Arquivo de Categorias: Memória

O rapaz que olhava os navios

Memória, ensaio e elegia, eis um livro escrito como história afetiva da cidade que o autor crê habitada «de ruínas e de melancolia». Escolheu observá-la a partir dos sinais de um passado que é o da sua infância e primeira juventude, fazendo-o acompanhar de recordações familiares, fotografias a preto e branco, livros e jornais envelhecidos. Por todo o lado o hüzün, uma variedade de melancolia, de tristeza, aplicada aos istambuleses que padecem de um sentimento de perda por viverem num lugar cujos dias de glória acabaram. Não se trata, porém, de um exercício meramente nostálgico, pois Istambul não foi apenas o território físico de Pamuk: foi também a casa-mãe da sua imaginação, um espaço com o qual manteve sempre uma identificação poética, o observatório privilegiado para a sua percepção das mudanças do mundo. (mais…)

    Cidades, Leituras, Memória, Olhares

    O Trabalhador da Noite

    Alexandre Jacob

    Do fundo do baú deste blogue, irei recuperar alguns dos posts da série-catálogo «Vidas Exemplares». Estamos todos a precisar de modelos.

    Pelos finais do século XIX, Alexandre Marius Jacob (1879-1954), o autoproclamado «ilegalista pacifista», resolveu dedicar-se a tirar «aos que não produzem nada mas têm tudo» para dar «aos que produzem tudo e não possuem nada». A sua vida de assaltante, iniciada em 1894 com a formação do bando «Os Trabalhadores da Noite», destinado a espoliar os «parasitas sociais», jamais foi a do simples criminoso, pois sempre anunciou que as suas acções se voltavam contra a classe dominante e contra «o mais iníquo de todos os roubos», a propriedade individual. Uma percentagem do dinheiro roubado era destinada à causa anarquista e aos camaradas em dificuldades. «O roubo é a restituição», escreveu uma vez no jornal libertário Germinal, parodiando a conhecida frase de Proudhon que equipara a propriedade ao roubo. Com grande sentido de humor e eterno porte de cavalheiro, virá a tornar-se em 1907, para Maurice Leblanc, no modelo ficcional de Arséne Lupin, o gentleman-cambrioleur que fazia questão de troçar da polícia e dos poderosos. (mais…)

      Biografias, História, Memória, Séries

      O paraíso temporário

      Joseph Roth

      Desde 1927, ano em que este livro de Joseph Roth (1894-1939) foi publicado, quatro importantes fatores modificaram profundamente a condição, a vida e o destino dos judeus do leste europeu. O primeiro foi a acentuada expansão do antissemitismo na Europa Central, com esse cortejo de sofrimento, exclusão, fuga e extermínio que culminou no Holocausto e mudou radicalmente a sua geografia física. O segundo foi a formação do Estado de Israel em 1948, consumando a definição de uma nova área de povoamento e, em consequência, a rápida reformulação das tradições e das condições de vida daqueles que ali se foram estabelecer. O terceiro fator foi o retorno das perseguições na antiga União Soviética, visível nos últimos anos de Estaline mas que não se esgotou após a sua morte e criou as condições para um novo êxodo. E o último foi a atitude expansionista e agressiva, progressivamente imperante no Estado de Israel a partir das guerras dos Seis Dias e do Yom Kipur, que alterou o modo de reconhecer os direitos históricos dos judeus. Em pouco mais de meio século, esta conjugação de fatores tornou irreconhecível o universo que o jornalista e escritor austríaco aqui procurou descrever e explicar, dispersando ou transformando para sempre aqueles que o formaram. (mais…)

        História, Memória

        Mario De Biasi

        Mario De Biasi

        À medida que o volume de informação vai crescendo e se desdobra, que a sua velocidade de circulação dispara, e a multidão de sound bites e de dados irrelevantes tende a sobrepor-se ao que consegue sobreviver àqueles «quinze minutos de fama» dos quais falava Andy Warhol, tendemos a perder o rastro ao que permaneceu durante décadas como âncora da nossa memória ou como fundação da nossa maneira de olhar o mundo. Se, como sugeriu Marc Augé num pequeno e luminoso texto de 1998, é verdade que sem esquecimento não existe memória, pois de outra forma iríamos perder-nos no sorvedouro imenso de um passado esmagador, também é verdadeiro que a ampliação dos meios de informação e de comunicação tende agora, cada vez mais, embora paradoxalmente, a conservar o que é fugaz e a apagar o que permanecerá na lembrança de mais do que uma geração. Só isto explica que nesta altura deixemos morrer no esquecimento, quase sem uma palavra, homens e mulheres que durante tanto tempo nos acompanharam no reconhecimento do mundo, ou que nele conduziram os que mais de perto nos precederam. (mais…)

