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Relógios cubanos

São poucas, seis ou sete, ou nem isso, as pessoas com as quais, ao longo da vida, verdadeiramente me incompatibilizei. Embora, quando já nada poderia fazer para voltar atrás, tenha concluído que em relação a duas ou três delas talvez fosse desejável que isso não tivesse acontecido. E que teria sido bom se essas pessoas pudessem ter sido trocadas por outras com quem tive forçosamente de conviver, embora a grande contragosto. Curioso é que alguns desses casos pessoais de desavença levada até à rutura se ficaram a dever a uma mesma razão, talvez incompreensível para quem considere apenas acessória a prática política: a posição de rejeição do regime cubano que a partir de certa altura, e apesar de respeitar a mensagem de esperança e utopia que um dia ele oferecera, comecei a manifestar. Não me zanguei com esses ex-amigos – ou eles não se zangaram comigo – por algum de nós ter chamado um nome feio ao outro. Zangámo-nos, na época, por causa de Fidel.

Aquilo que pode parece estranho a alguns, explica-se, no entanto, com uma relativa facilidade. Junto de uma grande parte das pessoas de quem fui ou sou próximo, pessoal ou politicamente próximo, a imagem do regime cubano, da sua realidade presente, e sobretudo do seu passado, permanecem ainda intocáveis. Mesmo junto daquelas que se viram desiludidas ou ficaram elucidadas com as experiências brutais do estalinismo e os trajetos falhados das últimas décadas do «socialismo real», Cuba permaneceu como o último dos santuários, associado a uma espécie de bem imanente que não deve nem pode ter um fim histórico e dar lugar a outra possibilidade. Ligada a uma experiência única, venerável mesmo quando se percebe, e há provas disso, que já não mobiliza e muito menos assombra.

Para compreendê-lo recuo no tempo que moldou a memória que partilhei, e ainda partilho, com essas pessoas. Quando os barbudos da Sierra Maestra tomaram o poder em Havana, já era vivo. Sabia ler, ou soletrar, o jornal que o meu avô me punha à frente todos os dias, e julgo que por causa desses momentos parte das minhas mais recônditas recordações políticas semligam à imagem daqueles homens e mulheres de porte jovem e desobediente, sublimes e diferentes para quem vivia num universo cor de cinza, ordeiro e aparentemente imutável. Anos depois, fui percebendo que aquelas imagens tinham participado de uma forma poderosa no modo como a minha personalidade foi sendo estruturada. Sei que algo de semelhante aconteceu com muita gente, mais ou menos da minha geração ou um pedaço mais velha, e um pouco por toda a parte: em Portugal, por toda a Europa, na América Latina ou até nos Estados Unidos. Falei disso com algumas, e ainda o faço de vez em quando, e li também alguma coisa sobre o assunto, como Cuba: Island of Dreams, um livro de Antoni Kapcia publicado em 2000, ou um óptimo estudo de Kepa Artaraz (de quem saiu, na Palgrave, Cuba and Western Intellectuals Since 1959).

Percebo, pois, que para muitos dos que vivem da fidelidade às causas e às convicções que os compuseram, e que pelas circunstâncias da vida não foram desenvolvendo uma capacidade de adaptação à novidade – o que não é necessariamente mau ou bom – reconhecer o falhanço e a desonra do caminho tomado pela Cuba «revolucionária» é qualquer coisa que custa a engolir. Mesmo quando se aceita que a condição de gratuitidade da saúde é importante, que a educação, apesar de não livre, é para todos – também o eram a saúde e a educação dirigida na generalidade dos países do leste europeu até à Queda do Muro de Berlim -, percebe-se, pois quem visite a ilha com os ouvidos abertos sabe que tal não chega para um número crescente de cubanos, que isso não basta para continuar a apontar Cuba como modelo. Ainda que possa bastar para uns quantos prosélitos continuarem a elogiar a caduca fortaleza que consideram um Eldorado e um modelo a seguir.

Custa sempre, de facto, descartar as marcas que pautaram os ideais de juventude, ou que nortearam toda uma vida, e foi isso que os tais dois ou três meus ex-amigos revelaram. Penso neles, nesses companheiros que perdi, furiosos com as minhas críticas à rigidez do regime de Havana, à repressão que instituiu, à violência que continua a exercer, após vai para seis décadas de vida, sobre os cidadãos que pensam por conta própria, nesta noite na qual se perfazem os 50 anos sobre a queda do ditador Batista e a bela vitória da revolução dos mal-fardados de verde-oliva. E tenho pena de que tenham parado os seus relógios algures num tempo que não volta. Num passado no qual, todavia, precisam dramaticamente confiar para continuarem a olhar-se ao espelho como gostam de se ver.

