Quando foi publicado este pequeno livro de Tony Judt, o seu último, o destaque das notícias e da crítica centrou-se nas condições dramáticas em que foi escrito. Em 2008, três anos após a publicação do aplaudido Pós-Guerra, fora-lhe diagnosticada uma doença motora neurológica, incapacitante e irreversível, que rapidamente o iria fazer perder a mobilidade, a voz e por último a vida. Este seu derradeiro esforço reflexivo foi, por isso, produzido em condições particularmente difíceis e incomuns. No segundo capítulo, «Noite», saído originalmente em janeiro de 2010 – como a maioria dos textos que integram o volume na New York Review of Books –, fala da forma como as características da doença o foram deixando livre para contemplar, com um desconforto mínimo, o desenvolvimento catastrófico da sua própria destruição. Mas é o primeiro texto, que dará o título à obra, aquele que melhor caracteriza a sua intenção. Nele o historiador explica-nos o método de que se serviu, noite após noite de solidão e imobilidade, para, recorrendo aos mesmos artifícios mnemónicos utilizados pelos primeiros pensadores e viajantes modernos, revisitar, reorganizar e expor algumas das suas mais marcantes experiências. (mais…)
No início dos anos oitenta conheci alguns estudantes universitários de Praga integrados numa trupe de teatro em visita semioficial a Portugal. O contacto foi breve mas o suficiente para deixar uma impressão indesmentível: pelo menos na aparência todos eles eram anti-regime, «decadentes» filhos de Woodstock de cabelos desgrenhados e fanáticos do rock’n’roll, e, sem contradizerem o resto, seres humanos desdenhosamente anticapitalistas. Quer isto dizer, tão libertários e antiautoritários quanto se podia ser num país como o seu, ainda a esforçar-se por sobreviver debaixo da bota impiedosa do Pacto de Varsóvia. Mesmo que lá pelo meio viesse com toda a probabilidade algum inevitável agente da StB, a pouco amável polícia de Segurança do Estado, e aquela fosse gente «especial», como o é invariavelmente a que se movimenta nos meios das artes, a sua atitude constituía um sintoma. O contacto com aquelas pessoas revelava também, aos olhos de quem estivesse atento, aquilo que a rua checa havia mostrado já quando da Primavera de Praga e do seu violento epílogo marcado pela repressão e pela raiva impotente: que ali se tinha desenvolvido uma apreciável e dinâmica corrente social, para a qual a prepotência do Estado e a imposição do pensamento único se haviam tornado insuportáveis, produzindo uma forte e obsessiva vontade de os ver desaparecer do seu horizonte.
Essas foram as circunstâncias da afirmação como ativista e voz escutada de Václav Hável (1936-2011), o dramaturgo, poeta, ensaísta, amante de jazz, de rock e de Frank Zappa, ex-dissidente e político checo falecido na manhã deste último domingo. Conhecemos o seu percurso contado pelos amigos, anotado em referências autobiográficas e entrevistas, pelas páginas dos artigos e livros que escreveu, pelas fotografias noturnas tiradas em noites de boémia num país no qual estas eram um grave sinal de devassidão moral, de subversão e de «decadência capitalista». A participação na Carta 77, abrindo o processo de contestação do regime de partido único que haveria de culminar na «Revolução de Veludo», iria acabar por conduzi-lo a responsabilidades às quais, como repetidamente disse, jamais tivera a intenção de chegar. Estas metamorfosearam-no de «burguês reaccionário» em homme d’État, com dimensão simbólica e exigências diárias que acabaram por condicinar a sua evolução como artista. Coagindo-o até a tomadas de posição que noutras circunstâncias, provavelmente, teria assumido de outra forma. Mas esse foi o preço a pagar por quem, num dado momento, decidiu optar pelo enorme risco de passar das conjeturas filosóficas e das digressões literárias à gestão diária da política do factível. Nem todos temos a coragem, ou a vocação, de assumir tal escolha e de pagar por ela, oferecendo um pouco da nossa própria liberdade pela liberdade dos outros. Mas Václav Hável teve-a, tentando fazê-lo sem pôr em cheque o belo juízo que um dia anotara como seu: «Todo aquele que se leva demasiado a sério corre o risco de parecer ridículo; um risco que não corre quem desenvolva de forma consistente o hábito de rir de si próprio.» Os que o conheceram recordam como gostava imenso de o fazer.