          Artes, Fotografia, Memória, Olhares

          As cartas de Piteira

          Nas evocações da resistência à ditadura e dos primeiros tempos pós-Abril raramente tem sido dado o justo destaque à vida desinquieta, à intervenção militante e à atividade intelectual de Fernando Piteira Santos (1918-1992). Todavia, ele foi uma das figuras-chave da história do país no século XX, como resistente, intérprete da vida nacional, ou, nos últimos anos de vida, influente «reserva da República». Militante contra a ditadura desde a juventude, Piteira foi membro do Comité Central do PCP entre 1941 e 1950, ano em que foi expulso a pretexto de uma falsa acusação de delação. Antifascista, oposicionista ativo, conheceu por isso os cárceres da ditadura, tendo sido preso por três vezes. Em 1961 colaborou na tentativa de assalto ao Quartel de Beja, vendo-se por esse motivo forçado a passar à clandestinidade e depois ao exílio em Argel, de onde só regressou após a queda do regime. Em 1974 foi Director-Geral da Cultura Popular e Espectáculos, criando e dirigindo depois os Centros Populares 25 de Abril. Em 1977 foi fundador da Fraternidade Operária, criada por dirigentes e militantes do PS descontentes com o rumo político tomado então pelo partido. Professor da Faculdade de Letras de Lisboa, foi ainda, entre 1975 e 1989, diretor do Diário de Lisboa. (mais…)

            História, Memória

            45 anos depois

            Precisamente há 45 anos, a 2 de Maio de 1968, começou o «Maio francês». Foi a revolta estudantil a acontecer em primeiro lugar, aberta nos anfiteatros de Nanterre quando, nesse dia, o reitor Grappin convocou 8 estudantes do Movimento 22 de Março para um conselho disciplinar. Seguiu-se a primeira grande assembleia estudantil e a repressão policial. A revolta operária veio também, um pouco mais tarde, mais sóbria e nunca chegando a unir-se completamente à primeira. Muitos intelectuais estiveram presentes desde a primeira hora, associando-se a ambas e sujando os sapatos nas barricadas, as mãos na tinta dos panfletos e dos graffiti. Os partidos da esquerda comportaram-se de forma desigual, nem sempre límpida («Falsos revolucionários que é preciso desmascarar» titulava o L’Humanité logo a 3, convirá não esquecer), mas nos momentos decisivos estiveram do mesmo lado da barricada. E das barricadas. (mais…)

              Apontamentos, História, Memória, Olhares

              Os papéis da revolução

              Depois de longos anos sujeito a juízos apressados ou minimizado na sua real importância, o ativo universo da extrema-esquerda portuguesa emergente nos anos finais do Estado Novo começa a ser reconhecido de forma sistemática. A perceção da sua existência concreta e do papel que cumpriu, associada à publicação de memórias, reportagens, inventários e estudos académicos, é acompanhada, como seria de esperar, pelo recuo dos mitos e das lendas, heroicos ou caricaturais, propagados a seu respeito. A saída de As Armas de Papel, grosso volume da autoria de José Pacheco Pereira há muito prometido pelo autor, funciona como dicionário-arquivo das publicações periódicas e de exílio ligadas aos movimentos radicais de esquerda cultural e política surgidos na década que antecedeu o 25 de Abril, reforçando de forma considerável esse reconhecimento público de parte da nossa história recente em boa medida ainda por desvendar. (mais…)

                História, Memória

                06137973

                Foi há tanto tempo e não parece ter acontecido há tanto tempo. Recordo bem as oito em ponto no relógio de pulso daquela manhã de sol gelada à porta de armas do quartel. E de uma mistura suada de raiva, estranheza e expectativa. Era já um outro eu, de certa forma diminuído, pois no dia anterior, para não sofrer os horrores da máquina zero, havia reduzido o cabelo àquele humilhante mínimo regulamentarmente exigido a um militar no ativo. Não, não contava que aquilo acontecesse tão depressa, embora devesse esperar que alguma coisa pudesse acontecer depois de alguns meses antes ter sido detido durante uma manifestação estudantil contra a guerra, metido em grupo numa infeta ramona, enfiado numa cela e interrogado por um tenente-coronel do exército que viria muito depois a ser meu aluno. Era previsível uma incorporação compulsiva e ela de facto sucedeu, adiando a universidade e abrindo um enorme parêntesis na minha vida. Foram trinta e dois meses muito fortes, exaltantes algumas vezes, durante os quais se sucederam episódios previsíveis, outros completamente inesperados e um com o qual sempre contara: aconteceu na madrugada de 24 para 25 de abril de 1974 e fez daquela vida uma outra vida. Completam-se hoje precisamente quarenta anos sobre o dia em que assentei praça como «soldado-instruendo 06137973» no Regimento de Infantaria 5 das Caldas da Rainha. Foi há tanto tempo e não parece ter acontecido há tanto tempo.

