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Tintim no Congo e a dentada na maçã

Tintim no Congo

Discordo em absoluto da tentativa de proibição a decorrer na Bélgica de Tintim no Congo, o segundo livro de banda desenhada de Hergé. O motivo invocado é a perspetiva, próxima dos estereótipos eurocêntricos e racistas da África e dos seus naturais não-caucasianos, que em 1931, quando o álbum foi editado pela primeira vez, dominava a maior parte do hemisfério norte. Sob este aspeto, o livro incomoda, sem dúvida, mas não menos que milhares de outros, fáceis de encontrar em bibliotecas e livrarias, contendo representações e ideias que podemos abominar mas não devemos apagar, pois fazem parte do património coletivo e servem até para mostrar, por oposição, aquilo que consideramos detestável e merece, muitas vezes, ser conhecido para ser lido criticamente. Neste caso, aliás, o próprio Hergé (1907-1983) veio a reconhecer que na altura da criação da aventura congolesa do jovem repórter belga, tal como acontecera com o também polémico Tintim no País dos Sovietes, vivia num ambiente no qual o preconceito e a recusa da diferença eram a norma: «Era 1930. Conhecia desse país apenas o que as pessoas contavam na época: ‘os negros são grandes crianças, felizmente estamos lá!’, etc. E desenhei os africanos de acordo com esses critérios, de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica». (mais…)

    Democracia, Memória

    Cascais’71

    Cascais 71

    Em novembro de 1971, o primeiro Festival de Jazz de Cascais («Newport na Europa») reuniu num programa excecional a nata da cena jazística mundial. Se for apreciador do género, para o confirmar basta que leia com atenção todas as linhas do cartaz acima reproduzido. No qual faltam aliás nomes também presentes mas que começavam apenas a carreira e por isso não eram destacados, como o contrabaixista Charlie Haden, a acompanhar então Ornette Coleman, e o pianista (na época apenas elétrico) Keith Jarrett, que tocava com um bastante irascível Miles Davis. Estive por lá, sim, comendo o pó de cimento de um pavilhão ainda em obras e bebendo cervejas estupidamente chocas. Mas, acima de tudo, encaixando momentos de beleza e exaltação cujos ecos continuam, garanto, a reverberar.

    Obrigado à A.S. por se ter lembrado de me avivar a memória quando deu de caras com isto.

      Etc., Memória, Música

      Syd (e os outros Floyd)

      Syd Barrett

      Tentando contrariar um injusto apagamento. A propósito da recente edição remasterizada da discografia dos Pink Floyd, revistas e suplementos alinham sínteses do trajeto de uma das bandas da música popular anglo-saxónica que mais venderam (e vendem), e que maior capacidade tiveram de conservar uma admiração que atravessa gerações. É fácil hoje encontrar homens de sessenta anos, trintões desgastados ou putos de doze que gostam dos Floyd, conhecem de memória uns quantos temas, e um dia tiveram, contra a vontade das mães, um poster deles numa parede do quarto. Em particular entre os que recordam a fase inaugurada com Dark Side of The Moon (1973), mais melódica e com maior impacto comercial, que é também a menos interessante. Os artigos da imprensa têm pois alinhado fotografias de Waters, Gilmour, Mason e Wright, não se esquecendo de evocar a dimensão dos megaconcertos e de contabilizar a magnitude das vendas. Só que tem sido praticamente ignorado o rico período criativo de 1964 a 1968, claramente menos previsível e dominado pela presença inovadora do guitarrista, vocalista e compositor Syd Barrett.

      Foram dele, de facto, os dois primeiros álbuns dos Floyd (The Piper At The Gates of Dawn e A Saucerful of Secrets), e foi ainda debaixo da influência psicadélica e ácida da sua música que foram compostos, já em 1969, os seguintes More e Ummagumma. Todavia, no ano anterior, enquanto a banda se tornava cada vez mais popular, a vida de estrada, o consumo de LSD e a propensão para a depressão tinham transtornado rapidamente o comportamento de Barrett, cada vez mais estranho e incapaz de comunicar com os companheiros e com o público que se juntava para os ouvir. Os restantes membros da banda decidiram então não levar mais Syd consigo para os concertos, substituindo-o por David Gilmour, principal responsável pela sonoridade açucarada de lead guitar que os Pink Floyd adotaram a partir dessa altura e que para as multidões se tornou aquela que reconhecem. Quanto a Syd, ainda editará em 1970 dois interessantes álbuns a solo (The Madcap Laughs e Barrett), afundando-se depois, apesar de pontualmente recordado por alguns dos sobreviventes da época, numa vida de apagamento, reclusão e doença. Morreu em Julho de 2006. Poucas semanas antes fora visto a deambular sozinho pelas ruas próximas da sua casa em Cambridge.

