabinete escuro e de austera mobília, foi capaz de intuir e de projetar.
Desconfio muito da maioria dos estudos que atestam o crescente interesse dos jovens portugueses pela leitura. Dando de barato que em regra falamos de indivíduos que têm entre 15 e 24 anos, é uma evidência que o grau de relacionamento com o ato de ler se tem vindo a ampliar, quanto mais não seja porque têm vindo também a crescer em volume e distribuição geográfica os espaços e os suportes que impõem a presença do texto, da palavra escrita, no quotidiano das pessoas. Jovens ou não, claro. Admito até que a perceção do valor social da leitura tenha crescido em ligação com o alargamento da escolaridade e o aumento do número de cidadãos e de cidadãs com maior formação académica. Mas já questiono o crescimento de um padrão de leitura sólido e que integre de facto a formação e os hábitos dessas pessoas.
O problema, a meu ver, advém desses estudos se fundarem em inquéritos com perguntas vagas sobre se o inquirido lê ou não, se acha ou não importante que o faça, se planeia ou não fazê-lo no futuro. Brincando um pouco, diria que se me perguntarem se é útil ou se gostaria de fazer uma viagem pela Antártida para ver os pinguins e observar um continente a derreter-se, eu afirmarei que sim, apesar de não ter a menor intenção de ir amanhã de manhã marcar a viagem e comprar um anorak. O que me parece é que este tipo de estudos requer, para ser válido, uma observação ampla e continuada, e a materialização de respostas mais objetivas a perguntas como «que géneros lê e em que percentagem?», «quais os livros que leu de facto no último ano?», «lê-os na totalidade ou só parcialmente?», «com que frequência desiste a meio da leitura de um livro?», e outras que com mais algum esforço decerto ocorreriam. (mais…)
Projeto de cartaz para o filme «Outubro» que foi rejeitado.
A reconstrução do passado a partir de realidades imaginadas que se apoderam dos factos, alterando o seu eco e dando-lhes um novo sentido, é um expediente conhecido que podemos fazer regredir pelo menos até ao começo do tempo histórico. Muitos dos mais recuados textos escritos ocupavam-se justamente com o retrato ampliado, em regra delirante, dos atos de guerra levados acabo pelas populações das cidades sumérias e principalmente das iniciativas que se supunham assombrosas dos seus chefes, numa escala de grandeza que os historiadores reconhecem como ampliada e em muitos casos inventada. E, no entanto, durante séculos, os primeiros tempos da História que acompanharam a invenção da escrita foram descritos com base nessa informação adulterada, moldando de maneira imperfeita o entendimento que dela foram tendo sucessivas gerações. Um processo contínuo, aplicado de modo recorrente a diferentes tempos e lugares, projetado sobre um passado que passou a ser aquilo que dele se disse que foi e não aquilo que realmente foi. Afinal falamos de representações do real, que partem deste mas o transcendem, avançando em mil direções, algumas das quais verosímeis, apesar de mais ou menos devaneadas.
Este processo foi particularmente ampliado pela interferência do cinema, uma vez que este não só mistura o real e a fantasia como os mostra a ambos combinados num simulacro de verdade. Enzo Traverso, o politólogo italiano que ensina em Amiens, recorda-nos um caso particularmente marcante, definindo um processo de moldagem do passado que condicionou de maneira profunda o modo de ver a história do mundo durante a maior parte do século XX, chegando até à parte deste que já percorremos. Traverso lembra Outubro, a obra-prima de Sergei Eisenstein, estreada em 1927 para comemorar os dez anos da tomada do poder pelos comunistas moscovitas. Nela um conjunto de acontecimentos, com particular destaque para a tomada do Palácio de Inverno pelas forças revolucionárias, é objeto de um cirurgia destinada a agigantá-los. E então o pequeno golpe de mão que levou os revolucionários a conquistarem simbolicamente a residência oficial do czar, naquele momento desocupada, metamorfoseou-se num insurreição de massas, diretamente dirigida pelo partido de Lenine, que não existiu, de modo algum, da forma ali «mostrada». No entanto, o filme ajudou a que a tomada de poder pelos bolcheviques tivesse passado a ser vista como uma epopeia e até uma jóia da arte militar com um significado universal. Apesar de Vladimir Antonov-Ovseyenko – que comandara o pelotão, voluntarioso mas pequeno e um tanto desordenado, que em 1917 entrou no Palácio e o ocupou – ter sido fuzilado em 1938 durante a fase mais brutal das purgas estalinistas. Lançadas, como se sabe, em nome da «defesa da Revolução de Outubro».