A morte de Kim Jong-il está a servir ao governo norte-coreano para intensificar uma das características mais brutais do seu «socialismo dinástico»: o drama da escravidão dos corpos e das consciências imposto à generalidade dos cidadãos, sob o efeito da repressão, do treino, da propaganda, do preconceito e da ignorância de realidades alternativas. Do livro de Barbara Demick, A Longa Noite de um Povo (ed. Temas e Debates), que venceu em 2010 o Prémio Samuel Johnson e compila diversos testemunhos de cidadãos da Coreia do Norte que puderam passar a fronteira e escapar ao regime concentracionário de Pyongyang, retiro uma descrição de momentos que se seguiram, em 8 de julho de 1994, ao desaparecimento de Kim Il-sung, fundador do regime. O paralelismo com as cenas públicas de hoje é inevitável.
– Abogi, Abogi! – gemiam as velhas, empregando o título honorífico usado para uma pessoa se dirigir ao seu pai ou a Deus.
– Como pudeste deixar-nos assim de repente? – gritavam os homens por sua vez.
Os que esperavam na fila saltavam para cima e para baixo, batiam na cabeça, caíam em desfalecimentos teatrais, rasgavam as roupas e davam murros no ar, numa raiva inútil. Os homens choravam tão copiosamente como as mulheres.
A teatralidade da dor assumia um aspeto competitivo. Quem conseguia chorar mais alto? Quem estava mais perturbado? Os que prestavam o seu tributo eram incitados pelos noticiários televisivos, que transmitiam horas e horas de pessoas a prantear, homens adultos com lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, a baterem com a cabeça nas árvores, marinheiros a baterem com a cabeça nos mastros dos navios, pilotos a chorarem na cabina de pilotagem, e assim sucessivamente. Estas cenas eram intercaladas com imagens da trovoada e dos copiosos aguaceiros. Parecia o dia do Juízo Final. (mais…)
Abaixo-assinado da responsabilidade de um conjunto de historiadores.
A recente proposta do Governo de acabar com quatro feriados (dois religiosos e dois civis: o feriado do 1º de Dezembro e o do 5 de Outubro) merece da parte dos historiadores que subscrevem este documento uma clara oposição.
Em primeiro lugar, porque assenta numa evidente demagogia: ao contrário do que o Governo, pela mão do seu Ministro da Economia, vem atabalhoadamente explicar ao país, a produtividade e a competitividade da economia nacional não dependem em nada de essencial do número dos feriados em vigor. Países europeus ou fora da Europa com tantos ou mais feriados registam níveis de produtividade e competitividade muito superiores aos de Portugal, sendo que é precisamente nas economias mais competitivas e avançadas que se verifica um menor número médio de horas de trabalho. As razões são obviamente outras e bem mais profundas, tal como são outras as razões para atacar os feriados, em especial os que, como o 1 de Dezembro e o 5 de Outubro, são depositários de um elevado valor simbólico para a comunidade. (mais…)
De Horatio Nelson (1758-1805), o almirante britânico que derrotou a esquadra franco-espanhola na batalha de Trafalgar, apesar de nela haver perdido a vida – confirmando então uma supremacia da Royal Navy que haveria de manter-se por mais de cem anos – contam-se pelo menos três versões, alegadamente testemunhais, daquelas que terão sido as suas últimas palavras. De acordo com o cirurgião William Beatty, que o assistiu nas últimas horas, terá repetido insistentemente, até perder a consciência: «Thank God I have done my duty». Já Alexander Scott, o capelão do seu navio-almirante, assegurou que Nelson terá dito antes: «Drink, drink. Fan, fan. Rub, rub». Por fim, alguns dos presentes contaram em algumas ocasiões que, referindo-se a Thomas Hardy, capitão do Victory e seu grande amigo, terá exclamado: «Kiss me, Hardy!». Jamais se conhecerá a verdade, mas qualquer das variantes serve para ler de diferentes modos a biografia e a personalidade de Lord Nelson. Podemos assim optar por um dos desfechos e, em função dele, reescrever todo o enredo.
