É maior do que pensava a minha ignorância da petite histoire do socialismo e por isso estou sempre a encontrar episódios novos. Nos dias que antecederam a tomada do poder pelos bolcheviques, Lenine escondeu-se em Moscovo no número 91 da Rua Serdobolskaia, apartamento 41 (atualmente o 106 da Perspetiva Marx, apartamento 20). A proprietária era uma mulher moscovita de 34 anos, que não só alojou Vladimir Ilitch, fornecendo cama, mesa e roupa lavada, como lhe serviu de ligação com os restantes membros da direção do Partido. É legítimo supor que o relacionamento entre os dois não tenha sido apenas estritamente político, dado o bilhete, ainda hoje conservado, que Lenine lhe deixou quando abandonou o apartamento para ir mudar a história da Rússia e do mundo: «Vou agora para onde tu me pediste que não fosse. Adeus.» De onde se depreende que a camarada possuía um nome só aparentemente convincente: Margarita Vasilevna Fofanova.
Num dado momento do seu trajeto filosófico, Jacques Rancière (n. 1940) passou a dedicar-se aos discursos dos excluídos, daqueles que num dado momento da História se viram confinados ao silêncio, empurrados para as margens pelas vozes hegemónicas: os proletários, os pobres, as mulheres, as minorias. Este A Noite dos Proletários, originalmente publicado em 1981, integra-se nesse esforço, procurando encontrar no discurso «desclassificado» de um conjunto de operários franceses saint-simonianos, «letrados» autodidatas da primeira metade do século XIX, um olhar diferente do habitual a propósito de conceitos – como exploração, domínio, trabalho, fadiga, economia, libertação, associação ou saber – associados à afirmação, então em pleno curso, do capitalismo triunfante e da nova identidade do universo do trabalho. (mais…)
O post que escrevi ontem a propósito da morte de José Hermano Saraiva destacou aspetos que se completam no que representou a sua vida como homem público: a enorme popularidade que colhia como comunicador, a forma como a maioria dos historiadores o não considerava um dos seus, a maneira como ainda assim contribuiu para uma valorização popular da História, sem esquecer o percurso como quadro do Estado Novo e defensor do legado de Salazar. Ficou no entanto por comentar um aspeto importante: o que determinou uma popularidade tão grande que agora, na hora do seu desaparecimento, tantas pessoas que não serão propriamente adeptas do anterior regime se indispõem com as críticas, mais do que legítimas, mais do que necessárias, que lhe são feitas? (mais…)
Como seria de esperar, a morte de José Hermano Saraiva (1919-2012), está a dar lugar, a par das demonstrações de pesar que são devidas sempre a quem parte, a um cortejo de elogios excessivos. Mas deteta-se também a invocação de algumas de críticas ao seu trabalho no campo da História e a exibição de comprometedores silêncios sobre o seu papel como cidadão. O peso do lugar que ocupa no nosso imaginário coletivo justifica um olhar sobre estes três aspetos.
