Arquivo de Categorias: Memória

«Memória inventada» e civilidade

Uma das consequências de ter uma vida razoavelmente longa e de (pelo menos por enquanto) conseguir reter alguma memória dela, consiste em ser capaz de identificar de maneira fácil os anacronismos. Claro que, em pessoas como eu, esta capacidade é apurado pela formação de historiador e, mais ainda, pela personalidade «picuinhas» que tenho desde que me conheço. Por isso me perturba um tanto quando encontro pessoas mais ou menos da minha idade que referem como memória sua, dada como certa, situações, realidades, práticas ou gostos que eu sei não serem exatamente daquele tempo e não poderem ter vivido. Vou dizer-lhes isso? Claro que não, ou raramente, até porque sei que, muitas das vezes, essa confusão resulta da chamada «memória inventada», ou «cumulativa», aquela que junta episódios vividos ou informações adquiridas em diferentes momentos e os combina num só. Trata-se de uma confusão natural e eu próprio, apesar da mania do rigor, já o fiz inadvertidamente. Mas confesso que me perturba escutar alguém a afirmar, a pés juntos, ter vivido experiências que sei de facto impossíveis, tendo eu a obrigação, por dever de civilidade e para que se não zangue comigo, de ficar calado.

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    Comunicar: o digressivo contra o linear

    Ao escrever ou ao falar, seja em público ou em privado, mas também ao ler e ao escutar os outros, sempre preferi o pensamento e a comunicação digressivos. Aqueles que se desviam frequentes vezes do tema principal, avançando até um assunto secundário, e integrando recorrentemente reflexões ou memórias pessoais, embora conservando sempre, para serem razoavelmente inteligíveis, a ligação temática fundamental. Assim foram também quase sempre as minhas aulas, tantas vezes, sem modéstia, oferecidas perante um número apreciável de alunos que dessa forma aprendiam e ao mesmo tempo se divertiam – os testemunhos positivos, felizmente, têm sido inúmeros ao longo do tempo -, embora reconheça que talvez exasperasse um tanto a minoria de «certinhos», «marrões» e criaturas menos ágeis no processo de compreensão.

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      25 de Novembro: o inventado e o verdadeiro

      A história, encarada como trajeto humano ao longo do tempo, ou então como forma de conhecimento analítico do passado, enfrenta sempre um paradoxo: ela parte de factos e de situações em boa parte objetivos, mas é ao mesmo tempo sujeita a interpretações, incluindo as realizadas pelos historiadores, com forte componente de subjetividade. É esta que conduz, lembrou Marc Ferro, à abundância das suas falsificações, levando também a interpretações opostas, assim como ao seu uso como instrumento dos poderes estabelecidos e como ferramenta para a manipulação das consciências. Podemos observar tudo isto perante a forma como, por estes dias, se recordou ou se celebrou, o que aconteceu em Portugal a 25 de novembro de 1975.

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        Coimbra: três bloqueios em tempo de autárquicas

        Uma das grandes conquistas do nosso regime democrático constitucional é a afirmação do poder autárquico. Sob a ditadura, além de não resultar de eleições livres e de estar fora do escrutínio público, quem o representava era escolhido pelo governo e controlado a partir da capital, detendo reduzida capacidade de decisão e orçamentos sempre curtos, dependentes da intervenção de figuras «da terra» com poder, dinheiro e ligações a quem mandava. Mesmo reconhecendo que, em democracia, o poder autárquico foi por vezes discricionário, de vistas curtas e pouco transparente, ele jamais deixou de conter uma importante dose de dedicação, criatividade e proximidade, capaz de trazer claras melhorias às populações, aos seus lugares e à sua vida.

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          Atualidade, Coimbra, Democracia, Memória, Opinião

          Um erro da PIDE (com um pouco de riso)

          Deparei hoje com um relatório da PIDE datado do ano de 1972 no qual um panfleto contra o regresso da Queima das Fitas que circulou em Coimbra em maio desse ano vinha com a sua autoria completamente trocada. Sei-o melhor que ninguém, pois foi o último que escrevi para os chamados «Núcleos Sindicais de Base», antes de ser internamente impedido de continuar a fazê-lo por a minha escrita ser acusada de «demasiado literária». Tratava-se de um grupo de estudantes filo-maoistas, na altura ainda muito poucos, dos quais fazia parte e fora um dos fundadores em Coimbra.

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            Apontamentos, Democracia, História, Memória

            A Oposição ao Estado Novo e «o Leste» cultural

            Em Portugal, a Guerra Fria teve como importante aspeto um anticomunismo visceral que acompanhou todo o trajeto do Estado Novo. Parte deste associava um mal incontornável à simples existência do que chamava «a Rússia» e dos outros regimes do «socialismo realmente existente», como estes se autodefiniam até 1989. Por um efeito de contraposição, muitos oposicionistas vislumbraram nesses territórios, em regra de forma acrítica, o seu desenho de sociedades perfeitas. Fruto deste olhar, ainda hoje muitos militantes e simpatizantes do PCP, a partir de uma visão acrítica, parcial e a-histórica, imaginam como ideal a realidade daqueles Estados através das décadas de existência que fecharam com a Queda do Muro de Berlim. Em particular a da «pátria dos sovietes», proclamada «o país do sol radioso», que iluminava o caminho a desbravar desejavelmente pela humanidade no seu todo.