É recorrente o testemunho, transmitido por aqueles que sobreviveram ao Holocausto e puderam contar a experiência do horror, segundo o qual passada a Guerra quase ninguém aceitava escutá-los. Primo Levi transportou toda a restante vida esse fardo e, quando encontrou finalmente quem o quis ouvir, não se cansou de lembrá-lo. Este A Última Testemunha de Auschwitz, um relato de Denis Avey (n. 1919), antigo soldado do exército britânico que se bateu contra os alemães no Egito e na Líbia – e depois de capturado viveu o pesadelo do trabalho escravo nas instalações da IS Farben em Buna-Monowitz, anexas ao campo de Auschwitz-Birkenau –, é ilustrativo dessa realidade. Para além da dor legada pelo que viu e viveu, carregou quase até ao fim com a contrariedade de não encontrar quem aceitasse perder algum tempo com aquilo que tinha para contar. De tal forma que só depois dos noventa, e com a ajuda de Rob Broomby, um jornalista da BBC que soube da sua história, teve condições para falar do que presenciara e daquilo que os outros mereciam e deviam conhecer.
E, no entanto, a sua experiência foi provavelmente única. Não apenas pelo relato circunstanciado, a partir da perspetiva do militar não graduado, das dificuldades reais do combate nas campanhas do Norte de África contra as tropas de Rommel. Não apenas por nos fornecer um retrato muito menos benévolo do que aquela doado pela tradição cinematográfica das condições reais nas quais viveram acantonados os militares aliados capturados pela Wermacht. Mas, para além disso, por nos oferecer a experiência absolutamente singular de alguém que, pela sua própria iniciativa e risco, decidiu trocar de identidade com um prisioneiro judeu destinado ao extermínio. O objetivo foi vivenciar de forma direta, para poder passar para fora uma informação que muitos resistiam ainda a aceitar como válida, as condições sub-humanas em que vegetavam, a caminho da morte certa, os prisioneiros sinalizados com a estrela de David. O relato intenso das noites de pesadelo que passou deitado nos catres dos mortos-vivos, seus fugazes companheiros de martírio, preenchem algumas das páginas mais perturbantes que sobre esse inferno na Terra alguém foi capaz de escrever.
Denis Avey (com Rob Broomby), A Última Testemunha de Auschwitz. Trad. de Ana Glória Lucas. Clube do Autor. 320 págs. Publicado na revista LER de Novembro de 2011.
Só esta semana vi as três horas ininterruptas da Autobiografia de Nicolae Ceaucescu, o filme de Andrei Ujică, realizado em 2010, que explora a imagem do ditador romeno numa montagem que recorreu a mais de mil horas de películas, em grande parte não utilizadas pela propaganda, existentes nos depósitos da Televisão Nacional Romena e do Arquivo Nacional de Bucareste. A expectativa de assistir a um desfile documentado de crimes de Estado e de maquiavelismo prático frustrou-se em poucos minutos. Mas aquilo a que pude assistir não foi menos violento e de certa maneira penoso. Seguindo a voz e o olhar que são os do próprio Conducator, os da construção do seu universo pessoal ao longo de duas décadas e meia de autoridade incontestada, percebemos como é fácil fabricar uma versão completamente distorcida da realidade quando o poder absoluto, a interminável bajulação, a fantasmagoria de uma conceção unilateral do mundo e da história, afastam da realidade o dirigente que vive exclusivamente dentro das suas margens, projetando-o num abismo dourado do qual já não pode sair. E percebemos também a lógica ilógica da construção de um discurso dogmático e previsível, projetado como voz do povo e em nome do povo, ao mesmo tempo que o transforma numa amálgama de escravos empobrecidos e mudos. Um documentário que assusta e no entanto elucida.