    Atualidade, História, Memória, Olhares

    Alexandre, o «Maior»

    Alexandre Nevsky

    Originalmente em Caminhos da Memória

    O concurso sobre «o maior russo de sempre», organizado pela televisão estatal da Rússia, revela alguns pormenores nos quais vale a pena reparar. As personalidades mais votadas foram, em primeiro, Alexandre Nevsky (o príncipe de Novgorod que no século XIII dirigiu a resistência dos russos diante dos cavaleiros teutónicos, conseguindo conservar o predomínio da fé ortodoxa, teve 11,7% dos votos), em segundo Piotr Stolipin (primeiro-ministro da Rússia a partir de 1906, assassinado em 1911, responsável por reformas económicas que procuraram estimular o mercado rural e pelo acentuar da repressão sobre as forças políticas anti-czaristas, juntou 11,6% dos votantes), e em terceiro lugar, com 11,5%, José Estaline, que dispensa apresentações (e serviu de modelo ao Alexandre Nevsky filmado por Eisenstein). Lenine ficou-se pelo sexto lugar, logo após o poeta Pushkin e o czar Pedro I, o Grande, e antes mesmo de Dostoievski e do generalíssimo Suvorov. A primeira mulher a aparecer na lista – ou melhor, a única referendável – é, como seria de esperar, Catarina, a Grande.

    Tal como já aqui escrevi quando do concurso que considerou António de Oliveira Salazar «o maior português de sempre», este tipo de certame é irrelevante enquanto «sondagem de opinião» e, a ter acontecido na Rússia algo de semelhante ao que ocorreu em Portugal – o que, admito, não posso agora provar -, a «eleição» poderá ter sido condicionada por um certo número de activistas que se desdobraram em iniciativas de apoio às diversas personalidades, perante uma larga maioria de cidadãos que olhava o episódio como mero divertimento. Não deixa, porém, de ser um sintoma sobre a existência de um caldo de cultura no qual a autoridade discricionária do Estado e o nacionalismo mais agressivo emergem com factores positivos, indicadores de uma «grandeza» que se acredita perdida mas regenerável (Medvedev e Putin não foram concorrentes, vale a pena lembrar). O episódio não terá a dimensão que os meios de comunicação, sempre desejosos de estrondo, sugerem, mas não deixa de ser um factor presente no terreno. Lá como cá, sempre um pouco preocupante.

      Atualidade, Cinema, História, Memória

      História há só uma?

      Goebbels, Hitler e Leni

      A frase vinha no Avante! em artigo não assinado: «Que em Portugal existiu uma ditadura fascista é um facto que muitos «historiadores» tentam, hoje, negar. Nas estantes das livrarias, abundam biografias do ditador Salazar e de inspectores da PIDE – sempre «neutras» e observando, sempre, o lado «humano» dos biografados.» Assim se retoma a tónica de deturpação e de má-fé na qual o PCP tem insistido a propósito do tema.

      Deturpação porque não é possível conhecer historiador algum – se se excluir uma ou outra figura que possa manter uma posição de proximidade política em relação ao defunto regime – que rejeite liminarmente a existência de um «fascismo português». Aquilo que se pode encontrar, isso sim, são investigadores que sustentam o facto do salazarismo e do Estado Novo, no seu tempo e no seu lugar, pouco terem a ver com a definição filosófica, política, sociológica e orgânica do fascismo italiano e das suas réplicas. E que, por esse motivo, preferem não o qualificar tecnicamente como um fascismo. Mas tal não significa o branqueamento dos delitos do regime ou uma percepção simpática da sua natureza. Se pessoas dessas existem com obra publicada e reconhecida academicamente, então palavra de honra que gostaria muito de saber quem são elas. Apenas por curiosidade.

      Existe também má-fé quando se fala de biografias que «abundam» de «inspectores» da PIDE quando se sabe que apenas uma foi editada, a biografia de Fernando Gouveia, da autoria de Irene Flunser Pimentel, e que em momento algum esta procede a uma qualquer lavagem pública do carácter e da intervenção profissional desse indivíduo. Meses após a sua publicação, continuar a afirmar tal coisa não é admissível a não ser com uma intenção pré-definida de denegrir, sem sequer o citar com clareza e propriedade, o trabalho de investigação da autora, uma vez que, entretanto, foi possível ler-se o livro e perceber-se que em momento algum nele se dá uma imagem agradável do pidesco torcionário.

      Detecta-se ainda na frase do jornal um pressuposto que se situa algures na fronteira entre o disparate e a ignorância. O processo de construção da história não é «puro» ou «apolítico», mas não é por isso que deve deixar de mostrar os aspectos do passado vivido que tem a possibilidade de documentar, assim desvendando a complexidade do mundo do qual se ocupa e a das pessoas que o fizeram. Calígula como Átila, Torquemada como Robespierre, Goebbels como Beria, não foram monstros alados, ou criaturas verdes com garras e chifres, mas seres, tão humanos quanto nós, que em determinadas circunstâncias puderam cometer actos terríveis, e a complexidade das suas vidas integra muitos momentos nos quais eles não se distinguiram dos outros humanos. Foi aliás através destes, e não por actos de mero desvario, que acederam ao poder. E é a compreensão dessa duplicidade que torna as suas personalidades ainda mais perturbantes. O denso retrato psicológico de Hitler feito por Alan Bullock, ou a exibição do lado folgazão do jovem Estaline que expõe a biografia de Simon Sebag Montefiore, não enunciam a adesão ou a aversão dos autores diante dos biografados: eles são antes esforços de compreensão de perfis e de circunstâncias. O Avante! poderá indicar algum historiador profissional, português ou alienígena, que negue publicamente o valor cultural e científico deste tipo de trabalho? Se sim, gostaria também de o conhecer.