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              Artes, Cinema, História, Memória

              «No prelo»

              Ao passar por um dos meus artigos académicos iniciais, publicado em 1982, deparei com a referência a um segundo volume de um título cujo primeiro tomo citei, indicando-o como estando «no prelo». Isto é, em fase de impressão tipográfica. Era ainda uma prática muito usual, a de fazer sair obras em dois volumes indicando que o segundo se encontrava nessas condições. Num grande número de vezes, porém, nem isso era verdadeiro: tratava-se apenas de uma intenção jamais cumprida. Costume também era alguém indicar um título seu, fosse de livro ou de artigo, que considerara a hipótese de publicar, como estando no tal inexistente «prelo». Tratava-se de uma forma artificial – talvez melhor: fraudulenta – de ampliar currículos pequenos ou inexistentes.

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                Memória, ignorância e inocência do mal

                Deparei no Facebook, num grupo sobre o passado da cidade de Coimbra, com esta fotografia, tirada em 25 de junho de 1939 no Campo das Salésias, quando ali a Académica venceu o Benfica por 3-1, conquistando pela primeira vez a Taça de Portugal. Todavia, o texto, razoavelmente longo, que acompanhava a imagem, conseguia a proeza de evocar o momento sem referir a bem visível saudação fascista que, no início do jogo, ambas as equipas fizeram de um modo unânime. Pior: quando uma pessoa atenta deixou nos comentários uma referência ao facto, foi sucedida por uma série de contra-comentários agressivos e ignaros, às dezenas, onde se diziam coisas como «era apenas uma saudação habitual na época» ou «naquele tempo as pessoas não se metiam em políticas» (sic).

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                  Não haverá uma guerra civil na América

                  Tenho encontrado por aí, em alguns artigos de opinião, embora escassos, mas principalmente em apontamentos e comentários das redes sociais, referências à eventualidade de os Estados Unidos da América caminharem a passos largos e muito rápidos para um guerra civil. Por vezes, este padrão de comentário disfarça um certo comprazimento, admito que algo inconsciente, mas presente nas entrelinhas, situado entre um «eles afinal merecem» e um «pode ser que assim o assunto se resolva». Não considerando agora o facto de as guerras civis serem as mais terríveis, mortíferas e traumáticas de todas as guerras, com um nível de destruição material e espiritual que raramente outras produzem, importa salientar que elas deixam nos povos um rastro de medo, pesadelo e sofrimento que, associado a desejos de vingança, se prolonga por gerações.

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                    Uma memória do sectarismo

                    Sem vontade de escrever uma autobiografia, incluo por vezes, em textos vários, alguns detalhes autobiográficos, tendo desde há anos o projeto de lembrar, sem nomes ou números de porta, momentos vivenciais sobre o sectarismo que dominou boa parte da oposição ao regime durante o período marcelista. Em particular no meio estudantil, onde uma vírgula num manifesto poderia bastar para criar cisões e alimentar inimizades entre pessoas de diferentes grupos maoistas, gente que se agrupava num dos trotskismos, e de todos ele em relação ao PCP. E vice-versa, claro, não sendo por acaso que Cunhal escreveu diatribes contra o «radicalismo pequeno-burguês de fachada socialista». Existem episódios deste conflito, de certa forma fratricida, que dariam um livro bem curioso, alguns associados a desconfianças ainda não superadas.

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                      Terremoto eleitoral, esquerda e resistência 

                      As últimas legislativas provocaram um terremoto no regime democrático. Jamais, desde as eleições para a Constituinte em Abril de 1975, o conjunto da esquerda obteve uma representação tão escassa no parlamento, tendo, além disso, desaparecido o tendencial bipartidarismo constante nos últimos cinquenta anos. Para além da acentuada perda do apoio eleitoral concedido aos partidos da área plural da esquerda, com a exceção do Livre, o mais significativo e perturbante foi, sem dúvida, o crescimento exponencial de uma extrema-direita fundada na rejeição dos valores essenciais do Portugal nascido com a Revolução dos Cravos. Mais preocupante ainda: o reconhecimento do ambiente que produziu esta situação e o inventário dos seus traços essenciais fazem temer que a nova ordem política não seja passageira.

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                        A mais bela idade e a lição de Nizan

                        Em murais do Facebook, como lugares onde tantas vezes se exprimem de uma forma bastante livre, e muitas vezes sincera, gostos próprios, sentimentos pessoais ou notas de teor autobiográfico, encontro muitas referências ao caráter «maravilhoso» e único da época que correspondeu essencialmente aos anos de juventude de quem o exprime. Na boca destas pessoas, consoante a idade, os anos cinquenta foram fantásticos, os sessenta incríveis, os setenta formidáveis, os oitenta espetaculares, os noventa soberbos, mas cada um deles «único». A mim, que passei por eles todos e de todos retenho memórias boas, outras más e quase todas razoavelmente complexas, não vejo nada de tão absoluto, parecendo-me esse limitado foco bastante redutor e tantas vezes falso.