Não estando por esse motivo impedido de compreender o enredo, talvez o leitor comum não tenha uma perceção completa do imenso trabalho da urdidura dos factos – e da verosimilhança das falas às quais recorrem os personagens – que antecedeu a escrita de O Epigrama de Estaline, o romance de Robert Littell, saído em 2009, que a Civilização acaba de editar. Mas quem conheça de perto a história da União Soviética nas primeiras quatro décadas da sua existência não pode deixar de sentir-se impressionado com o conhecimento que o autor demonstra desse tempo, desse universo humano e até do modo de falar (e, diria, de pensar) das personagens, espelhos de pessoas com uma existência comprovada, que são os narradores deste romance. Falo dos poetas Osip Mandelstam e Anna Akhmatova, de Nadezhda, a mulher de Osip, de Zinaida, amante ocasional, de um vacilante Boris Pasternak, de Nikolai Vlasik, guarda-costas pessoal de Estaline, e de Fikrit Shotman, um antigo campeão de levantamento de pesos. E, acima de todos eles, como um espetro omnipresente, do bigode desse «alpinista do Kremlin» que Mandesltam parodiou num poema clandestino, o epigrama mencionado no título, assim assinando o seu destino de prisão, tortura, desterro e morte. Littell é, de facto, um profundo conhecedor da realidade e do passado da Rússia, e só isso lhe permitiu, apesar de nascido em Brooklyn, transformar este romance num quase-documento sobre a coação e o medo, e também a presença da traição, que comprovadamente percorreram a terra soviética nesses anos trinta espoliados e enegrecidos pelo Grande Terror. Triturando, inevitavelmente, Osip. Afinal o que seria de esperar do destino de quem, em pleno ano de 37, escreveu: «Se as pessoas não falarem comigo, / (…)Se me tratarem como a um animal, / Se me atirarem o comer pró chão –, / A dor não amordaço, não me calo (…)». Sim, este é um excelente e inquietante romance.
Duas das mais difundidas fotografias de Charles De Gaulle (1890-1970) ilustram de forma sinóptica o essencial do seu legado como homem público com um lugar central na História da França e da Europa. A primeira foi obtida a 18 de junho de 1940, nos estúdios da BBC, no momento em que a partir de Londres exortava os franceses a resistirem aos ocupantes nazis e aos colaboracionistas de Vichy. A outra apanhou-o em 1970, quase no final da vida, quando já sem qualquer cargo passeava com a mulher, Yvonne, pela propriedade-refúgio de Colombey-les-Deux-Églises. Entre o momento da empolgada coragem e o da retirada amarga e sem glória tinham decorrido apenas três décadas, suficientes, no entanto, para fazerem do general uma figura decisiva do segundo pós-guerra. Escrita por Éric Roussel, jornalista do Figaro, esta biografia evoca no entanto um De Gaulle peculiar, reescrevendo certos momentos do seu trajeto e juntando-lhe outros, por ter sido possível ao autor aceder a arquivos entretanto abertos onde encontrou entrevistas, declarações, citações e confidências menos conhecidas ou de todo ignoradas. (mais…)
Autor de diversos trabalhos no campo da teoria social e da sociologia histórica, Michael Mann serviu-se dessa experiência para abordar o fascismo de uma forma pouco habitual. Desde logo, fazendo uma aproximação sistémica e comparativa a situações e a movimentos mais habitualmente estudados experiência a experiência, país a país. Depois, dando uma importância maior às circunstâncias, em detrimento da centralidade normalmente atribuída aos factos de natureza política. E, por fim, como resultado desses dois primeiros aspetos, insistindo no lugar decisivo das pessoas, das suas aspirações e das suas propostas. Deixando, ao mesmo tempo, a dimensão mais propriamente orgânica e institucional num segundo plano. O que lhe importa é, afinal, menos a conservação do poder do que a preparação da sua conquista, sendo esta que em Fascistas (Edições 70) se propôs observar, compreender e revelar-nos. A estrutura da obra, saída originalmente em 2004, é entretanto razoavelmente simples: um capítulo de natureza metodológica no qual se justificam as escolhas e se passa em revista a produção académica e a teoria geral do fascismo; outro sobre a emergência dos movimentos fascistas no seu contexto histórico, aproveitando para construir uma tipologia das correntes europeias de natureza autoritária; e mais sete dedicados a seis Estados no interior dos quais a corrente pôde impor-se como dominante, tomando e conservando o poder (Itália, Alemanha, Áustria, Hungria, Roménia e Espanha). (mais…)
Um quadro de A Lição de Salazar para turistas britânicos de passagem pelo Hotel Palácio do Estoril pelos inícios dos anos cinquenta? Não, não, trata-se antes de uma página de um manual de aprendizagem de inglês – oficial, naturalmente, como o eram todos também por aquelas bandas – publicado na União Soviética pela mesma época. Mais informação e imagens aqui.