        História, Opinião

        A luta final

        Quinta Monarquia

        Pela forma como procuraram um mundo diferente, assente sobre os escombros daquele que conheciam, talvez os adeptos da Quinta Monarquia tenham sido antepassados remotos dos jacobinos e dos bolcheviques. Em Inglaterra, durante as grandes agitações dos meados do século XVII, irromperam como o primeiro movimento milenarista organizado e com um programa político, inaugurando a tradição revolucionária moderna dos apóstolos armados e inflexíveis, resolvidos a tudo para consumarem um destino do qual acreditavam ser os únicos intérpretes. Igualitaristas, foram buscar ao profeta Daniel e ao Livro da Revelação – como mais tarde, embora de um modo mais subtil, entre nós o fará o Padre António Vieira –, a previsão de uma inversão abrupta, apocalíptica, da ordem existente, substituída por uma outra, de origem divina e verdadeiramente preocupada com a equidade humana. Capaz, como tantas vezes se acreditou em outros momentos de emergência de crenças quiliásticas, de materializar «um reino de mil anos». A nova ordem instituída passaria então pela aplicação de reivindicações básicas, destinadas, num mundo feroz e ainda sem a intervenção mediadora do Estado-Providência, a promover a «justiça»: a protecção pública dos pobres, das viúvas e dos órfãos, a redução dos impostos e o desaparecimento das taxas de circulação, a libertação daqueles que haviam sido presos por dívidas, uma reforma do governo que promovesse a igualdade na riqueza, a única que então era possível conceber. A esta seria possível chegar recorrendo à acção purificadora dos deserdados, consumada através de uma violência sem quartel. Numa vertigem de sangue e destruição praticada sobre todos os que sustentavam a desigualdade ou que perante ela se resignavam. O movimento foi derrotado, mas o essencial da ideia regeneradora e radical que alimentou não se extinguiu inteiramente. Como se pode verificar pelas notícias que nos chegam.

          Apontamentos, História

          Visão cubana

          Cubana

          O último número da Visão/História tem como tema «Cuba – 50 anos de Revolução». Trata-se de um conjunto de artigos, testemunhos e cronografias que conduzirá alguns leitores a uma revisitação da memória da tomada do poder pelos rebeldes da Sierra Maestra e dos anos inaugurais da sua experiência de poder. Para a maioria deles, porém, não produzirá esse efeito: servirá sobretudo de utensílio para se entender um pouco melhor uma das experiências colectivas mais importantes, controversas e perenes do último meio século.

          A revista tem algumas falhas, evidentemente. Desde logo a inexistência de um texto apologético do regime. E não seria difícil encontrar quem o escrevesse de boa vontade. Dado o magnetismo que a experiência cubana ainda conserva, ele deixaria perceber/ler uma perspectiva mais fideísta. Já o artigo sobre o Che é um tanto insípido, quase omitindo o seu lado autoritário, a importante dimensão carismática e o ascetismo insubmisso dos últimos tempos. E ficam por tratar as suas crescentes divergências com Fidel, que o regime de Havana faz por apagar. No entanto, em parte foram elas que levaram Ernesto Guevara a deixar Cuba a caminho do seu mandato internacionalista. O testemunho do ex-embaixador Alfredo Duarte Costa – lamentável no modo como enfatiza o trato cortês de El Comandante, que conheceu em privado, como sinal de que as críticas de que este tem sido alvo «pouco ou nada têm a ver com a realidade» –, nega até essa incompatibilização, dando como prova a sua carta formal de despedida e o testemunho-mantra da «viúva oficial». Para se perceberem melhor os limites desta «argumentação», bastará a leitura da biografia do Che escrita por Pierre Kalfon. Negativo é ainda o facto da repressão sistemática sobre a dissidência interna ser mencionada de forma demasiado suave.

          Estes reparos não são suficientes para anular o interesse da publicação. Para além de um reconhecimento útil de dilemas actuais, nela se ouve ainda, em diversos momentos, o eco da enorme e quase consensual simpatia com a qual, nos inícios da década de 1960, uma grande parte de elite intelectual e da juventude portuguesa da classe média olhava a revolução, empolgante e única, protagonizada pelos barbudos. No testemunho que prestou à revista, Nuno Teotónio Pereira evoca o modo como correram as coisas em 1963, no Congresso da União Internacional dos Arquitectos que teve lugar em Havana e ao qual assistiu. Não escondendo o entusiasmo que então se sentia no ar e que partilhou, recorda: «Regressei a Portugal sem fazer a barba. Até hoje.»

            Atualidade, História, Memória

            Por acaso

            O fim do Pacto
            «Revolucionários profissionais» segundo o Que Fazer? (1902), de V. I. Lenine: Gustav Husák (76 anos, ex-desempregado, funcionário do Partido Comunista da Checoslováquia), Todor Jivkov (78 anos, operário tipógrafo, funcionário do Partido Comunista Búlgaro), Erich Honecker (77 anos, operário da construção civil, funcionário do Partido Comunista Alemão), Mikhail Gorbachev (58 anos, licenciado em economia, funcionário do Partido Comunista da União Soviética), Nicolae Ceausescu (71 anos, operário sapateiro, funcionário do Partido Comunista Romeno), Wojciech Jaruzelski (66 anos, camponês, militar, funcionário do Partido Comunista Polaco) e Janos Kádár (77 anos, operário tipógrafo, funcionário do Partido Comunista Húngaro).

