Depois de longos anos sujeito a juízos apressados ou minimizado na sua real importância, o ativo universo da extrema-esquerda portuguesa emergente nos anos finais do Estado Novo começa a ser reconhecido de forma sistemática. A perceção da sua existência concreta e do papel que cumpriu, associada à publicação de memórias, reportagens, inventários e estudos académicos, é acompanhada, como seria de esperar, pelo recuo dos mitos e das lendas, heroicos ou caricaturais, propagados a seu respeito. A saída de As Armas de Papel, grosso volume da autoria de José Pacheco Pereira há muito prometido pelo autor, funciona como dicionário-arquivo das publicações periódicas e de exílio ligadas aos movimentos radicais de esquerda cultural e política surgidos na década que antecedeu o 25 de Abril, reforçando de forma considerável esse reconhecimento público de parte da nossa história recente em boa medida ainda por desvendar.
O livro interessará por isso, em primeiro lugar, aos historiadores e outros leitores empenhados em conhecer de forma mais completa e menos unívoca a atividade desse setor complexo e ativo da oposição política ao anterior regime, e que desde o início pretendeu transformar a queda deste na construção de uma alternativa revolucionária ao capitalismo indígena e ao sistema «colonial-fascista» que o sustentava. Mas, mais do que isso, oferece aos olhos de quem o não conheceu, ou dele na época teve uma visão parcial, o retrato de um meio dinâmico e alternativo, que decidiu cortar o cordão umbilical que o prendia ao universo mental do salazarismo e também ao da oposição tradicional, em particular a hegemonizada pelo PCP ou, com uma presença menos significativa e organizada, a que aproximava o velho republicanismo e a social-democracia.
Por intermédio de uma abordagem descritiva, título a título, de um conjunto diversificado de publicações editadas no interior do país ou fora dele, destinadas em ambos os casos a circular clandestinamente ou a alimentar a atividade regular de numerosas organizações orientadas para o derrube do regime, José Pacheco Pereira dá a ver um microcosmo incandescente que influenciou, de uma forma em larga medida decisiva, parte importante da elite política e cultural portuguesa das últimas décadas. Não se trata de perceber de forma objetiva a ligação de tudo isto com as escolhas pessoais que nas décadas seguintes os ex-militantes maoistas ou trotskistas convertidos à democracia representativa foram fazendo, mas sim de reconhecer, com as mãos em muito dos papéis e das ideias que os moldaram politicamente e deram sentido aos combates que travaram, o caldo de cultura de distanciamento radical com o país antigo e «habitual» que estes documentos tão bem ilustram.
Para os podermos conhecer com maior detalhe existem, em primeiro lugar, os arquivos físicos e digitais, mas esta é uma aproximação ao tema. Aliás, a primeira parte do volume inclui uma utilíssima introdução do autor, na qual esta materialização do passado recorre a uma descrição técnica, útil e por vezes fascinante, dos processos de organização, enquadramento político, escrita, ilustração, produção e distribuição de mais de centena e meia de títulos. De caminho, uns quantos revisitarão ainda aquela parte do seu passado que, independentemente do percurso escolhido, é inapagável. Pois, como lembra o autor na nota prévia ao volume: «O impulso de revolta, os riscos da ilegalidade, a vida escondida, as tensões subjetivas, morais e éticas desses anos, a política no sentido mais lato da ação cívica pelo bem comum (…), isso fica sempre.»
José Pacheco Pereira, As Armas de Papel. Publicações periódicas clandestinas e do exílio ligadas a movimentos radicais da esquerda cultural e política (1963-1974). Temas & Debates – Círculo de Leitores. 600 págs. Publicado na LER de Abril de 2013.