Kazimir Malevich, «A Cavalaria Vermelha» (1928-1932). Em 1929, acusado de «subjectivismo» na imprensa, Malevich foi expulso das funções que ocupava, preso e torturado. Morreu só e na miséria em 1935.
Tradução de um artigo de Julia Luzán publicado na secção de arte do El País Semanal de 16 de Outubro de 2011. Sobre a exposição La Caballería Roja. Creación y poder en la Rusia soviética de 1917 a 1945. Se for a Madrid até 8 de janeiro poderá vê-la no Centro Cultural La Casa Encendida. Informação detalhada a obter aqui. E pode clicar aqui para obter o programa em pdf.
Outubro de 1917. Ano zero de uma nova era. A revolução russa triunfara e o mundo inteiro assistia, entre o entusiasmado e o temeroso, ao nascimento de um Estado que saudava um novo tipo de homem, um novo humanismo. Lenine estava no vértice, velando sempre, apesar dos acontecimentos se sucederem a uma velocidade estonteante. Os bolcheviques começavam a escrever a sua parte da História e era necessário dotá-la de símbolos, de imagens, de palavras. Os artistas, «engenheiros da alma», como os batizaria Estaline, meteram as mãos à obra enchendo a nova Rússia de ciência, técnica, livros e arte. (mais…)
De regresso à perceção partilhada por muitos, menos pelos mais austeros taxionomistas do género literário, de que todo o romance é autobiográfico. Mas sem querer desviar a conversa, talvez se possa dizer também que todo processo de leitura de um romance confronta aqui ou além a biografia de quem com cuidado o vai lendo. Uma vez mais, é isto que acontece com O Retorno, o grande romance de Dulce Maria Cardoso (n. 1964) que a Tinta-da-China acaba de publicar. E o que se passa também com a forma como o fui seguindo. Vamos por partes.
A autora foi, é, e já vai sendo tempo de não ter medo de usar a palavra que ainda há menos de vinte anos era uma mancha infamante para quem a arrastava, uma retornada de Angola. Fala bastante neste seu quarto romance dessa experiência, difícil e dolorosa nem será preciso dizê-lo – ou talvez seja –, como deixa claro na longa entrevista que deu à revista LER de Outubro. Conta também aí, sem rodeios, como esse lado da vida pessoal confluiu abertamente com o processo de inventiva e de escrita do livro agora publicado. Rui, o narrador, é a outra face, masculina por artifício, da escritora. Se todo o trabalho de escrita romanesca supõe, como é sabido, estudo, caminhada e engenho criativo, encontra-se aqui também, visivelmente, um trabalho tenaz de rememoração. Da vida africana que ficou para trás, sem dúvida, mas principalmente do trajeto longo, incompreendido, guetizado, daqueles que regressaram – muitos sem jamais terem saído de África antes da ponte aérea – para longos anos de silêncio, apagamento, humilhação, pesadelos e luta pela vida. A saga africana e lusíada dos seiscentos milhares de retornados, iniciada nos anos passados no outro hemisfério, não pode ser mantida na penumbra, os seus protagonistas não podem riscar o passado de lá e de cá, e livros como este de Dulce Maria Cardoso ajudam-nos a cumprir a tarefa ingente e urgente da reexposição à luz. Pois só quando esta estiver concluída, os naturais de Portugal, e os dos estados africanos com quem Portugal partilhou parte substancial da sua história, poderão viver sem o peso da incompreensão, do remorso e, o mais difícil de perder, do ressentimento.
