Visão cubana

Cubana

O último número da Visão/História tem como tema «Cuba – 50 anos de Revolução». Trata-se de um conjunto de artigos, testemunhos e cronografias que conduzirá alguns leitores a uma revisitação da memória da tomada do poder pelos rebeldes da Sierra Maestra e dos anos inaugurais da sua experiência de poder. Para a maioria deles, porém, não produzirá esse efeito: servirá sobretudo de utensílio para se entender um pouco melhor uma das experiências colectivas mais importantes, controversas e perenes do último meio século.

A revista tem algumas falhas, evidentemente. Desde logo a inexistência de um texto apologético do regime. E não seria difícil encontrar quem o escrevesse de boa vontade. Dado o magnetismo que a experiência cubana ainda conserva, ele deixaria perceber/ler uma perspectiva mais fideísta. Já o artigo sobre o Che é um tanto insípido, quase omitindo o seu lado autoritário, a importante dimensão carismática e o ascetismo insubmisso dos últimos tempos. E ficam por tratar as suas crescentes divergências com Fidel, que o regime de Havana faz por apagar. No entanto, em parte foram elas que levaram Ernesto Guevara a deixar Cuba a caminho do seu mandato internacionalista. O testemunho do ex-embaixador Alfredo Duarte Costa – lamentável no modo como enfatiza o trato cortês de El Comandante, que conheceu em privado, como sinal de que as críticas de que este tem sido alvo «pouco ou nada têm a ver com a realidade» –, nega até essa incompatibilização, dando como prova a sua carta formal de despedida e o testemunho-mantra da «viúva oficial». Para se perceberem melhor os limites desta «argumentação», bastará a leitura da biografia do Che escrita por Pierre Kalfon. Negativo é ainda o facto da repressão sistemática sobre a dissidência interna ser mencionada de forma demasiado suave.

Estes reparos não são suficientes para anular o interesse da publicação. Para além de um reconhecimento útil de dilemas actuais, nela se ouve ainda, em diversos momentos, o eco da enorme e quase consensual simpatia com a qual, nos inícios da década de 1960, uma grande parte de elite intelectual e da juventude portuguesa da classe média olhava a revolução, empolgante e única, protagonizada pelos barbudos. No testemunho que prestou à revista, Nuno Teotónio Pereira evoca o modo como correram as coisas em 1963, no Congresso da União Internacional dos Arquitectos que teve lugar em Havana e ao qual assistiu. Não escondendo o entusiasmo que então se sentia no ar e que partilhou, recorda: «Regressei a Portugal sem fazer a barba. Até hoje.»

    Atualidade, História, Memória.