Arquivo de Categorias: Olhares

O lado negro de Walt Disney

Durante décadas, para milhões de pessoas de diferentes gerações a vida de Walt Disney foi uma história cor-de-rosa editada em capa de seda. Como se o paraíso de sonhos materializado nos vários parques temáticos da Disneylândia fosse uma extensão da personalidade dessa figura supostamente idealista, amável e criativa, impecavelmente penteada e de bigode aparado, plena de autoconfiança, que povoou as fantasias de tantas crianças dos dois hemisférios. No entanto, essa vida encantadora foi em larga medida ilusória, construída e alimentada pelo próprio e pela indústria que fundou, uma vez que a sua biografia verdadeira é bastante menos transparente, claramente menos heroica e está demasiado povoada de nódoas. Não que tal facto seja novidade para quem conheça o seu trajeto para além das linhas mais essenciais da lenda, mas a evocação do Rato Mickey e do Pato Donald, de Dumbo, Bambi e Peter Pan, da Cinderella e de Mary Poppins, ou de tantos heróis aventureiros em versão «para todas as idades», continua a ofuscar um público sedento de fantasia, humor e finais felizes que vê em Disney um seu mentor. (mais…)

    Artes, Cinema, História, Olhares

    Galão escuro

    Não sou propriamente um admirador do estilo e do discurso pessoal, a meu ver um tanto obreirista, despojado de jogo de cintura e de léxico geracionalmente datado, de Arménio Carlos. E menos ainda o sou, apesar de lhe respeitar o lastro de dedicação e luta, da forma como a política sindical do seu partido tem orientado a atividade da CGTP. Mas estou inteiramente do lado de Arménio quanto a esta «questão do escurinho». Refiro-me à forma como o secretário-geral da central sindical se referiu publicamente a Abebe Selassié, o etíope que qualificou como o «terceiro rei mago» desta Troika alienígena que nos governa e empurra para o precipício. A obsessão do politicamente correto faz destas coisas: vigia até os pequenos detalhes, desvia-se do que é realmente importante, e erra o alvo com inábeis tiros de pólvora seca. Será preferível, para quem se entreteve a dissecar esta liberdade verbal, o discurso cinzento, permanentemente examinado e autovigiado, que retira humanidade ao combate político e faz de quem assume responsabilidades públicas um cidadão permanente acossado? Ou ficarão os críticos neste particular de Arménio Carlos menos perturbados com as sobrevivências dessa previsível «língua de madeira» que contamina tantas vezes, e em momentos decisivos, o seu discurso? Quando ressurgem estes fantasmas lembro-me sempre de um amigo que conheceu o antigo presidente moçambicano Samora Machel – nos anos que se seguiram ao 25 de Abril objeto regular de piadas racistas, bastante acintosas, que a generalidade dos portugueses de esquerda e de direita contava no meio de grande galhofa – e me garantiu terem sido as mais engraçadas de todas as que ouviu aquelas saídas da boca do próprio Samora. O antirracismo pratica-se e combate-se em muitas frentes, mas o policiamento severo, maníaco e por vezes demagógico da linguagem – sobretudo quando aplicado a pessoas insuspeitas de partilharem essa detestável atitude social – não será seguramente uma delas.

      Apontamentos, Atualidade, Olhares

      Delinquente

      Fotografia de eda Pan
      Fotografia de eda Pan

      «Traficava droga, assaltava lojas e esfaqueava rivais. Mas continuava a esconder o cigarrito sempre que passava por um dos amigos do pai.»

      De Galáxia de Berlindes, volume de «textos ultrabreves» de Pedro Monteiro; à venda ao excelentíssimo público em algumas das melhores livrarias.

        Apontamentos, Ficção, Olhares, Recortes

        Mudança em Israel?

