Arquivo de Categorias: Apontamentos

queixa não censurada de um democrata do ano inteiro

campanha

sei que não são todos iguais, mas a excepção faz a regra. não gosto, não gosto mesmo, de políticos em campanha. por muito honestos que sejam ou aparentem ser, nas suas propostas como nas suas vidas, existe sempre um sorriso a mais, uma palmada nas costas que parece supérflua, um beijinho claramente excedentário, um panfleto que se impõe a contragosto, um cheiro, ainda que ténue, a axila e a demagogia do qual bem podemos prescindir. pior ainda é o espectáculo dado por muitos daqueles que os recebem lá na terra ou no bairro. com banda trajada a preceito, criteriosas palavras de circunstância e uma incontida alegria artificial, lá estão eles nas praças e nas ruas à espera do audi, vestidos de varinas, de bombeiros, de moços-forcados, de noivas minhotas, de judocas, de meio-maratonistas, de zés-pereiras, de  mulheres partidárias, de jovens jotas, de povo-povo, com lenço e boné a condizer com a cor da bandeira. e há depois os mega-almoços, com cantores entre o proto-pimba e a pós-intervenção, copos de plástico atestados de sumol de ananás, croquetes marados, feijoadas mete-nojo, azeitonas manhosas e pães com manteiga que todos enfiam na boca atulhada enquanto se tratam por companheiros, por camaradas, por ó pá, ó doutor, ó engenheiro, olhe qu’agora é que vai ser. as campanhas, digo-vos eu, deviam ser interditas a grandes grupos. afinal sempre há a televisão, a internet, os jornais, a caixa do correio, a sessão de esclarecimento, os outdoors identificados, ou o contacto porta-a-porta como o fazem os mórmones, as testemunhas de jeová, os angariadores da cabo-tv e os mordomos das festas da padroeira. deveria criar-se um serviço grátis de desintoxicação eleitoral. e uma ponte aérea para que todos nós, os democratas do ano inteiro, pudéssemos emigrar nestas alturas para uma estância termal nas ilhas faroë. retornando, claro está, a tempo de votar em quem merece. ou quase.

    Apontamentos, Atualidade, Devaneios, Olhares

    Na arqueologia do contemporâneo

    O cigarro

    Parece uma extravagância e provavelmente é-o, mas comecei há uns anos a coleccionar palavras a caírem em desuso. Não me refiro às de um arcaísmo patente, já só conservadas em livros, jornais e cartas antigas, mas sim àquelas que ainda são utilizadas e das quais se servem apenas algumas pessoas das gerações mais velhas, membros de determinados agrupamentos políticos ou cidadãos socialmente agregados por certas práticas e rituais. Apenas um exemplo: a palavra «larápio», à qual ninguém recorre agora quando quer nomear o ladrão, pouco me interessa, mas «gatuno», que já só aparece nas imprecações dos estádios de futebol – naturalmente dirigidas ao infeliz árbitro da partida e intercaladas com ofensas à sua progenitora – ou no discurso político da direita e da esquerda mais arcaicas, é um must. Talvez este seja um tique profissional, forçado que estou a seguir, se não se quiser tornar-me críptico para quem me ouve em aulas e seminários, a mudança cada vez mais veloz e ziguezagueante dos vocábulos e dos seus sentidos.

    Entretanto iniciei outra colecção. Desta vez a dos gestos que estão a evaporar-se ou deixámos de encontrar no dia-a-dia deste lado de cá do hemisfério norte. A primeira peça da colecção retirei-a de um filme dos anos 50, a preto e branco, visionado ao acaso no YouTube. Ela documenta o hábito cada vez mais proscrito de fumar fazendo desse acto uma parte importante do jogo social: aquele modo único, pouco higiénico mas que funcionava como marca de à-vontade, de estilo, por vezes de provocação, de apagar o cigarro, dentro de um café, no hall do cinema ou numa repartição pública, atirando-o ainda incandescente para o chão e esmagando-o sem piedade com o tacão ou a sola do sapato. Uma marca de macho ou de «mulher da vida» que, se repararem, quase desapareceu do nosso horizonte. Tal como engraxar os sapatos em público, cuspir para o lado sem qualquer aviso, usar um pente no bolso posterior das calças e servir-se dele com regularidade, limpar os ouvidos com o mindinho ou tamborilar com os dedos em cima do balcão do bar enquanto se espera pela cerveja gelada. Espera-me pois uma missão na arqueologia do contemporâneo. Pouco urgente, mas uma missão.