      [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=LNbcbh2JH_I[/youtube]
        Apontamentos, Biografias, Memória, Música

        Marcas geracionais

        Essa do «disco que marca uma geração» tem que se lhe diga. Como o próprio conceito de geração, que pode ser útil quando se olha o tempo de uma certa distância mas tem o inconveniente de fabricar generalizações, diluindo experiências singulares, caminhos que foram ínvios, vozes que fizeram o seu percurso em ziguezague. As referências que identificam a geração são, pois, flutuantes e de significado muito relativo, tendo só valor de referência. E muitas vezes a referência de uma geração representa algo de muito diferente para a seguinte. Um bom exemplo disto foi dado agora pela  evocação planetária, de forte teor nostálgico, do concerto ao vivo que resultou do reencontro de Paul Simon e Art Garfunkel no Central Park de Nova Iorque, ocorrido em 19 setembro de 1981. Lembro-me bem, muito bem mesmo, desse concerto, que vi pela televisão como tantos milhões de pessoas, para além das 500.000 que o viveram no local, e do enorme enfado que na altura me provocou. Nessa tarde a anoitecer, ouvindo versões um tanto espaventosas e já com um brilho algo artificial das canções sentimentais ou rebeldes que amara quinze anos antes – como «Mrs. Robinson», «America», «The Sounds of Silence» ou «50 Ways To Leave Your Lover» – percebi que a página de Simon and Garfunkel tinha sido voltada e que estava agora perante dois simpáticos vestígios dos bons velhos sixties. Que era melhor continuar a olhar à volta em vez de ficar paralisado a imaginar-me «Still Crazy After All These Years».

        S & G quinze anos antes, em 1966, quando interpretavam «I am a Rock» com outra energia:

        [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=ealhxti03pk[/youtube]
          Apontamentos, Memória, Música, Olhares

          Vapor

          [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=qmJdCpEPIWs[/youtube]

          Reconheço poucas experiências percorridas pelas quais sinta efetiva nostalgia. Aborrece-me andar às voltas e reviravoltas com o meu próprio passado, tentando reaver o irrecuperável, reencontrar a memória dos que se dissolveram ou transformaram noutras pessoas. Uso-o apenas como depósito ou armário de bibelôs, aos quais faço visitas espaçadas e esquivas. Apesar de ter mais tempo de vida vivida do que aquele que pressinto pela frente, não me apetece repetir-lhe os passos. Acontece-me muito mais, isso sim, deixar-me seduzir por épocas que não conheci, por espaços que não habitei, atravessados por causas nas quais gostaria de ter acreditado e pelas quais teria até (é fácil dizê-lo agora) sido capaz de dar a vida. Regresso então a catedrais de arquitetura desconhecida e a pessoas que nunca vi mas julgo conhecer.

          Existem, no entanto, exceções que procuro conservar. Uma das mais caras tem a ver com a memória persistente dos velhos comboios a vapor, nos quais, levado pelos adultos, ainda cheguei a viajar. Entre fumos e faúlhas, longos e obsidiantes silvos, intermináveis chiadeiras das engrenagens, cestos de vime com farnéis odoríferos, homens de chapéu e jaqueta espreitando das janelas da 3ª classe, matronas em traje dominical, longas e sonolentas esperas para o reabastecimento. Eram máquinas demasiado barulhentas que queimavam, sujavam, pintalgavam, poluíam, oscilando sobre carris estreitos e oleosos. Das quais sinto agora a falta porque me pareciam bonitas e inspiradoras. Porque me transportavam em inevitável devaneio, e ainda o fazem em reflexos, até um Faroeste infinito e a mil aventuras nas estepes da Ásia central.