        Existe um equívoco, partilhado por muitas pessoas que têm o cuidado de separar o antissemitismo do antissionismo, fundado na ideia errada de acordo com a qual o sionismo foi e é, da base ao topo, sempre agressivo, expansionista e basicamente de direita. Como se sabe, a explicação mais simples aponta o antissemitismo como preconceito ou hostilidade contra os judeus, fundado no ódio contra a sua identidade histórica, étnica, cultural e religiosa. Esta é uma tendência que uma grande parte da esquerda sempre recusou ou continua a recusar, ainda que, na prática, a sua vertente mais dogmática com ela tenha pactuado ou continue muitas vezes a pactuar. Por sua vez, o antissionismo prevê uma oposição frontal ao direito do povo judeu à autodeterminação e à existência de um Estado nacional judaico independente e soberano. Simplificando: um grande número de bons cidadãos e de consciências democráticas admite que os judeus não devem ser perseguidos pelo facto de o serem, mas, sendo-o e vivendo no único estado judaico existente, devem tratar de empacotar os haveres e tornar à errância, devolvendo a integralidade do território àqueles, palestinianos principalmente, que dele foram espoliados quando do processo que conduziu à independência e depois, pela via da guerra e dos colonatos, à expansão territorial de Israel. O antissionismo alimenta assim o antissemitismo. (mais…)

          Atualidade, História, Olhares, Opinião

          Filosofia ao domicílio |5

          Deleuze & Guattari

          No quinto post da série, destaca-se Mille PlateauxMil Planaltos, o segundo tomo de Capitalismo e Esquizofrenia, publicado em 1980 pelos filósofos Gilles Deleuze (1925-1995) e Félix Guattari (1930-1992).

          «Um livro não é feito de objetos ou de assuntos, é feito de matérias diversamente constituídas, de datas e a velocidades muito diferentes.» Gilles Deleuze e Félix Guattari, recusando o modelo tradicional do «livro-raiz», incapaz de comportar a multiplicidade, escreveram em conjunto um livro único, pensado como verdadeira experimentação. Mille Plateaux (Mil Planaltos na edição portuguesa, em tradução discutida) é uma obra concebida de acordo com uma multidão de estratos, de plateaux (tabuleiros? planaltos?), uns ligados aos outros mas sem uma ordem ou hierarquia que lhes atribua um lugar certo. Para Deleuze, este livro foi o termo do seu pensamento antisistemático já desenvolvido em Différence et Répétition (1968) e em Logique du Sens (1969), livros nos quais elaborou as premissas de uma nova metafísica, destinada a promover uma filosofia da multiplicidade contra a dominante filosofia da unidade. Segundo tomo, após L’AntiŒdipe (1972), de Capitalisme et Schrizophrénie, Mille Plateaux prossegue a procura de um pensamento antiacadémico, liberto de todo o «aparelho do saber». Aspira aliás a dirigir-se aos não-filósofos, a libertar a filosofia da sua própria escola de intimidação, que não admite no seu seio senão os especialistas em determinados textos. O projeto de Deleuze é também o de fundar uma «filosofia pop» que, tal como acontecia com a cultura pop, se dirigiria a um público de massas. (mais…)

            Olhares, Séries

            Nós, albaneses

            Apesar de já ter sido mais usada, a palavra «albanização» continua a fazer o seu curso no vocabulário político ordinário. Originalmente, reportava-se a uma vinculação às características do Estado albanês nos tempos da República Popular, proclamada no final da Segunda Guerra Mundial e governada com pulso de ferro por Enver Hoxha e o seu Partido do Trabalho. O território da Albânia, outrora local de um trânsito, nem sempre pacífico mas ruidoso e constante de povos muito diversos, servira de base de apoio nos Balcãs aos fascistas italianos e depois aos nazis. Expulsos estes, passou, após curto período de conflito civil que levou os comunistas ao poder, a fechar-se completamente ao exterior. Uma situação ampliada a partir de 1948 com a rutura completa com a Jugoslávia, à qual se seguiria, em 1961, o corte de relações com a União Soviética, e depois, em 1978, o distanciamento da China. A «albanização» tomou então dois rostos complementares: exprimiu, por um lado, a dimensão de um «Estado-pária», fechado sobre si próprio e que procurou viver de forma autossuficiente, na ignorância das mudanças que ocorriam à sua volta; e por outro, em consequência desses limites e do caráter totalitário do regime, marcou também a instauração de uma política interna de rígida contenção do desenvolvimento económico, cultural e social e de efetivo limite dos direitos individuais. (mais…)