Os elogios decorrem, naturalmente, da sua popularidade como divulgador da História de Portugal, ou, de acordo com algumas leituras, como historiador. Os seus programas televisivos, ampliados pela enorme capacidade histriónica que detinha, tornaram-no figura única, em termos de popularidade, na sua área de especialização. Relato um episódio que me foi contado há já uns anos por um colega, historiador e professor da Universidade do Porto, que é bastante revelador do peso dessa aura. Tendo sido a dada altura decidido fazer aos alunos do 1º ano de História da Faculdade de Letras um inquérito sobre os seus conhecimentos da disciplina, e tendo-lhes sido pedido que indicassem o nome de três historiadores portugueses vivos, nem um só deles deixou de indicar o nome de José Hermano Saraiva. O curioso, e também significativo, é que vários indicaram como segunda e terceira escolha… Alexandre «Saraiva» (referindo-se a Herculano, claro, falecido em 1877) e Vitorino Magalhães «Saraiva» (Godinho, como é bom de ver). «Saraiva» tem, pois, para muitos portugueses, uma relação de sinonímia com «historiador», reforçada pelo facto de, nesta profissão, poucos serem conhecidos fora dos círculos académicos ou dos setores educados da classe média. (mais…)
O antigo primeiro-ministro britânico Anthony Eden disse certa vez que quem não viveu diretamente «os horrores de uma ocupação por um inimigo estrangeiro» não tem o direito de julgar aqueles que os sentiram na pele. Algo de idêntico, aliás, pode dizer-se da forma como são avaliados determinados comportamentos em situações de guerra ou de perigo extremo: é fácil fazer juízos benévolos, ou proclamar heroísmo, ou anotar cobardias, quando nunca se soube pela experiência própria o que é pisar o frágil risco que pode separar a vida da morte, sabendo, ademais, que se está a fazê-lo. And the Show Went On: Cultural Life in Nazi-Occupied Paris, do jornalista brasileiro, filho de ingleses, Alan Riding, é um absorvente relato da vida artística parisiense sob a ocupação nazi, explorando a desconfortável e instável região instalada entre o colaboracionismo, forçado ou não, e a genuína resistência.
Os primeiros capítulos mostram de que modo a vida intelectual da França se encontrava já ideologicamente fraturada no período que antecedeu 1940 – a data de início da ocupação nazi e do estabelecimento do governo-fantoche de Vichy – com o antissemitismo a marcar profundamente a vida dos criadores e do público. Para o final da Guerra, a luta pela sobrevivência tornou tudo ainda mais turvo, envolvendo escritores, artistas e atores numa teia de ofuscações, compromissos e virares de casaca. Cheio de detalhes – as solas de madeira dos sapatos das mulheres, forçadas pelas restrições impostas ao consumo de cabedal, provocando um ruído único sobre os pavimentos da cidade; os números de music-hall flirtando com o perigo ao desafiarem veladamente os alemães – por esta história magnificamente contada passam inúmeros personagens, desde jovens estrelas de cinema que procuram dar-se a conhecer à primeira oportunidade até figuras já notáveis e omnipresentes como Picasso, Piaf, Sartre, Beauvoir, Cocteau e o violentamente antissemita Céline. Um caso ao acaso: Edith Piaf deslocando-se à Alemanha para cantar a convite dos nazis mas também para obter a libertação de soldados franceses detidos. Um livro sobre um lado da normalidade possível em tempo de guerra, no qual se confundem muitas vezes, na luta pela sobrevivência, a cobardia e a coragem. Onde nem tudo é branco versus preto, simples de distinguir.
Para além de ser um dos nossos mais importantes medievalistas, José Mattoso é também um historiador que não tem vivido a sua profissão como um espartilho, refletindo sobre domínios que se cruzam com os caminhos do contemporâneo e a experiência da cidadania. Comprovam-no os quinze ensaios escritos ao longo das últimas quase duas décadas que este Levantar o Céu reúne. Fá-lo adotando uma busca de sentidos, apoiada sempre numa reflexão muito pessoal, para essa «sabedoria verdadeira» que jamais se mostra à primeira vista, sendo por isso necessário «desejá-la, compreendê-la, descobri-la», aceitando que ela «não explica nada, explica-se». O título é pois uma declaração de intenções: se «levantar o céu» impõe a vontade de desvendar a relação entre o ideal que este representa e a materialidade da vida terrena, como possível via para perceber a mudança na ordem do mundo, já compreender o percurso labiríntico para alcançar a sabedoria é o mote que acompanha estes textos. A bússola oferece-a Mattoso no encontro, tantas vezes julgado como um inevitável desencontro, ou no equilíbrio que pessoalmente sempre procurou obter, entre fé e razão. O ceticismo do qual em alguns momentos nos dá conta apenas reforça esse sentido de procura. (mais…)