E agora a parte do leitor que se sentiu um pouco biografado. Saibam que nestas linhas estou aparentemente do lado dos maus: «Os soldados portugueses já quase não passam por aqui e os poucos que vemos têm os cabelos compridos e as fardas desleixadas, os botões das camisas desapertados e os atacadores das botas por atar. Derrapam os jipes nas curvas e bebem Cucas como se estivessem de férias. Para o pai os soldados portugueses são uns traidores reles (…).» Percorri a alta velocidade a Luanda sobreaquecida de 75, acompanhando como militar a transferência de poder e a partida desordenada de muitos colonos brancos, em parte empurrados pelo medo e pelo desentendimento da mudança, em parte pelo que pensavam ser (ou era de facto) a ausência de alternativas para a fantasiada utopia na qual habitavam. Vistoriei-lhes as malas, os contentores, levei crianças de colo ao avião, passei-lhes pelas casas abandonadas com camas, toalhas e fotografias de família devassadas, fumei sentado nos seus sofás, servi-me sem medo dos seus automóveis deixados ao abandono. Depois, na metrópole, fui ainda dos muitos portugueses – tantos deles anticolonialistas de última hora – para quem aquelas pessoas não passavam de figuras um tanto exóticas, difíceis de entender, e que era melhor não olhar de frente. Com quem era até preferível não conversar porque tresandavam a antigamente e falavam do que não importava falar. Gente cujo passado colonial deveria ser depurado de um crime indizível que de tão escabroso e indesculpável não merecia ser sequer apreciado. E cujos traços, marcas, experiências, deveriam ser definitivamente apagados. Mas não o foram e agora estão aqui, num rumor, pendurados nas nossas mãos. Contrariando os versos da cubana Dulce María Loynaz que esta outra Dulce Maria destaca na página final: «Las cosas que se mueren/no se deben tocar».
Dulce Maria Cardoso, O Retorno. Tinta-da-China. 272 págs.
O título do livro explica-se de forma simples, embora brutal: estima-se que ao longo dos últimos cem anos cerca de 150 milhões de pessoas foram vítimas de iniciativas persistentes de extermínio, responsáveis, no seu conjunto, pela duplicação do número de mortos em combate contabilizados em todas as guerras que tiveram lugar no mesmo período. A tese central de Daniel J. Goldhagen apoia-se nesta contabilidade avassaladora para mostrar que ela não dependeu de acasos, de circunstâncias, ou da iniciativa isolada de dirigentes transfigurados em serial killers, mas antes de escolhas políticas apoiadas num razoável ou mesmo num amplo consenso social. A ideia já se encontrava, aliás, presente numa obra anterior deste cientista político americano, motivo pelo qual foi objeto de feroz crítica: em Hitler’s Willing Executioners, saída em 1996, considerava que a busca da Solução Final determinada pelos nazis apenas fora possível com a cumplicidade, ou pelo menos a complacência, das pessoas comuns, alemães e aliados de outras nacionalidades, sem os quais os burocratas e os destacamentos especiais do Terceiro Reich não poderiam ter levado a cabo de modo tão eficaz o seu trabalho sujo. A obra foi, aliás, criticada por historiadores como Norman Finkelstein, que acusou o seu autor – sendo ambos, acusador e acusado, filhos de sobreviventes do Holocausto – de justificar com a sua explicação a criação de uma «indústria do Holocausto» de orientação sionista. (mais…)
A reminiscência de Isaac Emmanuilovich Babel chegou-me através de um triplo reflexo. Primeiro aquele que deixava vislumbrar o escritor e jornalista combatente, antigo opositor ao czarismo e membro da primeira geração da intelligentsia bolchevique, que durante a guerra civil russa esteve com o Exército Vermelho como oficial, funcionário do comissariado da educação, tradutor e repórter. Depois, o que revelava ter ele sido um dos muitos intelectuais soviéticos, assumidos comunistas, brutalmente perseguidos durante as purgas lançadas por Estaline nos anos trinta. Finalmente, o que iluminava um vestígio do que poderia ter sido a aplicação do ideal revolucionário no campo da literatura e das artes se este não tivesse sido pervertido e transformado num mero instrumento de propaganda, numa correia de transmissão do modelo violento, centralista e despótico que foi tomando gradualmente conta do poder soviético.