            Existem acasos curiosos. Lia no Expresso um artigo de José Pedro Castanheira sobre a eleição do novo Comité Central do Partido Comunista Português e a sua composição. Ali se referia que, dos seus actuais 158 membros, 100 são funcionários do partido, 6 são funcionários da JCP, e, dos restantes, a maioria tem ocupações como sindicalista a tempo inteiro, deputado ou autarca, mas antes de o serem foram também funcionários do PCP. Pouco depois, ao procurar uma matéria na Internet, dei de caras com a fotografia acima reproduzida, tirada em Bucareste a 7 de Julho de 1989, cerca de quatro meses antes da Queda do Muro de Berlim, durante a derradeira reunião dos chefes dos partidos e dos estados do Pacto de Varsóvia após a qual se tornaram irreversíveis «a destruição da URSS e as derrotas do socialismo no Leste da Europa» (in Teses do XVIII Congresso). E não pude deixar de reparar na composição social do grupo. Só o leitor poderá dizer se faz ou não algum sentido esboçar uma analogia entre os dois momentos.

            Adenda –  Não, não se trata de desvalorizar a inevitabilidade de funcionários desta natureza. Em democracia ou em ditadura, eles existem para cumprir profisionalmente determinadas tarefas. Mas sim de chamar a atenção para o estilo de «ligação à vida», comendo e respirando sempre o mesmo ar, que desenvolvem pessoas com vinte, trinta, cinquenta anos de casa como funcionários partidários ou sindicais. E o que isso provoca em partidos ou sindicatos nos quais a maioria esmagadora dos dirigentes se encontra nessa situação. Os da fotografia acabaram como se sabe.

              Atualidade, História, Memória

              Misturas

              Misturas

              Aquilo que pode surpreender num artigo publicado pelo American Journal of Human Genetics e referido hoje no suplemento P2 do Público não é o que anuncia, mas sim a amplitude dos números ali adiantados. Um estudo recentemente publicado por aquela revista científica revela que 30,4% dos homens portugueses traz inscrita na sua matriz genética uma origem sefardita (19,8%) ou magrebina (10,6%). A sul do Tejo, então, a percentagem sobe particularmente (36,3% de judeus e 16,1% de mouros), chegando a níveis que em toda a Península Ibérica apenas podem ser comparados, superando-os até, aos da Andaluzia. O que não deixa de ser uma ironia da história – já António José Saraiva o sublinhou quando descreveu a Inquisição como uma «fábrica de cristãos-novos» – é que a maior parte da miscigenação se produziu precisamente por intervenção do sempre atento «Tribunal do Santo Ofício». Quando, para escaparem à morte, à deportação ou ao confisco dos bens, numerosos judeus, e também muitos muçulmanos, foram constrangidos a converterem-se ou o fizeram por vontade própria. Somos, pois, ainda mais mestiços do que pensávamos. Sabe bem.

              Adenda – Sobre algumas confusões que circulam por aí a propósito do artigo invocado: 1) estamos a falar de herança genética e não de legado cultural; 2) o estudo foi feito apenas em homens, e não em mulheres, por razões que não cabe aqui explicar mas são explicadas no estudo; 3) este trabalho não refere a herança «negro-africana», a qual, entre outros particularismos, e salvo situações episódicas, se manteve quase residual até à década de 1980 do século passado.

                Apontamentos, Democracia, História

                Palavras perigosas

                Palavras

                O secretário-geral falou de «dimensão totalitária» ao pronunciar-se contra a lei dos partidos que impõe o voto secreto. Um conhecido militante, bloguista e comentador profissional de blogues, acusa-me algures de defender o totalitarismo ao depreciar não sei onde o significado do congresso comunista. As políticas autoritárias e autistas de Sócrates, essas todos os dias são chamadas de «fascizantes». Parece que no número 3 da Soeiro Pereira Gomes e na sua rede de sucursais ocorre neste momento um problema com as palavras. Ou não?

                No livro sobre Eichman, Hannah Arendt falou de uma «banalização do mal» para se referir à entrada do anti-semitismo no discurso do Estado e na esfera do público, produzindo as condições para uma normalização do Holocausto. O uso inapropriado de palavras que se referem a circunstâncias históricas e a tempos nos quais o humano e o monstruoso conviveram, desvirtuando a clareza do seu significado e atribuindo-lhes sentidos indeterminados e brumosos, pode sempre produzir um efeito análogo, trivializando o sinal de perigo que transportam nas entranhas. Podem ser ditas por ignorância ou má-fé, mas o efeito será o mesmo.