Paulo Moura é um excelente jornalista, de quem sou fiel leitor. Mas esta crítica negativa é condicionada por um imperativo: contornar o nevoeiro que um livro como este pode lançar sobre a imagem pública e a representação histórica da intervenção de Otelo Saraiva de Carvalho. Talvez o resultado pudesse ser outro se o posfácio, que poucos lerão, tivesse sido antes um prefácio, que toda a gente lê. Porque nele o autor aclara algumas das suas escolhas. Estas são, obviamente, tão legítimas quanto discutíveis. E muito discutíveis. Como é possível, por exemplo, compatibilizar um trabalho, descrito como «biográfico», e ainda que não seja «um livro para académicos» (qualificativo pouco preciso nele sugerido como restritivo), com a afirmação de que o autor decidiu ser «mais fiel às recordações do que ao passado»? E se se considera que é uma biografia «narrativa e interpretativa, não crítica», isenta de «juízos de valor», como excluir estes do território das recordações, que nunca sem manifestam sem a subjetividade de quem recorda? Muitos trabalhos sobre a conexão entre história e memória, na relação com a intervenção do testemunho dos atores dos factos vividos, tratam este assunto, procurando soluções que este livro exclui do horizonte. (mais…)
Logo no início deste Jerusalém, Simon Sebag Montefiore (n.1965), conhecido principalmente pelo trabalho biográfico sobre Estaline, interroga-se sobre o paradoxo que envolve a cidade: como foi possível a um sítio marginal do ponto de vista económico e estratégico ter-se tornado, e ter permanecido, a capital disputada de uma multiplicidade de imaginários religiosos e políticos? Mais: como foi possível que este papel tenha sido e continue a ser desempenhado pela mesma cidade que, em 1850, Flaubert descreveu como «um ossuário rodeado de muralhas, onde as velhas religiões apodrecem ao sol»? A verdade é que a realidade mais crua foi sempre superada por um lastro histórico e uma tradição cultural que lhe conferiram um estatuto de sacralidade. Ao longo de 3.000 anos, este inscreveu-a, enquanto Cidade Santa de três religiões, no centro das representações e dos interesses de um número indeterminado de humanos. Para estes não se tratava de uma cidade como as outras: ela fora sempre um lugar de espiritualidade e de ação política onde episódios notáveis se sucederam, um lugar por diversas vezes cercado, destruído, partilhado ou simplesmente cortejado por quem dele, real ou simbolicamente, se pretendeu apropriar. (mais…)
Como Auschwitz na rede de campos instalados pelos nazis, Kolyma é sinónimo de morte e sofrimento extremo no interior do universo concentracionário da antiga URSS. O complexo, instalado no glacial extremo-nordeste siberiano, detinha e conserva uma particularidade que marcou o seu destino: o de principal território de mineração do ouro da Rússia. Daí o interesse de Estaline em enviar prisioneiros para as suas minas. Estima-se que entre 1932 e 1956 foram mais de 2 milhões os deportados para o complexo instalado na região. E muito poucos regressaram. Varlam Shalamov foi um dos que sobreviveu e nos intensamente autobiográficos Contos de Kolyma, escritos entre 1953 e 1963 mas reportando-se a uma experiência que vinha dos anos 30, deixou-nos reflexos desse lugar terrível. Décadas depois, relatos e reportagens fotográficas testemunham de uma forma perturbante o silêncio e a desolação desse espaço imenso, um dos mais hostis da Terra, no qual tantas vidas foram rapidamente consumidas, deixando um rastro de dor e sombra que ainda se não extinguiu. Foi por isso que o escritor e jornalista polaco Jacek Hugo-Bader resolveu percorrer de mota os 2 025 quilómetros da rota de Kolyma, que vai de Moscovo a Vladivostok. Ao longo do trajeto, relatado no seu Dziennik Kolymski (Diário de Kolyma), editado na Polónia no ano passado e recenseado na revista francesa Books, todas as pessoas com quem falou conservam uma qualquer ligação familiar ou emocional com aquelas minas que continuam malditas. Quem já leu na íntegra diz que o relato do longo e gélido périplo de Hugo-Bader é espantoso. E principalmente uma reflexão sobre a humanidade num lugar que já foi o da mais impiedosa desumanidade.