              Apontamentos, Atualidade, Memória, Olhares

              Portugal, gare de partida

              Imagem de Zoë
              Imagem de Zoë

              Há pouco mais de um século a figura do «brasileiro», o ricaço fanfarrão recém-chegado do lado de lá do Atlântico, com fortuna incerta, feita de astúcias e aparências, ou efetiva, reunida sabe-se lá como, era notória na paisagem das nossas aldeias, vilas e pequenas cidades. Não que a sua presença fosse significativa em termos demográficos – de facto, surgia um aqui, mais dois acolá, um outro um pouco mais além – mas porque o seu porte extrovertido e esbanjador, e também o seu comportamento moralmente dúbio e um tanto pacóvio, se faziam notar em ambientes nos quais dominava o recato do fato escuro e a moderação dos gastos pessoais e das atitudes públicas. Na literatura portuguesa da segunda metade do século XIX, a pícara personagem surge em múltiplas obras, tendo sido Camilo quem dela traçou retratos mais ásperos e impiedosos, embora forçosamente caricaturais. (mais…)

                Atualidade, Olhares, Opinião

                Filosofia ao domicílio |4

                Paul Ricoeur

                No quarto post da série, a obra destacada é Tempo e Narrativa, publicada em três tomos, entre 1983 e 1985, pelo pensador francês Paul Ricoeur (1913-2005).

                Aberto a todas as filosofias, o pensamento de Paul Ricouer procurou dialogar com as diversas influências que o formaram, esforçando-se sistematicamente para diluir as oposições que entre elas pudessem existir. É no entanto na ação humana que se encontra o fio condutor do seu trabalho. Órfão a partir dos dois anos, Ricoeur interessou-se desde muito cedo pela questão do sofrimento, do mal e da culpa. Nos anos 30 descobriu Edmund Husserl, cuja obra ajudou a divulgar em França através da tradução das Ideias Orientadoras para uma Fenomenologia, que o filósofo checo-alemão havia publicado em 1913. A marca deixada pelo seu pensamento na teoria da fenomenologia será profunda. No entanto, para Ricoeur a filosofia não era uma atividade de natureza narcísica. E foi por isso que o seu espírito de abertura foi também de abertura para aquilo que se passava fora do campo mais específico da sua disciplina. (mais…)

                  Biografias, Olhares, Séries

                  As duas vias da alternativa

                  Se não quisermos naufragar no desânimo, temos de mudar de agulha, de procurar outra rota. O empobrecimento da maioria das pessoas, a diminuição do papel social do Estado, o crescimento brutal do desemprego, a redução progressiva das liberdades e dos direitos, a instalação de um clima de medo e descrença, a desconfiança dos cidadãos em relação aos seus governantes, a desvalorização do ensino e do conhecimento, o menosprezo pela criação e pelos criadores, a ausência generalizada de expectativas, a destruição apressada de tudo aquilo que de positivo foi erguido sob o regime democrático, exigem dos cidadãos cientes desta desgraça uma atuação rápida e enérgica. A construção de uma alternativa ao atual governo, mas também de uma mudança clara em relação às lógicas de sistema que delapidaram os dinheiros públicos, instituíram o «aparelhismo» rotativista partidário como princípio de governo e desvalorizaram a democracia. Esta é uma necessidade que ganha, visivelmente, um número cada vez maior de adeptos entre os convictos de que não será com o fatalismo, a desistência e a depressão coletiva que se poderá inverter a situação. Que se poderá voltar a viver num país minimamente justo e com um lugar para a dignidade e a esperança. (mais…)