Filho de uma família de judeus ortodoxos, Babel nasceu em 1894 em Odessa, a atual cidade da Ucrânia que fizera parte do Império russo desde que fora erguida praticamente do nada no tempo de Catarina, a Grande, para se afirmar como um notável centro cosmopolita e multiétnico aberto, como ponte fronteiriça, a oriente e a ocidente. Em alguns contos com a cidade como centro reunidos em livro em 1931 mas escritos durante os anos vinte, o escritor testemunhou o princípio do fim desse mundo caleidoscópico e essencialmente tolerante um dia habitado por Puchkine e descrito com admiração por um Mark Twain de passagem. Num desses contos, o personagem Benya Krik, o rei brigão do gangue judaico que chegara a controlar parte da cidade, surge representado como os contornos fisionómicos e psicológicos do autor: alguém com «os óculos redondos no nariz e o outono na alma». Charles King, autor de uma recente biografia de Odessa, lembra Babel como «um homem de fronteira que passou a maior parte da sua curta vida movimentando-se entre mundos: o judaico e o russo, o czarista e o bolchevique, o militar e o artístico.» (mais…)
Projeto de cartaz para o filme «Outubro» que foi rejeitado.
A reconstrução do passado a partir de realidades imaginadas que se apoderam dos factos, alterando o seu eco e dando-lhes um novo sentido, é um expediente conhecido que podemos fazer regredir pelo menos até ao começo do tempo histórico. Muitos dos mais recuados textos escritos ocupavam-se justamente com o retrato ampliado, em regra delirante, dos atos de guerra levados acabo pelas populações das cidades sumérias e principalmente das iniciativas que se supunham assombrosas dos seus chefes, numa escala de grandeza que os historiadores reconhecem como ampliada e em muitos casos inventada. E, no entanto, durante séculos, os primeiros tempos da História que acompanharam a invenção da escrita foram descritos com base nessa informação adulterada, moldando de maneira imperfeita o entendimento que dela foram tendo sucessivas gerações. Um processo contínuo, aplicado de modo recorrente a diferentes tempos e lugares, projetado sobre um passado que passou a ser aquilo que dele se disse que foi e não aquilo que realmente foi. Afinal falamos de representações do real, que partem deste mas o transcendem, avançando em mil direções, algumas das quais verosímeis, apesar de mais ou menos devaneadas.
Este processo foi particularmente ampliado pela interferência do cinema, uma vez que este não só mistura o real e a fantasia como os mostra a ambos combinados num simulacro de verdade. Enzo Traverso, o politólogo italiano que ensina em Amiens, recorda-nos um caso particularmente marcante, definindo um processo de moldagem do passado que condicionou de maneira profunda o modo de ver a história do mundo durante a maior parte do século XX, chegando até à parte deste que já percorremos. Traverso lembra Outubro, a obra-prima de Sergei Eisenstein, estreada em 1927 para comemorar os dez anos da tomada do poder pelos comunistas moscovitas. Nela um conjunto de acontecimentos, com particular destaque para a tomada do Palácio de Inverno pelas forças revolucionárias, é objeto de um cirurgia destinada a agigantá-los. E então o pequeno golpe de mão que levou os revolucionários a conquistarem simbolicamente a residência oficial do czar, naquele momento desocupada, metamorfoseou-se num insurreição de massas, diretamente dirigida pelo partido de Lenine, que não existiu, de modo algum, da forma ali «mostrada». No entanto, o filme ajudou a que a tomada de poder pelos bolcheviques tivesse passado a ser vista como uma epopeia e até uma jóia da arte militar com um significado universal. Apesar de Vladimir Antonov-Ovseyenko – que comandara o pelotão, voluntarioso mas pequeno e um tanto desordenado, que em 1917 entrou no Palácio e o ocupou – ter sido fuzilado em 1938 durante a fase mais brutal das purgas estalinistas. Lançadas, como se sabe, em nome da «defesa da Revolução de Outubro».
Adenda: O filme completo (102’) pode ser visto aqui. Entretanto, se pedir nas livrarias (provavelmente terá de encomendar), ou diretamente à editora, ainda pode encontrar Outubro, um livro meu sobre o impacto simbólico da Revolução de 1917.