Adenda: O filme completo (102’) pode ser visto aqui. Entretanto, se pedir nas livrarias (provavelmente terá de encomendar), ou diretamente à editora, ainda pode encontrar Outubro, um livro meu sobre o impacto simbólico da Revolução de 1917.
O impacto histórico e político do 11/9 começou a ser averiguado logo no dia seguinte ao da combustão das Torres Gémeas. Como ocorre com toda a tentativa empírica de contextualização de acontecimentos recentes, foi acompanhado de observações argutas, interpretações cautelosas ou afirmações disparatadas. Nesta última direção, poucas semanas depois, em Amesterdão, Norman Mailer erguia a voz perante uma audiência arrebatada: «Tudo o que está errado na América conduziu à construção de uma Torre de Babel que, consequentemente, tinha de ser destruída». Desqualificou aliás o ataque, afirmando que este devia principalmente «ser visto como uma crítica». Van Houcke, um jornalista holandês, acrescentou então: «Os sem-abrigo, os destituídos de poder, os aterrorizados, as minorias, estão a usar o terror para ripostar.» O antiamericanismo mais cego, esse não tinha quaisquer dúvidas sobre quem eram os verdadeiros culpados: «estavam mesmo a pedi-las!»
Com o tempo, no entanto, as explicações foram-se tornando menos precipitadas e simplistas, menos dependentes de fortes convicções e rancores de longa data, construindo-se gradualmente um legado documental e interpretativo rico e diversificado que é, para a década que se seguiu a um facto histórico de tal alcance, dos mais significativos que se conhecem. Em todo o caso, a generalidade das observações foi qualificando sempre o «choque» Ocidente-Islão como inevitável e potencialmente perigoso para a subsistência da paz, tendendo cada um dos «lados», apesar da diversidade das análises, a expurgar o outro da verdade e da razão. A imagem de uma «rua árabe» barbuda e ameaçadora, fundada no ódio e na violência, passou a dominar os média ocidentais, mas, de uma forma só aparentemente paradoxal, passou a dominar também a comunicação, rigidamente controlada pelas autoridades políticas e religiosas, que se fazia ouvir dentro dos próprios Estados islâmicos. E assim nos fomos mantendo até que, em dezembro de 2010, na Tunísia, a Revolução de Jasmim iniciou o rápido processo de transformação do mundo árabe com o qual convivemos.
A partir desse mês, o islamismo mais intransigente e violento deixou de ser vivido e apresentado como uma tendência dominante e que não podia ser evitada. Como nota David Remnick na New Yorker desta semana, os acontecimentos no Norte de África e no Médio Oriente têm revelado a construção de uma alternativa poderosa aos governos ultra-autoritários e ao terror islamita. Há ainda pela frente enormes lutas a travar – lutas entre a modernidade, a democracia representativa, o fundamentalismo religioso, o tribalismo, aquilo que resta dos velhos regimes ou dos sonhos ainda mais antigos do «nacionalismo árabe» e do «socialismo islâmico» – e ninguém pode saber o que vai acontecer, mas o desaparecimento dos regimes de Ali, Mubarak ou Khadafi, talvez mesmo, num prazo um pouco mais dilatado, os de Assad, dos mullahs do Irão, ou mesmo da realeza saudita, deixa no ar um perfume de abertura, diversidade e esperança. Neste sentido, a visão catastrófica e sanguinária do papel do Islão aberta com o 11/9 tem vindo a ser pulverizada. Esta é, com toda a certeza, uma viragem de página numa História que nos habituámos a ver em movimento cada vez mais acelerado. Por isso o atual cenário é o melhor que poderíamos esperar para evocar de forma minimamente positiva o que de terrível aconteceu há dez anos.