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    Os novos bárbaros

                    A palavra «bárbaro» deriva, como é sabido, do grego βάρβαρος, significando «não grego». Era dessa forma que os antigos helenos classificavam os estrangeiros e todos os povos cuja língua não era a sua. Começou por ser uma alusão aos persas, cujo idioma de toada gutural entendiam como um estranho e indecifrável «bar-bar-bar». Por extensão, também os romanos foram por eles designados como bárbaros. Depois, já sob o Império Romano, a expressão passou a ser utilizada com a conotação de «não-romano» ou de «incivilizado», aplicada em primeiro lugar aos hunos, aos celtas e aos diferentes povos germânicos, cujo comportamento, reputado como brutal e cruel, era inexplicável e totalmente fora dos parâmetros da sua matriz cultural, parecendo bastante ameaçador. A palavra foi-se mantendo entretanto, ao longo dos séculos, no léxico ocidental. Apesar de contestável na sua dimensão etnocêntrica, o seu uso superou em algumas significações este limite, para se vincular negativamente à classificação de todos aqueles que se opunham, recorrendo à violência ou pela força da ignorância, ao que parecia serem as conquistas partilhadas da humanidade. Ajustado, sucessivamente, a todos os que se afastavam de um ideal de paz, de bem-estar, de saber, de liberdade, de igualdade, de proteção dos mais fracos, de supremacia do interesse da comunidade ou coletivo, de defesa do indivíduo frente ao pensamento único e a todas as modalidades de opressão, de desrespeito das minorias, dos excluídos, dos mais pobres e mais fracos. (mais…)

                      Apontamentos, Olhares, Opinião

                      Depardieu já não mora ali

                      Com aquele perfil de Napoleão Bonaparte aquilino, sorridente e bem nutrido, visivelmente menos dado a cavalgadas e a batalhas que o original, Gérard Depardieu, 64 anos, grande ator, realizador episódico e agora empresário de sucesso, oferecia-nos, até há pouco tempo, uma excelente representação visual do «verdadeiro francês». No ecrã, foi o Conde de Monte-Cristo. Foi D’Artagnan. Foi Porthos. Foi Mazarino. Foi Cyrano de Bérgerac. Foi Jean Valjean. Foi até o gaulês Obélix. E ficou para sempre, já do lado meridional dos Alpes, como o inesquecível Olmo Dalco, protagonista pobre do 1900, de Bertollucci. Durante anos viveu também como um homem de causas, tendo apoiado em 1987 a reeleição de François Mitterrand, que lhe aplicou na lapela o emblema da Legião de Honra.

                      Entretanto engordou bastante, tornou-se empresário vinhateiro e hoteleiro de sucesso, investiu empenhadamente na bolsa, e, em 2007, passou-se para o outro lado da História, apoiando a eleição, e depois a frustrada reeleição, de Nicolas Sarkozy. Pelo meio foi-se tornando um Olmo bem-sucedido na vida, arrivista e colérico, e de tal forma podre de rico que foi um dos alvos da lei Hollande destinada a taxar poderosamente os franceses que juntam muito mais dinheiro do que aquele que conseguem contar. Por isso se mudou para a Bélgica, onde a intervenção fiscal do Estado é consabidamente mais branda. E agora acaba de, apenas em duas semanas, obter de Vladimir Putin a nacionalidade russa. Pode ser que, nas suas queixas de contribuinte, tenha até algumas justificadas razões de queixa. Mas da imagem futura de egoísta, vira-casacas e oportunista já não se livrará mais. E no nosso imaginário partilhado deixou para sempre de representar uma certa «França francesa», heróica, democrática e combativa. Dá pena mas a escolha foi dele.

                        Apontamentos, Cinema, Olhares

                        Imaginem lá

                        Lembro-me bem de todas as meias-noites da mudança de ano. Mesmo nos momentos difíceis, ou naqueles mais tristes, sem presságio de futuro ou com morte próxima, elas aconteceram em ambientes partilhados de bem-estar e de esperança. Até aquela, irrepetível, passada enregelado e à luz de uma vela, na casa clandestina, a comer fatias de um bolo-rei minorca misturadas com cerveja choca. Quando a televisão mudou os hábitos e, no tempo do regime velho, se passou a mostrar ao povo o réveillon dos ricos, de fato completo ou vestido de noite – exibindo alegria de circunstância entre cornetas de plástico, serpentinas, chapéus cónicos, pandeiretas e línguas de sogra –, havia ainda assim uns minutos para sair à rua e olhar os artifícios de fogo lá no alto, no céu. E para ouvir os cláxones dos carros, as pancadas nos tachos e nas panelas, os votos gritados de bom ano, os estampidos secos das rolhas, sob o clarão festivo da luz pública.