          Vídeo: Last Train Home (Railway Version), com o Pat Metheny Group.

            Devaneios, Memória, Música, Olhares

            Isaac Babel e as canções desafinadas

            A reminiscência de Isaac Emmanuilovich Babel chegou-me através de um triplo reflexo. Primeiro aquele que deixava vislumbrar o escritor e jornalista combatente, antigo opositor ao czarismo e membro da primeira geração da intelligentsia bolchevique, que durante a guerra civil russa esteve com o Exército Vermelho como oficial, funcionário do comissariado da educação, tradutor e repórter. Depois, o que revelava ter ele sido um dos muitos intelectuais soviéticos, assumidos comunistas, brutalmente perseguidos durante as purgas lançadas por Estaline nos anos trinta. Finalmente, o que iluminava um vestígio do que poderia ter sido a aplicação do ideal revolucionário no campo da literatura e das artes se este não tivesse sido pervertido e transformado num mero instrumento de propaganda, numa correia de transmissão do modelo violento, centralista e despótico que foi tomando gradualmente conta do poder soviético.

            Filho de uma família de judeus ortodoxos, Babel nasceu em 1894 em Odessa, a atual cidade da Ucrânia que fizera parte do Império russo desde que fora erguida praticamente do nada no tempo de Catarina, a Grande, para se afirmar como um notável centro cosmopolita e multiétnico aberto, como ponte fronteiriça, a oriente e a ocidente. Em alguns contos com a cidade como centro reunidos em livro em 1931 mas escritos durante os anos vinte, o escritor testemunhou o princípio do fim desse mundo caleidoscópico e essencialmente tolerante um dia habitado por Puchkine e descrito com admiração por um Mark Twain de passagem. Num desses contos, o personagem Benya Krik, o rei brigão do gangue judaico que chegara a controlar parte da cidade, surge representado como os contornos fisionómicos e psicológicos do autor: alguém com «os óculos redondos no nariz e o outono na alma». Charles King, autor de uma recente biografia de Odessa, lembra Babel como «um homem de fronteira que passou a maior parte da sua curta vida movimentando-se entre mundos: o judaico e o russo, o czarista e o bolchevique, o militar e o artístico.» (mais…)

              Biografias, História, Memória

              Outubro como realidade imaginada

              Outubro
              Projeto de cartaz para o filme «Outubro» que foi rejeitado.

              A reconstrução do passado a partir de realidades imaginadas que se apoderam dos factos, alterando o seu eco e dando-lhes um novo sentido, é um expediente conhecido que podemos fazer regredir pelo menos até ao começo do tempo histórico. Muitos dos mais recuados textos escritos ocupavam-se justamente com o retrato ampliado, em regra delirante, dos atos de guerra levados acabo pelas populações das cidades sumérias e principalmente das iniciativas que se supunham assombrosas dos seus chefes, numa escala de grandeza que os historiadores reconhecem como ampliada e em muitos casos inventada. E, no entanto, durante séculos, os primeiros tempos da História que acompanharam a invenção da escrita foram descritos com base nessa informação adulterada, moldando de maneira imperfeita o entendimento que dela foram tendo sucessivas gerações. Um processo contínuo, aplicado de modo recorrente a diferentes tempos e lugares, projetado sobre um passado que passou a ser aquilo que dele se disse que foi e não aquilo que realmente foi. Afinal falamos de representações do real, que partem deste mas o transcendem, avançando em mil direções, algumas das quais verosímeis, apesar de mais ou menos devaneadas.