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                          Os cem anos de Mário Soares e a social-democracia

                          Completam-se neste sábado, dia 7 de dezembro, cem anos sobre o nascimento de Mário Soares. Enquanto homem estruturalmente de esquerda, politicamente democrata e defensor constante do ideal de socialismo desde adolescente, e também na condição de pessoa com memória, sempre mantive, antes e depois do 25 de Abril, uma apreciação complexa e contraditória, embora atenta, daquele que foi uma das figuras-chave – a par de Afonso Costa, Salazar e Cunhal – para a compreensão do século XX português. Aliás, Soares foi também, e isto é um elogio, uma personalidade complexa e contraditória, dotada simultaneamente de pragmatismo, ousadia, inteligência e, sem dúvida, um amor enorme à democracia, mesmo quando num ou noutro momento agiu de uma forma autoritária. Era também homem com enorme bonomia e um grande sentido de humor, o que hoje tanta falta faz à generalidade dos nossos políticos. Discordei dele muitas vezes, mas jamais depreciando as suas escolhas e a sua personalidade. Tenho, por isso, noção da falta que nos faz.

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                            Biografias, Democracia, História, Memória, Olhares

                            Os incêndios, os incendiários e as televisões

                            Por razões sobretudo pessoais sou muito sensível ao drama anual dos incêndios florestais de verão. Nascido e criado na «Zona do Pinhal Interior Norte» – área que inclui 14 concelhos dos distritos de Coimbra e Leiria – recordo desde sempre o panorama regular destas calamidades e o medo que elas provocavam. Aconteceu mesmo, por duas vezes, ajudar no combate ao fogo, tendo numa delas chegado, juntamente com um pequeno grupo de populares, a ficar cercado pelas chamas. Uma memória inesquecível, como o é também a de exaustão absoluta, que nunca mais voltei a sentir, sentida após dois dias e duas noites sem dormir a combater o fogo.

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                              Talvez o fim do meu diário

                              Sou fiel leitor do Diário de Notícias desde os finais dos anos 50. Foi o meu avô paterno, seu correspondente e representante local, quem, antes ainda da primária, me ensinou a ler pelas então enormes páginas do jornal, transmitindo-me ao mesmo tempo esse vício da informação e sede de notícias que me acompanha até hoje. Tinha 5 anos e o avô Manuel gostava de me exibir aos amigos, como um macaquinho de bibe, lendo-lhes notícias inteiras. Que, obviamente, pouco ou nada compreendia.

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                                O 25 de Abril – ontem, hoje e amanhã

                                A data do 25 de Abril (escrito sempre com maiúscula) transporta consigo uma profunda carga simbólica. Não apenas por evocar o dia fundador da nossa democracia, mas por integrar também uma memória da longa e heróica resistência ao fascismo, da luta pela liberdade de viver e de opinar, do combate pela dignidade dos direito fundamentais e da esperança num país mais solidário e mais desenvolvido. A um ano de cumprir os seu quinquagésimo aniversário, permanece sem dúvida, para a maioria dos portugueses e das portuguesas, um momento fundamental de celebração e de identidade democrática.

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                                  Atualidade, Democracia, Direitos Humanos, Memória, Olhares

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                                  Em todas as sociedades ocorrem formas de sacralização que moldam as diferentes escolhas culturais e as relações sociais. Elas tendem a tornar sagrado e a transformar em objeto cerimonial e de culto aquilo que deveria, pois é essa a sua origem e também a sua finalidade, permanecer natural e essencialmente humano. Há mais de um século, a ideia de sagrado foi apresentada por Émile Durkheim como o oposto do profano, representando – ao contrário deste, que o sociólogo francês considerava um modo de intervenção do sujeito individual no mundo – um processo que afeta sobretudo a vida dos grupos, estabelecendo normas que forçam ou constrangem determinados comportamentos. Sirvo-me de dois curtos exemplos para abordar o processo e as suas perniciosas consequências.

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                                    Em ‘Para que serve a poesia hoje?’, Jean-Claude Pinson tenta responder a uma pergunta atual: «O que pode ainda a poesia, quando as suas ilusões líricas do passado recente (proporcionar uma vista desimpedida para o Absoluto, “mudar a vida”…) foram desacreditadas?» Com uma intensidade ampliada quando na ordem-do-dia se encontra a eliminação por decreto – e por organizado descrédito – do que se revela supérfluo, daquilo que não possui valor de uso nem serve para trocar por papel-moeda ou linha de crédito, não podendo aplicar-se a reduzir défices, a aferir «competências efectivas» ou a cumprir «objectivos estratégicos», importa olhá-la como território da clarividência e de resistência, não meramente onírico ou projetado para a evasão, que jamais deixou de ser, mas deve reassumir.

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