                        Este ano, porém, e pela primeira vez, fui à varanda para dar de caras com um quase silêncio, a rua quase deserta, as janelas com as cortinas corridas, uns petardos pobres, isolados e sem graça alguma, a fazer de conta que assinalavam um momento especial. Engoli então a minha dose de passas com uma sensação de perda. Aquilo que estamos a viver faz-nos assim, mais tristes e semi-mudos, menos esperançosos, mais pobres e inevitavelmente inseguros, enquanto escutamos aqueles que escolhemos para organizarem a esperança de todos a prometerem-nos o pior. Se não para todo o sempre, dizem eles de olhos no chão, seguramente até ao fim das nossas vidas. E das vidas dos que vierem depois. Expiando, porque merecemos, o pecado de termos um dia confiado em que a cada trânsito do calendário se seguia um futuro. Um futuro melhor, mais feliz, imaginem lá. Imagine-se lá.

                          Apontamentos, Democracia, Devaneios, Olhares

                          A capital e o país nos anos 60

                          A historiografia que se ocupa da fase final do Estado Novo tem enfatizado, entre as condições que conduziram à queda do regime, os fatores políticos, militares, diplomáticos, económicos e sociológicos que foram limitando a sua capacidade para se renovar ou mesmo para se manter de pé. Tem sido destacado, com toda a justeza, o papel das oposições organizadas na construção do espaço de resistência e favorável à sublevação que tornou possível, ou inevitável, o 25 de Abril. O que raras vezes tem sido mostrado é que essa dinâmica de mudança teve uma outra componente, ao mesmo tempo subterrânea e aparatosa, traduzida na importação de valores e de hábitos internacionais, já em curso nos países industrializados, na afirmação da uma nova cultura juvenil e na introdução de práticas de consumo capazes de abalar a fortaleza política e moral que, desde a sua já distante génese, o salazarismo e a propaganda do regime tinha procurado defender e apresentar como modelar. (mais…)

                            História, Memória, Olhares

                            Imagem, «real» e realidade

                            Susan Sontag

                            Os seis ensaios que este livro de Susan Sontag foram publicados entre 1973 e 1977 na New York Review of Books, e logo de seguida editados em conjunto, rapidamente convertidos em clássicos dos estudos sobre a semiótica da fotografia. Passando quase incólumes pelas últimas décadas, abordam um assunto – o lugar central que a fotografia detém na cultura contemporânea – que não só permanece inteiramente atual, como tem sido reforçado até no seu interesse devido aos progressos ocorridos entretanto no domínio da captação, da reprodução e da disseminação da imagem. Como seria de esperar pelo seu entendimento do papel da crítica, Sontag excluiu de todo uma observação estritamente técnica da prática fotográfica, que pudesse desligá-la do quadro social dentro do qual é produzida e consumida. Abrangentes e reflexivas, as observações que vai propondo dialogam constantemente, de um modo erudito e sedutor, com a filosofia, a sociologia, a história, a estética e a pintura, partindo sempre do princípio segundo o qual, atualmente, «tudo existe para terminar numa fotografia». (mais…)

                              Artes, Fotografia, Olhares

                              Olha, é Natal

                              Porque já fiz o mesmo, estou à vontade para olhar agora como sintoma de uma qualquer doença, eventualmente infantil, o esforço de alguns, incréus ou intransigentes, para evitarem referir-se ao Natal como data primordial do nosso calendário. Escrevem então «natal» com minúscula, evitam desejá-lo «Bom» aos outros, preferindo falar de felizes «Festas», consideram a Consoada coisa para idosos semiadormecidos e a parafernália do presépio cristão como uma brincadeira de crianças, de ociosos ou de retardados. Para mim, um ateu graças a Deus convicto, o Natal, enquanto episódio simbólico fundador do cristianismo, conserva um lugar central na agenda da vida coletiva, na organização dos afetos partilhados, e, acima de tudo, na construção da identidade cultural desse Ocidente que escreveu a sua própria história e a sua tradição. Bem sei, como Roger Garaudy um dia escreveu, que ele, o Ocidente, «é um acidente», mas este deu-se, aconteceu, e agora estamos todos envolvidos nas suas peripécias e consequências. Por isso, é com pena e também com preocupação que vejo as nossas cidades e vilas quase sem as mágicas e habituais iluminações da época, as paredes exteriores das casas ainda mais nuas e frias, sem «Pais Natal» anafados e vemelhuscos a tentarem desesperadamente escalá-las, as lojas de prendas semivazias ou com produtos de saldo. E que encontro muitos milhares de compatriotas, tantos deles agora desempregados, sem o suplemento de esperança e de breve bem-estar que nesta altura lhes oferecia o magro mas quase sempre merecido e seguro… subsídio de Natal.