              Este processo foi particularmente ampliado pela interferência do cinema, uma vez que este não só mistura o real e a fantasia como os mostra a ambos combinados num simulacro de verdade. Enzo Traverso, o politólogo italiano que ensina em Amiens, recorda-nos um caso particularmente marcante, definindo um processo de moldagem do passado que condicionou de maneira profunda o modo de ver a história do mundo durante a maior parte do século XX, chegando até à parte deste que já percorremos. Traverso lembra Outubro, a obra-prima de Sergei Eisenstein, estreada em 1927 para comemorar os dez anos da tomada do poder pelos comunistas moscovitas. Nela um conjunto de acontecimentos, com particular destaque para a tomada do Palácio de Inverno pelas forças revolucionárias, é objeto de um cirurgia destinada a agigantá-los. E então o pequeno golpe de mão que levou os revolucionários a conquistarem simbolicamente a residência oficial do czar, naquele momento desocupada, metamorfoseou-se num insurreição de massas, diretamente dirigida pelo partido de Lenine, que não existiu, de modo algum, da forma ali «mostrada». No entanto, o filme ajudou a que a tomada de poder pelos bolcheviques tivesse passado a ser vista como uma epopeia e até uma jóia da arte militar com um significado universal. Apesar de Vladimir Antonov-Ovseyenko – que comandara o pelotão, voluntarioso mas pequeno e um tanto desordenado, que em 1917 entrou no Palácio e o ocupou – ter sido fuzilado em 1938 durante a fase mais brutal das purgas estalinistas. Lançadas, como se sabe, em nome da «defesa da Revolução de Outubro».

              Adenda: O filme completo (102’) pode ser visto aqui. Entretanto, se pedir nas livrarias (provavelmente terá de encomendar), ou diretamente à editora, ainda pode encontrar Outubro, um livro meu sobre o impacto simbólico da Revolução de 1917.

                História, Memória, Olhares

                11/9, dez anos depois

                O impacto histórico e político do 11/9 começou a ser averiguado logo no dia seguinte ao da combustão das Torres Gémeas. Como ocorre com toda a tentativa empírica de contextualização de acontecimentos recentes, foi acompanhado de observações argutas, interpretações cautelosas ou afirmações disparatadas. Nesta última direção, poucas semanas depois, em Amesterdão, Norman Mailer erguia a voz perante uma audiência arrebatada: «Tudo o que está errado na América conduziu à construção de uma Torre de Babel que, consequentemente, tinha de ser destruída». Desqualificou aliás o ataque, afirmando que este devia principalmente «ser visto como uma crítica». Van Houcke, um jornalista holandês, acrescentou então: «Os sem-abrigo, os destituídos de poder, os aterrorizados, as minorias, estão a usar o terror para ripostar.» O antiamericanismo mais cego, esse não tinha quaisquer dúvidas sobre quem eram os verdadeiros culpados: «estavam mesmo a pedi-las!»

                Com o tempo, no entanto, as explicações foram-se tornando menos precipitadas e simplistas, menos dependentes de fortes convicções e rancores de longa data, construindo-se gradualmente um legado documental e interpretativo rico e diversificado que é, para a década que se seguiu a um facto histórico de tal alcance, dos mais significativos que se conhecem. Em todo o caso, a generalidade das observações foi qualificando sempre o «choque» Ocidente-Islão como inevitável e potencialmente perigoso para a subsistência da paz, tendendo cada um dos «lados», apesar da diversidade das análises, a expurgar o outro da verdade e da razão. A imagem de uma «rua árabe» barbuda e ameaçadora, fundada no ódio e na violência, passou a dominar os média ocidentais, mas, de uma forma só aparentemente paradoxal, passou a dominar também a comunicação, rigidamente controlada pelas autoridades políticas e religiosas, que se fazia ouvir dentro dos próprios Estados islâmicos. E assim nos fomos mantendo até que, em dezembro de 2010, na Tunísia, a Revolução de Jasmim iniciou o rápido processo de transformação do mundo árabe com o qual convivemos.

                A partir desse mês, o islamismo mais intransigente e violento deixou de ser vivido e apresentado como uma tendência dominante e que não podia ser evitada. Como nota David Remnick na New Yorker desta semana, os acontecimentos no Norte de África e no Médio Oriente têm revelado a construção de uma alternativa poderosa aos governos ultra-autoritários e ao terror islamita. Há ainda pela frente enormes lutas a travar – lutas entre a modernidade, a democracia representativa, o fundamentalismo religioso, o tribalismo, aquilo que resta dos velhos regimes ou dos sonhos ainda mais antigos do «nacionalismo árabe» e do «socialismo islâmico» – e ninguém pode saber o que vai acontecer, mas o desaparecimento dos regimes de Ali, Mubarak ou Khadafi, talvez mesmo, num prazo um pouco mais dilatado, os de Assad, dos mullahs do Irão, ou mesmo da realeza saudita, deixa no ar um perfume de abertura, diversidade e esperança. Neste sentido, a visão catastrófica e sanguinária do papel do Islão aberta com o 11/9 tem vindo a ser pulverizada. Esta é, com toda a certeza, uma viragem de página numa História que nos habituámos a ver em movimento cada vez mais acelerado. Por isso o atual cenário é o melhor que poderíamos esperar para evocar de forma minimamente positiva o que de terrível aconteceu há dez anos.