                  Atualidade, História, Opinião

                  Três notas sobre o Primeiro de Dezembro

                  Luanda - Restauradores

                  1. A maioria dos portugueses desconhece hoje a origem do feriado que, entre o passeio pelo maior centro comercial das imediações e uma multicultural caipirinha bebida à lareira, passa em família ou com os amigos, fazendo de contas que abre um pequeno parêntesis na crise. No entanto, a restauração do reino de Portugal em relação à «Coroa de Espanha», na qual se encontrava integrado desde o final trágico da aventura marroquina de D. Sebastião, e a Guerra da Aclamação que se lhe seguiu, representaram um ponto de viragem fulcral na definição da identidade política e cultural dessa pátria da qual se ouve ainda, nos estádios de futebol e nos desfiles militares, «a voz dos seus egrégios avós».

                  No dia 1 de Dezembro de 1640, porém, não ocorreu revolução alguma, como falseou durante décadas a historiografia salazarista. O que aconteceu não passou, de início, de um rápido putsch militar local contra a política centralista do Conde-Duque de Olivares: prendeu-se a vice-rainha Margarida de Sabóia, passou-se pelas armas o odiado Miguel de Vasconcelos e aclamou-se rei o duque de Bragança, enquanto a maior parte da nobreza e do alto clero se mantinha fiel a Madrid. Já decisivas foram depois as campanhas militares, prolongadas em diferentes fases, em território ibérico, entre 1640 e 1668, e alargadas ao combate pela manutenção do Império, principalmente no Brasil, em Angola e na Índia. Vinte e oito anos de guerra dura e custosa, no correr dos quais se foram autonomizando e desvinculando da influência espanhola – definindo-se, como nunca antes ocorrera, uma forte identidade antimadrilena -, a prática política, a actividade diplomática, a língua portuguesa, a literatura nacional, a organização militar, o discurso historiográfico e até a oratória sagrada.

                  2. Foi no cinema Restauração, em Luanda, que vi O Último Tango em Paris. A democracia tinha meses, e brancos, pretos e mulatos, homens e mulheres, velhos e crianças, acotovelavam-se em filas enormes por um bilhete para a «cena da manteiga» do primeiro «filme pornográfico» legalmente exibido. Corria o ano de 1975 e, ao que me disseram, era então novidade o encontro no foyer de pessoas cujo tom de pele, um ano antes, lhes teria interditado aquele espaço. O cinema Restauração hoje já não é cinema e mudou de nome. Chama-se Casa das Leis e tem servido de sede à Assembleia Nacional angolana. Mas todos os angolanos europeus que por lá passaram continuam a usar a denominação colonial. Eu próprio, anticolonialista que por sê-lo passei por duas «custódias», é assim que o recordo.

                  É difícil mudar os mapas que nos mostraram durante anos, por isso, para muitos, é difícil designar as cidades angolanas pelo nome legítimo actual. Luanda e Benguela continuam a ser Luanda e Benguela, e quase todas as pessoas sabem que o Huambo foi em tempos Nova Lisboa. Mas que dizer do Soyo, de Luena, de Saurimo, de Lubango, de Tombwa? Para muitos, não necessariamente obstinados colonialistas ou seus ressabiados descendentes, são ainda Santo António do Zaire, Luso, Henrique de Carvalho, Sá da Bandeira e Porto Alexandre. E, voltando ao início, como se chamará hoje a antiga Avenida dos Restauradores de Angola? Tenho a resposta: chama-se Rua do Congresso do MPLA, apesar de na rua toda a gente lhe chamar… Avenida dos Restauradores. Podem, todavia, encontrar-se sinais contraditórios: dizem-me que a Rua Karl Marx passou há algum tempo a Avenida de Portugal, o que sempre será indício de uma reconciliadora esperança de sabor pós-colonial.

                  3. O momento de mais um aniversário da Restauração da Independência serviu também para que pudesse começar a compreender um pouco melhor a política de alianças do PCP. Tendo em vista aquele que, presumo, possa ainda ser o seu interesse pela partilha de responsabilidades de poder. Após os ataques, durante este XVIII Congresso, à dimensão «social-democratizante» (sic) do Bloco de Esquerda e aos propósitos dos chamados «alegristas», marcados como uma espécie de quinta coluna destinada a desviar da linha justa o eleitorado que considerem ser naturalmente «seu», fiquei a ruminar sobre que espécie de forças imaginará o PCP poder ter como aliadas no combate – julgo que não meramente protestativo ou limitado à repetida «táctica da trincheira» -, por uma alternativa de governo. Para além, claro, da anuência instintiva dos organismos-criatura, um tanto ridículos e sem qualquer representatividade, como os chamados «Verdes» ou a Intervenção não-sei-o-quê (peço desculpa mas não consigo recordar agora o nome). Julgo ter resolvido a dúvida lendo hoje, no caderno P2, as palavras de simpatia do «senhor dom» Duarte de Bragança, descendente reconhecido do monarca restaurador e o nosso actual «reizinho», pelo carácter eminentemente patriótico do Partido Comunista Português.

                    Atualidade, História, Memória

                    Riso soviético

                    Caricatura do Krokodil, 1953

                    Contada ao longo de décadas nos países do «socialismo real», a anedota supostamente antisoviética que há dias aqui transcrevi acabou por servir de mote a uma cadeia que tem feito circular pela blogosfera portuguesa historietas de idêntico teor. Em casos isolados, elas activaram também o ressentimento de pessoas inaptas, nos momentos de transmissão do seu credo político vertidos sempre em solenes liturgias, para aceitarem a dimensão do humor e do nonsense como exercícios de ginástica da crítica e até da elevação da sua qualidade de vida. «Com certas coisas não se brinca» é um mote velho, velho de muitos séculos, que sempre exprimiu a primeira etapa da repressão do humor e da dimensão sardónica e crítica do riso. E o esquecimento da afirmação que Beaumarchais deixou n’O Barbeiro de Sevilha: «Faço por rir de tudo e de todos, com medo do dia em que for obrigado a chorar.»