                  Apontamentos, Memória, Olhares

                  Avantesmas em pedra

                  Para além dos edifícios oficiais imensos, feios e inóspitos, uma das marcas mais impressionantes da arte pública associada à estética do realismo socialista é a representada pela estatuária monumental. Durante décadas, dispersa por praças, ruas, jardins e até no interior de edifícios, a vitória do «socialismo realmente existente», a glória das suas figuras de proa e a apoteose dos seus valores e símbolos essenciais foi celebrada em estátuas gigantescas, de péssimo gosto, que se impunham de uma forma medonha em cenários frequentemente vazios, pobres e deprimentes. Existe até, na cidade lituana de Druskininkai, a 130 quilómetros de Vilnius, um espaço museológico parcialmente ao ar livre, o Grūto Parkas – conhecido localmente como «O mundo de Estaline» –, no qual se expõem, sob a forma de pesadelo vivo, centenas de exemplares deste universo absurdo de bronze e granito. Na Coreia do Norte subsiste a extravagância, tendo ainda recentemente sido inaugurada em Pyongyang, ao lado da conhecida estátua colossal de Kim-Il-Sung, o «líder eterno», outra equivalente, representando o seu filho e «querido líder» Kim-Jong-Il. Pois agora, o costume regressa à Polónia, ainda que subordinado a uma orientação ideológica algo diversa: neste domingo começou a ser erguida na cidade silesiana de Czestochowa, o maior centro católico do país, uma estátua gigantesca do papa João Paulo II. Desta forma tornará à região a tradição pavorosa das avantesmas em pedra.

                    Apontamentos, Artes, História, Memória

                    Ainda «o lado brilhante da vida»

                    Christopher Hitchens

                    Não sei se existe alguma dissertação académica sobre o tema, mas é muito provável que sim, apesar dele requerer uma disposição psicológica especial. A «literatura de estado terminal», a escrita de leito de morte, é um género que se impõe por si mesmo, uma vez que os escritores, os críticos, os historiadores, os jornalistas, também morrem, e, por certo, a maioria daqueles que perto do fim estejam em condições físicas e com discernimento para o fazerem terá sempre a tentação, por vezes transformada em ato, de escrever, de escrever uma vez mais, talvez pela derradeira vez. Agora sobre essa experiência única pela qual está a passar, do convívio com o fim iminente da própria vida no limite da capacidade de se fazer ouvir. Walt Withman terá sido um dos que foi mais longe, ao completar em 1892, já muito perto da morte e totalmente dependente dos outros, a derradeira versão de Leaves of Grass, declarando-a como a única fidedigna e completa. (mais…)

                      Apontamentos, Memória, Olhares

                      Desmantelando fronteiras

                      O que pode aproximar num manifesto comum pessoas com trajetos políticos tão diametralmente opostos como aqueles protagonizados pelos deputados europeus Daniel Cohn-Bendit (n. 1945), antigo libertário e atual copresidente do Grupo dos Verdes/Aliança Livre Europeia, e Guy Verhofstadt (n. 1953), do Grupo Democrata e Liberal, primeiro-ministro da Bélgica durante quase uma década? De forma condensada mas nem por isso mutilada, pode responder-se a esta pergunta falando de uma constatação e de uma proposta. A constatação é imposta por uma imagem que hoje poucos terão coragem de negar: «a Europa é um edifício que vacila nos seus alicerces», imersa numa crise profunda e assustadora, simultaneamente económica, demográfica, ecológica, política e institucional, pela qual europeu algum passa incólume e que questiona um paradigma de desenvolvimento, de bem-estar, de cooperação e de liberdade que ainda há pouco parecia robusto e irreversível. (mais…)