Ainda não falei da decisão de passar a servir-me, neste blogue como na vida lá fora, do Acordo Ortográfico da língua portuguesa em vigor. Sem referir argumentos utilizados no debate longo e por vezes exaltado que envolveu a sua aprovação, invocando razões para se ser contra ou a favor às quais fui algumas das vezes igualmente sensível, poderia explicar-me com as imposições que me chegam de fora: documentos oficiais que tenho de redigir e assinar nos quais a partir de 1 de janeiro de 2012 me é exigida a aplicação da nova norma, por exemplo, ou as recomendações de redações e editoras que pedem com insistência os originais num português atualizado. Noutra direção, poderia dizer que era para me revelar um sujeito moderno e desperto para os constantes upgrades do real. Mas isto apenas não chegaria para me levar a mudar a medida da escrita da qual me sirvo há meio século. Acrescento por isso duas outras razões.
A primeira prende-se com a consciência muito aguda que tenho da volatilidade das línguas, em particular daquela que é a minha. Passei cerca de quinze anos a ler textos manuscritos e impressos dos séculos XVI, XVII e XVIII, deparando-me com um nível de metamorfose e indecisão tão grande que muitas vezes cheguei a encontrar num só livro publicado a mesma palavra grafada de três diferentes maneiras. A partir dessa altura nunca mais fui o mesmo na aferição de critérios demasiados fixos, ou fixistas, para a definição de regras destinadas a domar um «babelismo» impeditivo da comunicação entre falantes de divergentes geografias, ambientes e gerações. Já o segundo motivo é de ordem puramente prática: como estou numa altura do calendário pessoal na qual é bastante fácil o cérebro experimentar alguma dificuldade em carburar com a mesma agilidade relativa do passado, é sempre bom ginasticá-lo, refrescar-lhe o tónus, combatendo os automatismos antigos e adotando outros novos. Para mim são razões de sobra para passar à ação.
Sempre me pareceu, ainda o executivo de José Sócrates palmilhava alegre e impante as estradas de Portugal, que o ramerrão de certa esquerda de acordo com o qual PS e PSD são «as duas caras da mesma moeda», não sendo inteiramente falso em termos de macropolítica, projetava um enorme equívoco. Queiramos ou não, foi esta perceção, ainda que expressa de forma ligeiramente mais elaborada, que levou parte dessa esquerda a assinar de cruz a condenação à morte do anterior governo, projetando, numa atitude de contranatural cumplicidade, a mais do que previsível vitória da coligação que sustenta o atual. Foi insensata, pueril e profundamente danosa essa escolha. O governo do PS seguiu, é certo, caminhos ínvios e sinuosos, incapaz de escapar a pressões externas e ao manobrismo da parte mais insana do seu próprio aparelho, inábil para projetar uma política inteligente, independente e corajosa que permitisse buscar um caminho coerente, eficaz e socialmente aceitável no crítico contexto internacional que já se vinha desenhando. Mas bastaram noventa dias de governo PSD-CDS para se notar a diferença, para bem pior, em áreas cruciais. Independentemente do que foi preciso e possível negociar com a troika, das condições em que o anterior governo rosa teria também de ceder em algumas coisas – e fá-lo-ia com toda a certeza –, este, azul-laranja, tem aproveitado para «ir mais longe». Um «mais longe» que não é senão, em áreas críticas como a saúde, o ensino e a solidariedade social, o tentar aplicar em poucos meses, numa lógica de irreversibilidade, o programa que desde 1974 a direita e o patronato mais mesquinho e ultramontano jamais foram capazes sequer de propor. Os trabalhadores, as mulheres, os jovens, os idosos, a classe média, a quem estão a empobrecer e a retirar às cegas direitos absolutamente fundamentais, a quem em nome de um «saneamento financeiro» injusto e sem horizonte estão a roubar a esperança, que o digam.