                  Atualidade, História, Memória, Olhares

                  Memórias de um leitor #2

                  A Ilha do Tesouro

                  Em tradução de Alsácia Fontes Machado para a «Biblioteca dos Rapazes» da Portugália, foi este A Ilha do Tesouro o primeiro livro apenas com letras miúdas que me recordo de ter lido. Um Robert Louis Stevenson de capa mole desenhando o estereótipo do pirata e revelando – «só para mim», como eu imaginava, como esperava cada pequeno leitor – o mapa marcado com um X que todos insistimos em procurar.

                    Apontamentos, Memória, Séries

                    Com o fiel Kindle a caminho de Babadag

                    Babadag

                    Não serei suspeito de não gostar de livros. Afinal vivo deles. Procuro-os sempre, a todas as horas, e faço deles um elo vital na relação com os outros ou na procura de um sentido para morar no planeta. Tenho muitos milhares, tantos que lhes perdi a conta, que me tolhem o espaço doméstico sem que, no entanto, disso me queixe para além do razoável. E como cresci com o seu toque, os seus diferentes odores, o seu rumor, preciso deles para sentir que apesar de todo o mal nem tudo por cá é passageiro, bárbaro e triste. Mas sei que este é um ritual arcaico, de partida, e que em breve – uma brevidade relativa, embora fatal – os livros corpóreos serão memória, objeto de culto e sinal de anciania. Sei, sem a sombra da dúvida, que as bibliotecas serão transformadas em arquivos ao dispor dos eruditos e a generalidade dos leitores servir-se-á de suportes mais leves e móveis, mais fáceis de conservar, de arrumar, de armazenar, de consultar. É verdade que alguns dos aparelhos alternativos de leitura estão ainda na incubadora, mas a tendência é segura, irreversível e independente do desejo de quem o não deseja.

                    Comprei hoje mesmo na Amazon o meu centésimo livro para ler quase exclusivamente no Kindle – leio também em formato electrónico no computador de secretária, no netbook e no iPad, mas sei que estes são mais pesados, cansativos e dispersivos – e, estranhamente, muito estranhamente, pela primeira vez senti o forte desejo de terminar um certo volume em papel que tenho em mãos para rapidamente poder voltar ao prazer do pequeno ecrã de carateres em indelével e-ink. Espera-me ali, paciente, o número cem da minha biblioteca 2.0: On The Road to Babadag, um belo livro de Andrzej Stasiuk, o polaco escritor, jornalista, crítico e viajante, sobre trajetos por vias secundárias entre cidades pequenas, obscuras e moribundas da Europa do Leste ao longo das últimas duas décadas do século passado. E o prazer de, clique a clique, com uma chávena de café, um lápis e um papel (por enquanto) ao lado, lhe ir medindo os passos e revirando as páginas.

                      Atualidade, Cibercultura, Memória

                      Memórias de um leitor #1

                      Contraste

                      A capa do número de Agosto-Setembro de 1986 da interessante, (“pós-“)moderna e humorosa Contraste, dirigida por Miguel Portas, era assim. Na revista colaboravam também Guiomar Belo Marques, Joaquim Margarido, Luís Calhau, Rui Zink (criador desta capa), Paulo Varela Gomes, Henrique Cayatte e muitos outros. Custava 75 escudos.