                        Atualidade, Memória, Opinião

                        O passado, de visita

                        Maio de 1968

                        Merece um post detalhado que escreverei adiante. No entanto, chamo desde já a atenção para a saída de As Armas de Papel, de José Pacheco Pereira (ed. Temas & Debates – Círculo de Leitores), grosso volume que funciona como um dicionário-arquivo das publicações periódicas e de exílio ligadas aos movimentos radicais de esquerda cultural e política emergentes na década que antecedeu o 25 de Abril. Interessará em primeiro lugar aos historiadores e a um público empenhado em conhecer de forma mais completa e menos unívoca a atividade dessa parte da oposição política ao anterior regime que teve, desde o início, o objetivo de transformar a queda deste no lançamento de uma alternativa revolucionária ao capitalismo indígena e ao sistema colonial que o sustentava. Mas, mais do que isso, oferece aos olhos de quem o não conheceu, ou dele na época teve uma visão parcial e sectária, o retrato de um mundo dinâmico e alternativo, que tinha rompido completamente o cordão umbilical com o universo mental do salazarismo e também com o da oposição mais ortodoxa ou reformista. Produzindo ao mesmo tempo um microcosmo incandescente que influenciou, de uma forma ou de outra, parte significativa da elite política e cultural portuguesa das últimas décadas. Não se trata de perceber a ligação de tudo isto com aquilo em que, cerca de meio século depois, esses largos milhares de pessoas se transformaram, mas sim de ver, com a mão em muito dos papéis que as moldaram politicamente e deram sentido aos seus combates de então, o caldo de cultura de distanciamento radical com o país antigo e «habitual» que estes documentos bem ilustram. Para os conhecermos depois em maior detalhe existem os arquivos físicos e digitais, naturalmente, mas esta é uma boa introdução ao tema. De caminho, uns quantos revisitarão ainda, através destas páginas, uma parte do seu passado que também é nosso.

                          História, Memória

                          O inútil caminho do ódio

                          O ódio contra alguém começa devagar, mas se não é atalhado não para de crescer. Ele parte de uma aversão nebulosa, alimentando-se do rancor e jogando-se na inimizade e na repulsa que afastam até um ponto de não retorno. Mas não é meramente passivo: o ódio leva quem o vive a tentar isolar, a procurar destruir, a tudo fazer para abalar as ideias, a forma de estar, o passado, o presente e o futuro de quem tanto se detesta. É um sentimento mórbido, que cega sem remissão, que avilta, que nada produz, que coage a liberdade e tiraniza quem o vive. Além disso, raramente age de forma frontal: por regra denigre, insinua, alimentando-se de rumores, de meias-verdades e de mentiras. Nada tem a ver com o reconhecimento da diferença ou com o combate limpo contra as ideias da pessoa da qual se discorda, de quem não se gosta e que se rejeita. (mais…)

                            Democracia, Memória, Opinião

                            Portugal numa biografia

                            Jorge Sampaio

                            Num tempo em que os rostos mais ativos e reconhecidos da coisa pública, em particular aqueles que integram os partidos do chamado arco da governação, pertencem já a uma geração que cresceu e se formou politicamente em democracia – não tendo vivido o risco da perseguição pessoal ou da privação da liberdade devido às suas opiniões ou escolhas políticas – é bom ter à mão uma obra como esta biografia de Jorge Sampaio, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira. O primeiro grossíssimo volume, dos dois previstos, foi lançado em novembro passado. A justificação mais imediata do seu interesse, associada a esse défice geracional de memória, não é difícil de determinar: ecoa aqui o percurso pessoal e político de um homem independente, embora sempre alinhado à esquerda, iniciado numa altura, a da fase final do Estado Novo, na qual adotar essa escolha política requeria coragem, e prosseguido depois num tempo, imediatamente posterior à instauração do novo regime em 25 de Abril, em que a instabilidade da governação e a difícil aprendizagem da democracia exigiam uma entrega muito grande, permanente, a quem se envolvesse na luta partidária e no funcionamento das novas instituições. (mais…)

                              Biografias, História, Memória

                              A outra China

                              Ao lado dos campos de batalha das duas Guerras Mundiais e das campanhas de extermínio levadas a cabo pelos grandes regimes totalitários, as principais mortandades do século passado já não foram determinadas por epidemias, como acontecera recorrentemente em tempos mais recuados, mas antes pela fome. O mais doloroso e inaceitável é que elas ocorreram como consequência de uma política consciente e deliberada de governos que teriam, supostamente, a obrigação de prevenir, ou no mínimo de reduzir, o seu impacto. Estima-se que o Holodomor, a fome de caráter genocidário, hoje já bem conhecida nas circunstâncias e nos números, que devastou a Ucrânia em 1932-1933, enquanto em Moscovo se proclamavam as «vitórias», quase todas fictícias, do 1º Plano Quinquenal, de acordo com as estimativas menos pessimistas terá feito entre 5 e 6 milhões de vítimas. Nada de comparável, porém, à Grande Fome, que na China sobreveio entre 1958 e 1962, durante a qual o número de pessoas mortas devido aos seus efeitos terá muito provavelmente rondado os 45 milhões. (mais…)