Nota escrita a posteriori: Este post teve algum feedback na bloga. A maior parte limita-se a registar ou a acentuar a «originalidade» da posição de alguém que foi e permanece muito crítico do PS dos anos de governo. Outra, porém, vê nele uma declaração de apoio a este partido, coisa que só pode «ler» quem de facto só lê aquilo que quer ou não sabe pensar se não a branco e vermelho. Ou então não entende que qualquer mudança política que venha a reconduzir a direita ao seu lugar passa por um debate entre os socialistas e um diálogo efectivamente paritário com eles. E por alterações nas atitudes de irredutibilidade política que roçam a teimosia. Em alguns casos, um pouco tristes, a estupidez.
Se não trabalhar no ramo ou tiver alguém na família que o faça, ninguém no seu perfeito juízo defenderá a fast-food. Os hambúrgueres feitos de sabe-lá-deus-o-quê, os pedaços de frango subnutrido, as batatas fritas em óleo reciclado, os condimentos químicos untuosos e coloridos, o sal sempre em demasia, as bebidas ultra-açucaradas. Tudo, já se sabe, veneno para as pessoas normais e para as outras também. Claro que a slow-food da rua ao lado, se descontarmos alguns exageros puristas com os condimentos, é muito melhor. Mas a primeira é razoavelmente barata e adaptada ao ritmo da nossa vida intensa, enquanto a segunda requer mais tempo e quase sempre mais dinheiro. Sei através dos suplementos de fim de semana, das sugestões da nutricionista e das ameaças do médico que devemos evitar a rápida. E tento sempre fazê-lo. Mas para muitas pessoas com a carteira vazia e sem lugar ou tempo para cozinharem não existe alternativa, e é com ela que de vez em quando a dieta alimentar se equilibra um pouco.
Quando fui bolseiro durante uns meses de inverno na Paris do início dos anos noventa, recordo-me bem, só a McDonald’s, a Burger King ou a KFC me salvaram da miséria alimentar. O mesmo aconteceu em algumas viagens fora de portas, como sempre com o orçamento no limite. Não seria dos mais desgraçados – como Orwell, que na miséria de Londres ainda tinha, sabia que tinha, a alternativa de recorrer aos amigos ou à família – mas todos os dias comia ao lado de centenas de pessoas visivelmente pobres que ali iam para se aquecerem e contornarem a fome com algumas proteínas e os hidratos de carbono que o corpo pedia. Taxar fortemente a comida rápida, como acaba de sugerir o bastonário da Ordem dos Médicos, é proposta cega e precipitada que retiraria outra talhada à parca dieta alimentar de muitos, cada vez mais, dos cidadãos que menos têm e mais precisam. Logo agora que a fast-soup está a ter mais saída.
Como a própria guerra, o jornalismo que faz dela objeto não se limita aos episódios mais sangrentos da frente, à observação dos destroços ou aos meios da ação política que, invertendo o conhecido aforismo de Clausewitz, fazem a guerra por outros meios. Em regra, as reportagens mais interessantes produzidas em teatro de conflito não são as que descrevem os combates, os avanços e os recuos dos exércitos ou das milícias, mas antes as que retratam em primeiro plano os seus atores e figurantes, soldados e civis, perpetradores e agentes, vítimas e espetadores. No atual conflito líbio, são por isso exemplares e particularmente impressivas as reportagens que Paulo Moura tem escrito para o Público e Juan Miguel Muñoz para o El País. Sendo diferentes os cenários que cada um deles escolhe – Moura, mais na retaguarda, insiste na dimensão humana de quem viu as rotinas voltadas do avesso, Muñoz, perto da frente, sublinha a ansiedade, o medo e a esperança dos que se preparam para combater – ambos oferecem testemunhos de uma verdade antiga, relatada já por William Russell, que nas campanhas da Crimeia estabeleceu o género trabalhando para o Times. Revelam como é em situação de conflito armado que a solidariedade entre os que partilham um destino é levada ao extremo e que a perceção da transitoriedade dos hábitos e das convicções, da sua importância relativa, se revela mais perfeita, mais percetível, passando tudo o resto para um distante segundo plano.