                        Apontamentos, Memória, Séries

                        CCCP e a torre dos suicidas

                        Palácio dos Casamentos em Vilnius, Lituânia

                        CCCP – Cosmic Communist Constructions Photographies é um álbum da Taschen que nos mostra, fotografados por Frédéric Chaubin, noventa edifícios estatais da União Soviética erguidos sensivelmente entre 1970 e 1990. Logo após a revolução de Outubro, a construção destinada ao alojamento de serviços públicos tornou-se uma prioridade do Estado; tratava-se de conceber e de organizar em larga escala todo um universo arquitectónico incandescente, em condições de projectar as possibilidades utópicas que a nova ordem política pretendia dinamizar. Os anos vinte corresponderam, por isso, a uma fase exuberante de crescimento da arquitectura soviética, fortemente influenciada pelas concepções suprematistas (a explosão controlada de formas geométricas) e construtivistas (projecções selváticas, ângulos provocatórios). A ascensão da rigidez formal do período estalinista, contudo, poria fim a essa dimensão de ousadia, conformando-a aos cânones do realismo socialista e acentuando-lhe a funcionalidade política, enquanto instrumento de propaganda e de ostentação do poder. Gigantismo e previsibilidade caminharam então a par, durante as décadas de 1930-1940, dando lugar a construções geralmente insossas, cinzentas, hoje completamente desinteressantes do ponto de vista artístico. (mais…)

                          Artes, Cidades, Memória, Olhares

                          Atestado de pobreza

                          Atestado de pobreza
                          clique para ampliar

                          Talvez seja um reflexo condicionado pela interferência da memória num horizonte mais imediato, mas é-me difícil deixar de ligá-lo a um tempo no qual o «Estado social» ainda não tinha passado a representar «um peso». Quando sigo o conjunto de medidas paliativas do Plano de Emergência Social proposto pelo governo e as vejo muito mais fundadas numa lógica caritativa de apoio aos indigentes do que num processo digno e eficaz de recuperação dos cidadãos carenciados ou marginalizados pela via da qualificação e da reinserção, regresso àquele tempo no qual o limiar mínimo da sobrevivência estava – quando estava – assegurado pelo velho «atestado de pobreza». A nódoa vexatória, a marca de exclusão, está de regresso, em nome de uma resposta das «boas consciências» às necessidades mais elementares das pessoas, e estas são cada vez mais, que subsistem no limite.

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                            O troco da memória ofendida

                            memória

                            A partir de «Em Angola era o paraíso», um post da Isabela Figueiredo sobre o hate mail que lhe chega conectado com o Caderno de Memórias Coloniais, aterro num tema que se tem cruzado regularmente com o meu trabalho. Em grande parte por ser historiador e por nessa condição – ou na de crítico, ou na de cidadão opinante, que regularmente também exerço – me ocupar sobretudo de um tempo recente, próximo, ainda quente, testemunhado por muitas pessoas que, mais ou menos novas, permanecem vivas, confronto-as, e vejo-me confrontado porque eu mesmo fui parte do tempo que observo e do qual falo, com uma constatação que a todos perturba. É fácil identificá-la: quando alguém remexe no nosso passado, ou no passado que vivemos em colectivo, constrói dele uma descrição que jamais é a nossa. Enquanto passear pelo simples facto, pelo episódico, o problema não é grave, podendo até ajudar a recuperar fragmentos de memória perdida ou a corrigir certezas infundadas. No entanto, se passamos à fase de construção de uma narrativa razoavelmente complexa, coerente e documentada, tudo se torna muito difícil.

                            A partir dessa altura começamos a abalar a bela encenação, cheia de verdade e fantasia, que essas pessoas construíram – ou nós mesmo construímos – do passado do qual todos participámos e no qual, quase invariavelmente, na nossa épica rememoração desempenhámos, enquanto actores ou figurantes, um papel se não heróico pelo menos positivo. Ver despedaçar o romance que construímos a partir da nossa própria experiência, da vivência do que convencionámos terem sido os nosso melhores anos – e ver que nos escaparam muitas coisas, que nem sempre aconteceram como as recordamos, e ver que certas vezes andámos enganados, que só percebemos uma parte, que tudo foi muito mais complexo e provavelmente menos idílico – não cai assim muito bem em toda a gente. Quem se dedica a remexer nas vidas dos que ainda respiram sabe muito bem que não se pode dizer a alguém que aquele instante particular, para essas pessoas tão forte e tão importante, pode afinal não ter acontecido bem assim como elas têm a «absoluta certeza» que aconteceu. Pode não ter valido aquilo que elas hoje pensam ou precisam pensar que valeu. Pode ter acontecido de diferentes maneiras. Ou melhor: lá dizer, pode dizer, mas sujeita-se a levar com o troco da memória ofendida.