                                História, Memória

                                O elétrico vermelho

                                Num livro sobre o levantamento, o apogeu e o fim da Cortina de Ferro publicado há poucos meses pela Doubleday (Iron Curtain: The Crushing of Eastern Europe), a jornalista e historiadora norte-americana Anne Applebaum, conhecida por ser a autora de uma das mais sérias e completas obras sobre a origem, a organização e o funcionamento do Gulag soviético, conta-nos um episódio extraordinário. Ele ocorreu em Varsóvia já depois de terminada a guerra, num belo dia do verão de 1945. Seguia um funeral por uma das muitas centenas de ruas reduzidas a destroços na altura da retirada pelos nazis quando os seus tristes acompanhantes depararam de repente com uma cena extraordinária: um verdadeiro carro elétrico varsoviano, vermelho como sempre mas o primeiro a cruzar a cidade depois do fim do conflito, fazia o seu percurso tocando a sineta. As pessoas nos passeios estacaram todas, surpreendidas, e muitas desataram a correr atrás dele, enquanto outras batiam palmas e gritavam vivas. E então o funeral parou, os seus enlutados participantes esqueceram por momentos o corpo gélido que conduziam à última morada, e envolvidos na euforia geral viraram-se para aquele elétrico saído das cinzas e começaram, também eles, a bater palmas. Por um instante, uma espantosa vibração de esperança e de vida esmagou, gloriosa, a fixidez da morte.

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                                  A vida de Ricardo

                                  Antes ainda de ser vertida para o inglês, Ryszard Kapuściński: A Life, a biografia do jornalista e escritor polaco nascido Pinsk, na Bielorrússia, em 1932, e falecido em Varsóvia no ano de 2007, escrita por Artur Domosławski, seu antigo colaborador e também jornalista, tinha já algum impacto mundial. Não é difícil perceber os motivos desse rápido eco. Ryszard Kapuściński foi um jornalista experiente e respeitado, conhecido por ter entrevistado centenas de atores políticos de primeira linha e calcorreado este mundo e o outro. Traduzido em muitas línguas sempre com apreciáveis tiragens, tinha e conserva a reputação de homem corajoso, aventureiro, sedutor e inteligente, e que ainda por cima escrevia muito, muito bem, de uma forma literária, assumidamente poética, rara no seu meio profissional. Mas do qual, talvez devido à nacionalidade e à língua periféricas, bem como aos longos anos de relativa discrição, pouco se sabia. Por isso, poder saber-se mais, e logo num grosso volume atulhado de episódios e de revelações, transformou-se rapidamente em fator de interesse. (mais…)

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                                    As faturas e a apoteose do ridículo

                                    Contou-me certa vez um amigo açoriano que a imagem do medo da sua mais recuada memória de infância associava três elementos: a proximidade de hipotéticos navios russos, a intervenção certa e segura do diabo e a convicção de que, por onde quer que passeasse na sua ilha, existiriam fiscais do isqueiro para o autuarem por falta de licença de uso daquela ferramenta manual de ignição, imprescindível para os fumadores, como ele era na altura. Este terceiro medo era afinal o único que tinha razão de ser: a necessidade de porte de licença para uso de acendedores e isqueiros antes de 1974 não é uma invenção de pessoas com imaginação e prova-nos de que forma, naquela época, a vigilância policial dos cidadãos combinava por vezes a rigidez do controlo com a intervenção do ridículo. O aviso, feito agora pela Secretaria de Estado dos Assuntos Fiscais, de que, onde quer que se transacionem bens, poderão ser realizadas ações de fiscalização «que incidam sobre a obrigação de exigir a emissão de fatura por parte dos consumidores finais», ações que «podem ser realizadas à saída dos estabelecimentos comerciais para garantir que os consumidores exigem efetivamente as faturas pelas compras realizadas», reconduz-nos perigosamente a esse tempo. Pondo portugueses a vigiarem portugueses, de livro de autos na mão, inclusive à porta de capoeiras nas quais se possam transacionar clandestinos galináceos, ou encostados às carroças dos assadores de castanhas, como «medida de combate eficaz à economia paralela, à evasão fiscal e às situações de subfaturação». Para reequilibrar as contas do Estado, naturalmente. De volta pois à apoteose do ridículo.

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