Em When Harry Met Sally, por cá Um Amor Inevitável, a comédia romântica de Rob Reiner filmada no final dos eighties com Billy Crystal e Meg Ryan, uma linha de diálogo faz soar uma verdade numa tonalidade lamechas que por sê-lo não lhe faz perder a exatidão. «Os nossos cérebros são bons a registar datas e factos que podem ser esquecidos quando já não são necessários. Mas nada do que é bem guardado nos nossos corações alguma vez se perderá.» Provavelmente uma das deixas mais despretensiosas e certeiras da história do cinema.
O Sol quase não brilha em Portugal. Os turistas que chegam do Norte extremo talvez não se apercebam disso. Quem viva eufórico um amor novo também não. Para os jockeys da finança brilha sempre. E para os craques do futebol também. Mas para o vulgar cidadão, que conhece em crescendo as contrariedades de cada dia que passa e as incertezas de um futuro sombrio, o Sol já quase deixou de brilhar. Vivemos todos em Hammerfest, aquela cidadezinha do setentrião norueguês na qual, como anunciava com ostensivo exagero o velho manual de Geografia, «até os cavalos se espantam quando passa alguém sem guarda-chuva». Podemos fechar-nos no espaço sagrado, miraculoso, da música, da literatura, das artes, dos pequenos doces caseiros, onde é possível vislumbrar um reflexo da luz solar. Mas ele é cada vez mais raro, frágil, efémero, confinado à imaginação da felicidade. E aos programas políticos no terreno – da esquerda à direita, ocupados com a gestão a olho da decadência mas desinteressados das arquiteturas de futuros – não chega a energia potenciada pela fotossíntese. No entanto, só estes, ou aqueles que saibamos fabricar, podem projetar, como um dia asseguraram os profetas da igualdade, caminhos de regresso à luz que «quando nasce é para todos». Afinal, até em Hammerfest há manhãs claras. Talvez mesmo de esplendor.
O escritor Thomas Mann, humanista après la lettre e homem estruturalmente conservador, cujas convicções mais estáveis mergulhavam na cultura alemã de Oitocentos, teve durante o exílio americano, em conjunto com os filhos Klaus e Erika, um processo de mais de mil páginas aberto pelo prestimoso Federal Bureau of Investigation. Segundo Rob Riemen, a acusação mais notável que ali pode ser encontrada é a de «antifascismo prematuro», isto é, resistência ao fascismo antes dos Estados Unidos da América declararem guerra à Alemanha no final do ano de 1941. Corriam os tempos turvos do McCarthismo e a sua atitude, de acordo com os aplicados investigadores do FBI, só poderia dever-se a uma simpatia não declarada pelo comunismo.