                    Essa é também uma das marcas consistentes da ortodoxia marxista-leninista, com raízes históricas que pontuaram igualmente, ainda que com a integração de outros factores, uma parte significativa da ética vivencial que certos movimentos radicais – como os maoístas da linha dura, os adeptos do terrorismo urbano, os nacionalistas irredutíveis ou os fundamentalistas religiosos – recuperaram e desenvolveram. Tal como, aliás, é possível aferir ainda hoje pela análise dos seus padrões de discurso e pelo modelo de propaganda que alguns continuam a exibir. Pode dizer-se, sem grande margem de erro, que parte dessa recusa da dimensão lúdica da sociabilidade humana e da actividade política se radicou numa concepção da luta pelo poder como combate de extremos, em cujo contexto a utilização do riso enquanto instrumento de crítica interna poderia ser interpretada como atitude pusilânime ou de traição.

                    No campo comunista, a origem do trajecto pode ser examinada. Logo após a Revolução de Outubro, proliferaram, num ambiente de efervescência revolucionária, novas técnicas de agitação e de propaganda. Elas incluíram o uso instrumental do humor na crítica da velha sociedade mas também na detecção das contradições, erros e possibilidades da nova, que se acreditava estar em vias de ser erguida. Um bom exemplo desse ambiente pode ser dado pela obra de Mikhail Koltsov, comunista de origem judaica, membro o conselho editorial do Pravda e fundador de várias revistas satíricas, como a Krokodil, que se dedicava à sátira política e, entre outros alvos que usava no seu trabalho, escarnecia do oportunismo político de muitos intelectuais e quadros soviéticos. Em 1932, Koltsov abriria a sua intervenção no decurso do I Congresso dos Escritores Soviéticos contando uma anedota sobre os burocratas sindicais. A maioria dos delegados presentes riu-se, mas o gesto teve imediatamente vozes contra. Estas argumentaram que «zombar do Estado proletário por meio dos velhos dispositivos satíricos e, assim sendo, abalar-lhe os alicerces (…) é, no mínimo, uma insensatez e uma desconsideração.» Pouco tempo depois Koltsov partiria para Espanha, onde iria trabalhar como correspondente durante a Guerra Civil. De regresso, foi preso logo em 1938, no âmbito dos Processos de Moscovo, sendo executado dois anos depois.

                    Entretanto, o avanço da dogmatização, da colectivização da opinião, da censura e da imposição do pensamento único, iria deixando as suas marcas também neste domínio. A vitória naquele Congresso, instaurador formal dos princípios do Realismo Socialista, fora a dos adversários de Koltsov. Um tal Panteleimon Romanov, levantou-se após a sua intervenção e falou do futuro do riso sob a ditadura do proletariado: «Gostaria de exprimir o desejo de que, quando terminar o Plano Quinquenal, a necessidade de haver sátira tenha desaparecido da União Soviética, deixando apenas lugar para um humor de grande precisão, que é o das gargalhadas de júbilo.» Ao «homem novo» deveria assim corresponder um «humor positivo» que exprimisse «o riso dos vencedores, um riso tão refrescante quanto o exercício matinal, um riso evocado não pela zombaria do herói mas sim pela alegria por ele».

                    Um passo importante na construção de uma disjunção entre um «humor» oficial, público, que era essencialmente propaganda, e um humor oficioso, privado, por vezes rebelde, impossível de controlar apesar da censura e do trabalho incansável dos informadores da polícia, que pertencia ao domínio essencial da vida colectiva traduzido no recurso à sátira e mesmo à zombaria. No ambiente maniqueísta vivido sob a extensão da luta de classes a todos os campos do real, o humor informal, expresso através de anedotas do domínio da cultura popular, foi rapidamente empurrado para uma classificação como acto contra-revolucionário, equiparável ao boato. Milhares de pessoas foram presas, exiladas e até mortas por contarem essas anedotas ou por não denunciarem quem o fazia. São os herdeiros, conscientes ou não, do valor excludente desse «humor positivo», sempre sectário, que ainda hoje consideram intolerável a crítica do sistema soviético morto e enterrado ou a dos seus discípulos.

                    Termino com outra anedota, uma das mais antigas da história da URSS, que talvez possa ter uma receptividade mais unânime. Uma velha camponesa está de visita ao jardim zoológico de Moscovo, onde vê um camelo pela primeira vez na vida. «Oh, meu Deus», diz a velhota, «vejam só o que os bolcheviques fizeram àquele cavalo.»