O impacto histórico e político do 11/9 começou a ser averiguado logo no dia seguinte ao da combustão das Torres Gémeas. Como ocorre com toda a tentativa empírica de contextualização de acontecimentos recentes, foi acompanhado de observações argutas, interpretações cautelosas ou afirmações disparatadas. Nesta última direção, poucas semanas depois, em Amesterdão, Norman Mailer erguia a voz perante uma audiência arrebatada: «Tudo o que está errado na América conduziu à construção de uma Torre de Babel que, consequentemente, tinha de ser destruída». Desqualificou aliás o ataque, afirmando que este devia principalmente «ser visto como uma crítica». Van Houcke, um jornalista holandês, acrescentou então: «Os sem-abrigo, os destituídos de poder, os aterrorizados, as minorias, estão a usar o terror para ripostar.» O antiamericanismo mais cego, esse não tinha quaisquer dúvidas sobre quem eram os verdadeiros culpados: «estavam mesmo a pedi-las!»
Com o tempo, no entanto, as explicações foram-se tornando menos precipitadas e simplistas, menos dependentes de fortes convicções e rancores de longa data, construindo-se gradualmente um legado documental e interpretativo rico e diversificado que é, para a década que se seguiu a um facto histórico de tal alcance, dos mais significativos que se conhecem. Em todo o caso, a generalidade das observações foi qualificando sempre o «choque» Ocidente-Islão como inevitável e potencialmente perigoso para a subsistência da paz, tendendo cada um dos «lados», apesar da diversidade das análises, a expurgar o outro da verdade e da razão. A imagem de uma «rua árabe» barbuda e ameaçadora, fundada no ódio e na violência, passou a dominar os média ocidentais, mas, de uma forma só aparentemente paradoxal, passou a dominar também a comunicação, rigidamente controlada pelas autoridades políticas e religiosas, que se fazia ouvir dentro dos próprios Estados islâmicos. E assim nos fomos mantendo até que, em dezembro de 2010, na Tunísia, a Revolução de Jasmim iniciou o rápido processo de transformação do mundo árabe com o qual convivemos.
A partir desse mês, o islamismo mais intransigente e violento deixou de ser vivido e apresentado como uma tendência dominante e que não podia ser evitada. Como nota David Remnick na New Yorker desta semana, os acontecimentos no Norte de África e no Médio Oriente têm revelado a construção de uma alternativa poderosa aos governos ultra-autoritários e ao terror islamita. Há ainda pela frente enormes lutas a travar – lutas entre a modernidade, a democracia representativa, o fundamentalismo religioso, o tribalismo, aquilo que resta dos velhos regimes ou dos sonhos ainda mais antigos do «nacionalismo árabe» e do «socialismo islâmico» – e ninguém pode saber o que vai acontecer, mas o desaparecimento dos regimes de Ali, Mubarak ou Khadafi, talvez mesmo, num prazo um pouco mais dilatado, os de Assad, dos mullahs do Irão, ou mesmo da realeza saudita, deixa no ar um perfume de abertura, diversidade e esperança. Neste sentido, a visão catastrófica e sanguinária do papel do Islão aberta com o 11/9 tem vindo a ser pulverizada. Esta é, com toda a certeza, uma viragem de página numa História que nos habituámos a ver em movimento cada vez mais acelerado. Por isso o atual cenário é o melhor que poderíamos esperar para evocar de forma minimamente positiva o que de terrível aconteceu há dez anos.
O escritor Thomas Mann, humanista après la lettre e homem estruturalmente conservador, cujas convicções mais estáveis mergulhavam na cultura alemã de Oitocentos, teve durante o exílio americano, em conjunto com os filhos Klaus e Erika, um processo de mais de mil páginas aberto pelo prestimoso Federal Bureau of Investigation. Segundo Rob Riemen, a acusação mais notável que ali pode ser encontrada é a de «antifascismo prematuro», isto é, resistência ao fascismo antes dos Estados Unidos da América declararem guerra à Alemanha no final do ano de 1941. Corriam os tempos turvos do McCarthismo e a sua atitude, de acordo com os aplicados investigadores do FBI, só poderia dever-se a uma simpatia não declarada pelo comunismo.