Nunca devemos dizer nunca. Não podemos, por isso, proclamar que os portugueses jamais viveram tempos tão críticos e difíceis quanto aqueles que agora experimentam, e um breve exercício de rememoração histórica facilmente detetará outros momentos fortes de desespero e de aparente impotência. Todavia, aqueles pelos quais atualmente passamos comportam uma dose suplementar de dramatismo, uma vez que os espaços de comunicação que a todos integram colocam, agora sim pela primeira vez, o conjunto dos cidadãos, e não apenas alguns, num estado de reconhecimento de que se encontram a viver uma viragem – e uma viragem projetada num horizonte sombrio, não aquele claro e otimista que o 25 de Abril abriu – que marcará por muitos anos as suas vidas e as vidas das gerações lhes sucederem. O que Portugal. Ensaio contra a autoflagelação de Boaventura de Sousa Santos nos propõe é a busca de antídotos capazes de afastarem a recepção da catástrofe de forma passiva, ou, pior, vivida num estado de autoflagelação que, como o fado, preludia a desgraça e a depressão. Neste utilíssimo ensaio, o sociólogo parte de um amplo cenário de crise, integrando «uma crise financeira de curto prazo, uma crise económica de médio prazo e uma crise político-cultural de longo prazo», para pensar a forma de lhe minorar os efeitos e de a derrotar.
Como é próprio do seu já longo trabalho de reflexão política, Boaventura não prefigura aqui explicações fáceis ou soluções prodigiosas. Reconhece os escolhos, inquirindo a sua origem, morfologia, sequelas e processos de remoção, procurando ao mesmo tempo defrontar as explicações e as propostas dos políticos e comentadores nacionais que falam do seu próprio país, de nós, como fazendo parte de um lugar distante, «habitado por gente que conhecemos mal, por quem não temos especial estima e que certamente merece o fardo que lhe cabe carregar». O objetivo nuclear é superar esse estado de passividade e derrotismo, projectando num plano nacional, europeu e global os caminhos a partir dos quais será possível idear a esperança a que temos direito, dado que «esperar sem esperança seria o pior que nos poderia acontecer». Pode concordar-se ou não com alguns aspetos do diagnóstico, aceitar ou não todos os métodos de cura propostos, mas sai-se da leitura com uma segura certeza: na presente situação, com o abismo à vista, entre fatalismo e inconformismo não existe via intermédia. Um ensaio norteado por uma visão solidária do mundo e por aquilo a que o autor chama uma certa consciência de «otimismo trágico», a incluir de imediato na biblioteca fundamental sobre os futuros de Portugal.
Boaventura de Sousa Santos, Portugal. Ensaio contra a autoflagelação. Almedina. 162 págs. Publicado na LER de Julho-Agosto de 2011.
Releio dois parágrafos de Claudio Magris, em Danúbio, nos quais o escritor recorda certos frequentadores do clube Strohkoffer, na Viena dos anos 50 e 60, e revejo aquelas pessoas pelas quais todos passamos – ou que pelo nosso bairro físico e imaterial continuam a mostrar-se – cuja radicalidade alardeada, mas invariavelmente falha de inteligência e humanidade, se transvestiu rapidamente no seu reverso. E naquelas outras que em sentido contrário são capazes de escalar as suas circunstâncias e ir alimentando, devagar mas com segurança, sem mais ruído que o necessário, a heróica capacidade de infringir.
Nos seus «actos poéticos» de exibição, que pretendiam transformar a vida, havia a ingenuidade persistente de quem julga transgredir a lei do Pai despindo as calças, a presunção patética de programar a espontaneidade por encomenda e a arrogância dos que se crêem anunciadores de um novo evangelho clownesco-orgástico-cibernético, com muito pouca novidade.
Hoje seriíssimos volumes académicos celebram esse «ativismo» poético e ostentam com gravidade ideológica as fotografias de autores que se apresentavam ao público nus, a fazer chichi, mergulhando a pila em jarros espumantes de cerveja e amontoando-se em atitudes que gostariam de ser obscenas, quer dizer, originais e inocentes. A tudo isto falta cruelmente a invenção, o autêntico nonsense, a fantasia imprevisível, a ironia: a nudez e os gestos provocantemente ostentados são previsíveis como as fardas dos cadetes numa academia militar. Hoje, os ex-iconoclastas ganharam juízo, como os goliardos que se transformaram em notários, proferem conferências na universidade e criticam 1968.