                      Atualidade, História, Opinião

                      Aquela tatuagem no braço

                      Tatuagem

                      Versão de um texto publicado originalmente na revista LER

                      Pouco se tem escrito sobre aqueles cujos pais sobreviveram aos campos nazis de extermínio. As consequências pesadamente traumáticas para os próprios deportados são hoje bem conhecidas, mas a presença do seu eco junto dos descendentes mais directos tem permanecido silenciada. Este livro destaca treze testemunhos de filhos de judeus franceses sobreviventes de Auschwitz, todos eles nascidos pelos finais da década de 1940, que desafiados pela autora, a jornalista Nadine Vasseur, aceitaram comentar uma condição que os acompanhou a vida inteira mas da qual jamais haviam ousado falar publicamente.

                      Todos coincidem num aparente paradoxo: se, por um lado, a experiência-limite da deportação e da vida nos campos é intransmissível, dada a impossibilidade real de quem a recebe poder conceber sequer o sofrimento extremo e solitário dos que a conheceram directamente, por outro ela criou nestes uma capacidade de sobrevivência, e de resistência perante a adversidade, que os colocou acima daquelas exibidas pela maioria esmagadora dos humanos, tornando-os pessoas tão admiráveis quanto, obrigatoriamente, «difíceis» no trato diário. Esta dificuldade encontra-se patente em atitudes que jamais deixaram de perturbar aqueles que, na sua condição de filhos, com elas sempre tiveram de conviver: a descrença («ajuda-te a ti próprio, o céu não te ajudará»), a secura («podem ficar com o olhar húmido, mas não choram»), o silêncio («meteu a sua história dentro de uma caixa e pôs uma tampa»), mas também, e talvez acima de tudo, uma imensa capacidade para enaltecer «o imenso valor da vida», traduzida geralmente na pouca vontade de repisar um passado que preferiam manter no seu foro íntimo. Para além, naturalmente, do convívio com as sequelas de uma condição pós-traumática que os impelia a calarem-se.

                      Este volume mostra como foram afinal os seus filhos a transportarem parte substancial do fardo. Todavia, este processo de transmissão do trauma da Shoah não é aqui abordado a partir de uma perspectiva psicanalítica: a autora raramente suscita reminiscências, a não ser aquelas que qualquer pessoa colocaria perante narrativas tão extraordinárias como as que foi ouvindo durante o seu trabalho de recolha. Pelo contrário, vai dialogando com a singularidade de cada testemunho, com o seu carácter sempre perturbante, com a dificuldade sentida por cada um em falar de pormenores simples apenas na aparência, como a forte lembrança dos gritos dos pais em noites de pesadelo ou a visão «daquela tatuagem no braço, que sempre conheci».

                      Uma obra comovente, que contorna a actual «indústria do testemunho» sem desvalorizar a importância crucial da história oral para o esclarecimento do mundo contemporâneo. E que abre um novo caminho a todos quantos se importam com a salvaguarda da memória do totalitarismo nazi, com a luta contra a revisão negacionista da sua dimensão anti-humana e com o prolongamento conflitual do seu impacto no presente.

                      Nadine Vasseur, Eu Não Lhe Disse Que Estava a Escrever este Livro. Filhos de Sobreviventes do Holocausto Testemunham. Tradução de Lúcia Liba Mucznik. Pedra da Lua, 160 págs. ISBN: 978-989-8142-09-2

                        História, Memória

                        A minha homenagem ao XVIII Congresso

                        Pravda

                        Ao que me dizem, nos países do leste europeu a piada tem barbas. Ao ponto de já não se saber muito bem qual a sua origem. Checa? Polaca? Búlgara? Mas continua a funcionar muito bem. Principalmente junto dos e das imberbes. Os outros já só dizem «piada número 2376!», e todos riem.

                        O professor diz à aluna para escrever um texto intitulado «Porque adoro a União Soviética». A aluna vai para casa e pergunta ao pai: «Paizinho, porque é que adoras a União Soviética?»

                        «Não adoro, detesto», responde o pai.

                        A menina vai então ter com a mãe e depois com o irmão mais velho recebendo a mesma resposta de ambos.

                        Depois, já no seu quarto, começa a fazer os trabalhos de casa e escreve: «Adoro a União Soviética porque mais ninguém gosta dela…»

                        fonte

                          Atualidade, História, Olhares

                          Os nossos maos

                          Maos

                          Um excelente texto-síntese sobre a história do maoísmo em Portugal – autodesignado «marxismo-leninismo» num tempo em que a categoria não tinha ainda sido recuperada pelo PCP com a veemência com que o faz agora – é aquele que Miguel Cardina publica nos Caminhos da Memória. Como parte interessada – enquanto actor, testemunha e historiador – só posso mesmo recomendá-lo.

                            História, Memória

                            Entre Franco e Almodóvar

                            Por Espanha

                            Versão de uma nota de leitura publicada na LER de Outubro

                            Vinte e cinco anos durou o pacto del olvido, definido sem signatários, que fez com que o franquismo e a Guerra Civil fossem empurrados para dentro dos armários. Ao contrário do que aconteceu no Chile, na África do Sul ou na Argentina, em Espanha não se fizeram inquéritos, não existiram comissões da verdade, nem se procurou organizar a reconciliação. Os mecanismos repressivos não foram denunciados nem os seus responsáveis punidos, como aconteceu, ainda que de forma diferenciada, em Portugal, na Alemanha Oriental e na República Checa. Em larga medida, foram até alguns homens que haviam sido da confiança de Francisco Franco que decidiram, projectaram e controlaram a transição para a democracia. O preço a pagar por esta «paz podre» foi um silêncio que fez com que o corte com o passado tivesse sido mais aparente que real.