Por hábito ou falta de atenção, a figura de Henrique Mitchell de Paiva Couceiro (1861-1944) tem sido algumas vezes associada de um modo injustamente exclusivo às incursões monárquicas nortenhas de 1911 e 1912, lançadas contra a Primeira República sem efetivo poderio militar e outras consequências que não o reforço do regime que pretendiam combater. Surge também ligada à sua condição de Presidente da Junta Governativa do Reino, assumida quando da efémera experiência da Monarquia do Norte – essa «Traulitânia» tão rebaixada no campo republicano – proclamada no Porto em janeiro de 1919. O estrondo da sua atuação durante esses anos bastou, no entanto, para que em torno da memória que dela sobrou se fosse construindo uma «lenda negra», que os republicanos facilmente ergueram, e outra de sinal inverso, que os adeptos da antiga ordem monárquica fizeram por manter, transformando-o em paladino e símbolo de uma causa que não queriam dar por perdida. Para evitar a perspetiva parcial, o impacto da sua intervenção pública deve por isso ser procurado dentro de um arco temporal mais alargado. O resultado final será o reconhecimento de um Quixote português, batendo-se, como o original, por idealismo e uma certa noção de honra, em nome de um Portugal que a corrente do tempo empurrava já para o passado. (mais…)
O passado, modos de usar, de Enzo Traverso – saído em 2005, antes de L’Histoire comme champ de bataille –, trata principalmente daquilo a que Habermas chamou «o uso público da história». O trabalho deste historiador e cientista político italiano tem vindo a ser preenchido com o estudo de épocas e de temas contemporâneos com os quais conflituam interesses atuais e que por esse motivo permanecem perturbantes, como acontece com a «questão judaica», o Holocausto, o totalitarismo, o fascismo, a violência nazi, o comunismo ou o eurocentrismo. Em conexão com todos eles, Traverso tem-se ocupado com os problemas difíceis mas incontornáveis que levanta a conexão entre história e memória. Aquela proximidade com o presente torna entretanto o tratamento destes assuntos algo que não pode deixar de dialogar – independentemente do rigor inerente à intervenção própria dos historiadores – com as suas escolhas políticas, com as repercussões do seu trabalho entre os outros profissionais do mesmo ofício e, acima de tudo, com o impacto junto dos setores da opinião pública que vão acolhendo os ecos do que dizem ou escrevem. (mais…)
De 24 para 25 de Abril – emissão histórica em direto. Uma iniciativa do Centro de Documentação 25 de Abril e da Ideias Concertadas. Na página Facebook do CD25A, das 22 horas de 24 às 22 de 25, a Revolução dos Cravos passo a passo, relatada e documentada.
Disponível em formato pdf um texto que escrevi em 2007 sobre «Coimbra: a luta estudantil e o património identitário da cidade». Poderá servir de munição, ou de contrapeso, no debate atualmente em curso sobre os usos e os abusos da praxe estudantil. E também para uma apreensão mais completa do papel dos estudantes na vida e na história deste lugar diferente. Uma apreensão menos passadista sem por isso promover o esquecimento. Pode baixá-lo aqui.
Protegido provavelmente pelo estado de confusão no qual viviam os censores do marcelismo, em janeiro de 1971 o semanário de atualidades Vida Mundial, com uma tiragem, exorbitante para a época e para o país, de 40.000 exemplares, fazia a capa com um cartoon representando Herbert Marcuse, ao qual dedicava um dossiê inteiro. A razão da escolha: pouco tempo antes, já com setenta anos cumpridos, o filósofo da Escola de Frankfurt passara para a ribalta ao ser apropriado pela reflexão libertária e crítica da sociedade pós-industrial que integrou a vertente mais radical e antissistema das movimentações saídas de Berkeley e do «Maio francês». Em 1955 saíra Eros e Civilização, obra que recorria à conceção freudiana do progresso da civilização para demonstrar como a sociedade capitalista altera e condiciona o desejo. Uma posição muito naturalmente sedutora para o padrão hedonista de representação do mundo que moldava a cultura sixtie. Foi no entanto em 1964, com O Homem Unidimensional, só agora traduzido e editado em Portugal, que Marcuse passou a integrar o núcleo duro dos acusadores da sociedade tecnológica desenvolvida que considerava um fator de escravidão.