                              História, Memória, Olhares

                              Arqueologia

                              Do número 8 da revista Almanaque, saído em Maio de 1960: «A rapariga portuguesa não é normalmente muito alta. A altura média anda por 1,55 m. O peso é de 52 kg. A cor dos olhos e dos cabelos é castanha. Mede de peito 86 cm e de ancas 90.»

                                Apontamentos, Memória

                                Memória dos tempos que hão-de vir

                                T. Roszak

                                Quem se interesse por perceber o percurso dos velhos sixties, superando a visão nostálgica ou aquela que se lhe opõe, tomando-os como um desperdiçado tempo de desordem e retrocesso, ouviu por certo falar de um livro chamado The Making of a Counter-Culture, subintitulado Reflections on the Technocratic Society and Its Youthful Opposition, e que foi publicado logo em 1969, ainda os sons de Woodstock ressoavam vagamente pelos ares. Nesta obra, como tantas outras mais citada do que lida, o professor californiano Theodore Roszak abordou a origem americana, rapidamente alargada aos ambientes urbanos das sociedades dos países capitalistas avançados, da contracultura como ferramenta da ruptura e da contestação cultural, e como instrumento de rejeição da tirania imposta pelo sistema educativo e pela autoridade familiar produzidos pelo triunfo histórico do capitalismo. (mais…)

                                  História, Memória, Opinião

                                  O que aconteceu a Patty Hearst

                                  Patty Hearst

                                  Do arquivo dos meus blogues-antes-deste. Escrito em Outubro de 2005.

                                  Há cerca de três décadas, quando as correntes «de raiva e esperança» dos sessentas haviam suavizado já o furor, foram muitos os que desistiram dos planos para mudar o mundo a troco da aceitação silenciosa das regras conviviais do neoliberalismo. Só uns quantos obstinados procuravam ainda resistir-lhe. Portugal vivia na altura o transe da sua doméstica metamorfose, mas mais além, do lado de cá do Dniepre como da outra banda do Atlântico, cresciam ou radicalizavam-se os movimentos, autoproclamados como vanguardas, que se propunham inverter os ventos através da acção directa das minorias esclarecidas e activas. Mostrando-se como exemplo ou servindo de rastilho para o que acreditavam poder ser um retorno da acção redentora «das massas». Integravam a arquitectura de um terrorismo – à época selectivo, e quase benigno quando comparado com o que hoje conhecemos – que os governantes procuravam conter. E se não conquistavam grandes adesões, convocavam alguma simpatia da parte daqueles a quem o sistema imposto pelos vencedores da ressaca «sessentista» parecia realmente odioso. (mais…)

                                    História, Memória, Olhares

                                    Uma menina exemplar

                                    Na última crónica que enviou para o DN, pressentindo a morte já muito perto de si, Maria José Nogueira Pinto fez um balanço profundo da sua vida. De uma ponta a outra, nele consigo ver reflectido – eu que até nasci no mesmo ano que ela e me formei sensivelmente na mesma época e na mesma universidade – o avesso da minha própria vida, dos valores que fui adoptando, dos combates que resolvi travar, da ausência de fé que mantenho, das causas e da perspectiva do mundo que fiz e conservo minhas. E no entanto não consigo deixar de admirar o seu trajecto. Mas julgo que sei porquê. Porque o assumiu, com coerência e frontalidade, sem desvios e trejeitos ínvios adaptados às circunstâncias, na defesa de uma perspectiva do mundo, da vida, da pátria, da moral, da família, da fé, que fez seguir por onde lhe pareceu certo e não por onde seria mais conveniente e até mais fácil que seguisse. Porque aplicou o princípio, que agora mesmo lembrou, de acordo com o qual «uma vida boa não é uma boa vida». Pessoas assim são raras e, estejam lá elas em que família política estejam, sempre exemplares.

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