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                                Les artistes

                                Praticamente ninguém fala deles, embora não sejam invisíveis. A não ser quando falam deles próprios, em monólogo. Ou então para os seus. É fácil perceber o porquê desse silêncio e desse insulamento: a sua voz sem valor acrescentado, «inútil», é depreciada pelo discurso dominante, particularmente nestes tempos de «salve-se quem puder» que acompanham o naufrágio coletivo. É também ignorada por quem passa ao lado do universo infinito mas peculiar que habitam. Não «produzem valor», não são «competitivos», não lutam como lobos por um lugar ao sol, não têm como mola vital o desejo animal de sucesso e riqueza a qualquer preço. Não vivendo do ar, o reconhecimento de que precisam é principalmente o dos espetadores, o dos leitores, o do público que entra e sai. Porque, como cantava Ferré, Léo Ferré, «ce sont des gens d’ailleurs». Gente de outro lugar.

                                São os que vivem da criação e das artes. Que apenas precisam de tempo e meios essenciais para escrever, para representar, tocar, montar espetáculos, pensar. Muitos sacrificaram «carreiras de sucesso», empregos estáveis, bem-estar material, até pequenas heranças, para habitarem, quase sempre com pouco dinheiro mas amor pelo que fazem, nesse universo que vive de e para a imaginação e a representação do mundo. Mas preferiram viver assim, sabendo que jamais seriam ricos, para fazerem aquilo de que gostavam. Viviam no entanto remediados pois, apesar de se alimentarem de trabalhos ocasionais e precários, sabiam que depois de um viria outro. Com tudo à sua volta a desabar, sem apoios para a sua arte, com menos público, ficaram agora mais sós e desamparados que nunca. Sem segurança material, reserva para a velhice, uma noção de futuro. Sujeitos a fazer qualquer coisa, menos aquilo que foi da sua escolha, para terem o pedaço de pão que lhes cabe. Num país para todos ainda mais triste e sem luz. Até que…

                                Adenda: Já depois de escrito este post fui recuperar este.

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                                  Vargas Llosa e os livros

                                  Em novembro de 1972 li pela primeira vez Mario Vargas Llosa. Sei precisá-lo porque na altura tinha o hábito infalível de escrever a lápis o lugar e a data de compra de cada livro e é essa a data que se conserva no meu exemplar d’A Conversa na Catedral. O romance, contendo um jogo de vozes e de sombras no Peru do tempo da ditadura do general Manuel Odría, fora lançado em Lima apenas três anos antes. E digo apenas porque a distância temporal entre os livros publicados no estrangeiro e as edições portuguesas, quando as havia, era então, por via de regra, muito maior. Para mim, a data é importante também porque daí para a frente, com oscilações de gosto, li uma grande parte do que o escritor peruano foi produzindo: todos os seus dezoito romances, vários dos seus livros de ensaio, as crónicas semanais no El País sobre temas da atualidade, e até o discurso de aceitação do Nobel da Literatura, ganho em 2010. Nem sempre concordei (ou concordo) com as suas posições políticas, mas sempre o olhei como uma referência moral, um grande contador de histórias e um homem corajoso, capaz de enfrentar tanto alguns tiranos quanto a lógica redutora do politicamente correto. E não tenho problema algum em declarar que foi por causa dele, e do debate que levou ao fim da velha amizade com Gabriel Garcia Márquez, que me tornei menos benevolente para com algumas das posições públicas do autor de Cem Anos de Solidão. (mais…)

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