A particularidade desse modelo societário residiria então, para além de seu elevado nível de automação, no facto de suscitar um enganador «funcionamento suave do todo». Este assumiria características totalitárias, já que continha «uma coordenação técnico-económica não-terrorista» capaz de operar «através da manipulação das necessidades por interesses estabelecidos», impedindo desta forma o surgimento de «uma oposição eficaz ao todo». O próprio indivíduo transformar-se-ia num produto da alienação provocada por uma sociedade consumista e massificada, dentro da qual a possibilidade de oposição fora suprimida ou desviada, criando uma forma unívoca, padronizada, de pensamento e de ação. Obra de denúncia do modelo monstruoso para o qual o capitalismo parecia empurrar a sociedade, foi no entanto reprovada por uma parte da crítica de esquerda por não oferecer uma via de escape para essa forma servidão que impunha ao indivíduo uma atitude conformista, consumista e acrítica. No entanto, se bem que a estrutura da obra defina principalmente uma intenção analítica – desenhando um quadro ainda hoje de considerar – não terá sido acidental a escolha da frase redentora de Walter Benjamin com a qual termina: «Só através dos que não têm esperança a esperança nos é dada.»
Herbert Marcuse, O Homem Unidimensional. Sobre a Ideologia da Sociedade Industrial Avançada. Trad. de Miguel Serras Pereira. Letra Livre. 326 págs. Versão revista de nota saída na LER de Março.
Charles Esdaile começa por recordar que Napoleão Bonaparte é, depois de Jesus Cristo, a personalidade histórica mais vezes representada no cinema, e também uma daquelas sobre quem mais se escreveu. Lembra também que poucos notáveis do passado determinaram posições tão extremadas, no seu próprio tempo ou na posteridade, quanto aquelas que desde cedo se definiram em volta do caráter, da ação e das intenções do «leão corso». De um lado, um certo entendimento da sua aparência como a de um monstro, capaz de pôr um continente inteiro a ferro e fogo apenas determinado por um desejo insaciável de poder e de fama. Do outro, a representação positiva de um visionário com papel decisivo no despertar da «Europa das nações», prova provada do dinamismo do «grande-homem» na História. Sem a intervenção do qual, no caso em apreço, o fim do Ancien Régime e a reforma política e administrativa da coisa pública não poderiam ter sido obtidos do modo e nos termos em que ocorreram. (mais…)
Os cinquenta anos virados sobre o eclodir, em Portugal, da Crise Académica de 1962, têm dado lugar a um conjunto de iniciativas públicas. Iniciativas importantes por três motivos. Primeiro motivo: porque têm reunido muitos homens e muitas mulheres, antigos ativistas ou participantes, que sem excesso de nostalgia nos têm ajudado a perceber como a sua ação, naquela época, foi muito importante para fazer crescer as fileiras da resistência à ditadura salazarista. Segundo motivo: porque têm agregado a intervenção, ao nível da informação e da interpretação dos acontecimentos, de historiadores, jornalistas e outras pessoas com um papel essencial na transformação daquilo que são as experiências e as recordações de alguns em património coletivo ao dispor de todos. Terceiro motivo: porque no contexto atual têm servido para mostrar como, muitas das vezes, a energia de uma minoria pode exprimir e servir de motor à participação cidadã do coletivo, revelando que a resignação de nada serve e que a coragem pode ser um fator de mudança.