                            Giles Tremlett é jornalista e correspondente do Guardian em Madrid, onde vive há mais de vinte anos. O objectivo que traçou para este livro ambicioso foi o de apurar até que ponto o presente de um grande número de espanhóis se encontra ainda contaminado por fantasmas e ressentimentos impressos na consciência individual e na memória colectiva. Mas também o de constatar de que forma eles se têm esforçado para porem termo à amnésia generalizada, encarando-a de frente. Concebido como uma reportagem autónoma, cada capítulo avança por diferentes tempos, assuntos e problemas. Após uma importante introdução, na qual aborda o actual esforço de entendimento do passado, traduzido na aprovação da «lei da memória histórica», ocupa-se de assuntos tão diversos como as consequências da Guerra Civil e o peso da figura de Franco, a complexa trama do processo de transição para a democracia, as sequelas da explosão do turismo de massas na costa mediterrânica, a projecção cultural e social do flamenco, o papel da indústria do sexo e do mundo do futebol, o embate do terrorismo pós-11 de Março, os caminhos do feminismo em terra de machos, o impacto das ideias separatistas na Catalunha, na Galiza e no País Basco. No final, um capítulo sobre a «identidade espanhola» recorre a Pedro Almodóvar para enunciar um processo emergente de superação da velha Espanha franquista, substituída por um mundo exuberante e descomprometido que atribui escassa importância aos sinais do passado. Em todas as áreas, uma modernidade agressiva cruza as marcas do tempo, revelando uma sociedade complexa, que tanto se orgulha da sua própria história como é capaz de conviver bastante mal com o fardo que a anterior geração lhe deixou de herança. Os recentes desenvolvimentos em redor da releitura dos crimes da Guerra Civil confirmam a permanência desse clima de ambiguidade.

                            Giles Tremlett, Fantasmas de Espanha. Viagens pelo Presente Escondido de um País. Tradução de Maria Mendes. Alêtheia Editores, 572 p. ISBN: 978-989-622-107-2.

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                              Um rosto menos pálido

                              B. H. Obama

                              Aconteceu. É preciso olhar para os últimos cinquenta anos da história da América para se compreender o alcance e o impacto desta eleição excepcional, realmente histórica, de alguém que se chama Barack Hussein Obama. Regressar à luta destemida e de início quase isolada de Rose Parks, à força da esperança que Martin Luther King soube levantar, à raiva inevitável e irredutível de Malcom X, e depois seguir os caminhos do longo combate dos negros americanos, culpados no seu país por serem negros e no mundo por serem americanos. Nem que fosse apenas pelo fim vitorioso desse trajecto que esta eleição agora consagra, já teria valido a pena que ela tivesse terminado como terminou. Politicamente emancipado no seu próprio país, o negro americano vira-se agora para o mundo. A América mostra-nos finalmente um rosto menos pálido e um sorriso mais franco, brilhante, de outra cor. Aguardam-se as cenas dos próximos capítulos.

                                Atualidade, História, Olhares

                                O epitáfio de Studs

                                Actor, radialista, argumentista (colocado na lista negra durante o mccarthismo, o que será sempre uma boa referência) e historiador, Louis «Studs» Terkel acaba de morrer em Chicago, a sua cidade de adopção, aos 96 anos. Hard Times, uma história oral da Grande Depressão publicada em 1970, continua a ser uma obra-prima do género. Working, que teve como subtítulo People Talk About What They Do All Day and How They Feel About What They Do, e The Good War, onde enuncia a Segunda Grande Guerra como um raro tempo de solidariedade entre os americanos, são dois livros igualmente importantes deste homem dos sete instrumentos. «Curiosity did not kill this cat» é o epitáfio que um dia quis ter e que declara o ritmo de uma vida preenchida.

                                  Apontamentos, História

                                  Adeus, LM

                                  «Jogo Duplo», o concurso «do Malato» que passa na RTP1, teve hoje um momento de especial comoção para quem se interessa pelos inesperados movimentos de vaivém da memória colectiva. Trata-se, para quem não saiba do que estou a falar, de uma prova «de cultura geral», com formato de teste à americana, que requer dos concorrentes uma preparação mínima. Pelo menos algo mais, digamos, do que saber nomear a capital da Finlândia, designar qual o presidente norte-americano que foi assassinado em Dallas ou conhecer o símbolo químico da prata. E quem aparece por lá são pessoas com cursos médios ou superiores, uma vida profissional aparentemente estável, e de aspecto urbano e bem-tratado. Pois nesta sessão, se exceptuarmos o mais velho dos cinco concorrentes, nenhum dos outros quatro – com idades que oscilavam entre os 25 e os 37 anos – foi capaz de acertar no nome actual da cidade de Lourenço Marques. Sim, aquela que foi, entre 1898 e 1975, a bela capital colonial de Moçambique. As hipóteses colocadas foram Luanda, Pretória e, naturalmente, Maputo.

                                    História, Memória