Mas já não justifica grande atenção a tentativa, levada a cabo em alguns jornais, de pôr em paralelo o associativismo universitário da época e o atual. As diferenças históricas são óbvias e todos as reconhecem: o mundo e o movimento estudantil deram muitas voltas ao longo destas cinco décadas, tanto em Portugal como em toda a parte. O que é incompreensível é tentar estabelecer semelhanças entre os principais ativistas de 1962 – em regra pessoas culturalmente muito preparadas, com um forte sentido cívico e reconhecidas no terreno – e os seus sucessores «no cargo», jovens geralmente pouco aptos do ponto de vista cultural, que da intervenção estudantil possuem uma dimensão corporativa, e que «representam» colegas em regra incapazes de lhes identificarem os rostos. Falamos, de facto, da água e do vinho. Claro que ninguém pretende encontrar cópias, hoje, do que foram os ativistas de ontem. Os de 1962, os de 1969-74, ou os dos anos 90. Mas hoje, hoje mesmo, continuam a percorrer as universidades estudantes inteligentes, cultos e generosos, com uma perceção dinâmica do papel que podem ter na mudança do país e não apenas na das suas vidas. Só que não estão, geralmente, nas direções associativas, organizando-se ou agindo à margem destas. Esta é a realidade e comparações absurdas iludem os leitores.
A palavra «provinciano» aplica-se a duas condições diferentes, embora muitas vezes complementares. Uma distingue «aquele que é da província» ou «que vem da província», tendo nascido e vivido uma parte ou a totalidade da sua existência muito longe das grandes cidades e do ruído das autoestradas. E isso somos muitos. A outra, pejorativa, integra a tacanhez de quem apenas habita o lado plácido, repetitivo e intensamente conservador do mundo, ou a de quem, mesmo cruzando as avenidas e os ritmos das cidades, se afasta dos caminhos por onde flui e se desdobra o múltiplo que carateriza a vida moderna. Provinciano é pois aquele que ignora, por imposição do meio, ou então deliberadamente, aquilo a que Baudelaire chamava «o transitório, o fugitivo, o contingente», fixando-se antes no que acredita ser eterno, imutável e apenas visível em pequena escala. Esta aceção mais integral foi ferida na sua dignidade com a interferência dos meios de comunicação de massa – primeiro a rádio, depois a televisão, por fim a Internet – generalizados durante a segunda metade do último século. A condição do provinciano deixou então, para muitos, de ser uma inevitabilidade, passando a definir-se ainda mais como uma escolha, uma opção pelo padrão de vida que rejeita a novidade, as atividades mundanas e, em consequência, a diferença.
A notícia lida nos jornais sobre o projeto de uma marca de vinhos a comercializar a partir de Santa Comba Dão, o concelho natal do antigo ditador, sob a designação de «Memória de Salazar» – estando desde já prometido um esforço de marketing equivalente a aplicar a uma marca de enchidos –, enquadra-se nesta dimensão do provinciano. É um bom exemplo, talvez extremo, do que podemos ler ou ouvir todos os dias seguindo grande parte dos jornais ou das emissoras de rádio localistas e regionalistas: o culto da «figura grada» da terra, transformada em símbolo que supostamente a eleva diante das outras. É normalmente alguém que por aquelas partes passeou um pouco de poder e em consequência algum dinheiro. O doutor, o comendador, o industrial, o benemérito que, para o espaço da aldeia, da vila, da pequena cidade, da pequena mente, substitui sem hesitação o escritor, o poeta, o artista, a figura da ciência ou da cidadania, preenchendo preferencialmente as placas toponímicas e as colunas das folhas locais. Este projeto santa-combense, a materializar-se, será, de facto, mais um ato de provincianismo do que de revanchismo salazarista. Não destaca a grandeza de uma figura local ou as qualidades de um concelho, mas a pequenez de quem propõe uma iniciativa tão desastrada. E é como tal que deve ser rejeitado. Ou boicotado. Santa Comba Dão não pode exibir, sob o pretexto de apoiar um produto local, a celebração da repressão e do ódio aos quais, enquanto houver memória, permanece associada a figura do seu natural. Será mau, desde logo, para a própria terra e para os seus.