      Apontamentos, Atualidade, Devaneios, Olhares

      Púbicos pêlos, públicas virtudes

      keep brushing

      Como a maioria dos portugueses atentos ao que acontece no mundo real – ou seja, no YouTube – franzi o sobrolho e sorri ligeiramente quando vi o putativo ministro das Finanças de um incerto governo PSD servir-se num programa televisivo da expressão «andam a discutir ‘pintelhos’». Assim mesmo, como diz o povo que não tem dicionários capazes de sabiamente converterem o «i» em «e». Mas o pasmo não ficou a dever-se à expressão em si. Todos a conhecemos, apesar da minha avó ter preferido «andam a falar de coisas que não valem dez réis de mel coado» e de muitos de nós, entre os quais me incluo, gostarem mais de recorrer aos moluscos gastrópodes terrestres de concha espiralada calcária vociferando «andam com um raio de uma conversa que não vale um caracol». A surpresa relacionou-se, isso sim, com o facto dela ter saído da boca de uma figura com a qual o PSD, partido que deseja vender uma imagem de circunspecção à medida do seu precocemente circunspecto presidente, pretende conquistar credibilidade pública. Mas terminou aqui a chalaça, pois já não me parece nada engraçado, ou sequer útil, usar a gafe para atacar o partido ou Catroga, seu – isto sim um fenómeno do domínio do paranormal – não-militante e porta-voz. Não vejo que interesse pode ter servirmo-nos de um deslize, que até humaniza o personagem, como arma de arremesso político. Aliás, já achei a mesmíssima coisa na altura do «porreiro, pá» de um conhecido político da Beira interior, ou dos chifres parlamentares ostentados por outro. É que o povo até gosta destas coisas, pá. Vão por mim e deixem-se de pentilhices.

        Apontamentos, Atualidade, Devaneios

        Um autor contra o seu pseudónimo

        Manuel António Pina

        Dados os antecedentes, acredito que o poeta, escritor, cronista e ex-jornalista Manuel António Pina – ou o seu pseudónimo, e nem ele mesmo poderá garantir qual deles – se sentirá bastante preocupado com a atribuição do Prémio Camões de 2011. Ao contrário de nós, seus leitores, admiradores e «fiéis sequazes», que ficámos só muito felizes.

        Então, para que conste, siga-se esse alguém:

        AVISO À NAVEGAÇÃO

        É altura de sair do armário e fazer uma revelação particular­mente penosa: sou um pseudónimo. Na verdade, eu não sou eu. Nem outro, nem qualquer coisa de intermédio, nem «pilar da pon­te de tédio/ que vai de mim para o outro». Uso um nome suposto, só por acaso coincidente com o do BI, porque não sei, como o taoista, que nome tenho.

        Um leitor (aliás cordialíssimo) responsabiliza-me por uma crónica aqui assinada pelo pseudónimo sobre a hipocrisia do jornalismo. Estou cansado que me confundam com o pseudónimo. Já cheguei, num café, a ser chamado de «fascista», de «populista» e até de «católico» pelo vice-presidente de uma bancada parlamentar (sou sempre eu quem paga as favas, porque o pseudónimo exis­te apenas duas ou três horas por dia, diante do computador, e não vai ao café).

        Num pequeno texto intitulado Borges y yo, o autor de Le regret d’Héraclite, quem quer que seja, revela que tem uma existência pacata e que tudo o que lhe acontece se passa com outro, um tal Borges. Comigo é igual. Estou farto (acho que já o disse, ou terá sido o pseudónimo?) de ser confundido com o autor daquilo que escrevo.

        JN, 16.04.2009

          Apontamentos, Atualidade

          Zero em economia

          easy money

          Sou um ignorante chapado em ciência económica e durante muito tempo até fiz gala disso. Um tipo que gosta é das letras, das artes, de mexer em arquivos e de idear futuros, que não se preocupa em demasia com o vil metal ou com o preenchimento do IRS, dificilmente fará melhor. Deito fora os suplementos de economia sem os ler, e quando no banco me sugerem «um novo produto» digo logo que estou com pressa. Além disso, jamais confiro os trocos, mudo de canal quando aparece o Gomes Ferreira e não ligo peva aos extractos de conta. Não tenho pois grande capacidade – melhor, não tenho capacidade alguma – para observações minimamente elaboradas e de confiança sobre a evolução económica e financeira do nosso país ao longo dos últimos 37 anos. Mas sou suficientemente ingénuo, ainda assim, para atirar uma pergunta para o ar. O que terá levado as finanças públicas portuguesas ao estado pré-cadavérico em que se encontram? Foi a construção de um Estado social projectada por uns quantos nos anos 60 e lançada ao caminho após a Revolução de Abril, como insinuam a todo o instante os urubus do neoliberalismo que «analisam» a crise em curso, ou foi a edificação de um suposto oásis de dinheiro fácil, de descontrolo das despesas públicas e de crédito sem limites projectada nos «anos dourados» do teso Cavaco e do bom Guterres? Uma pergunta insensata, de ignaro, admito.

            Apontamentos, Atualidade, Olhares

            Achtung, camaradas!

            W. Merkel

            Wolfgang Merkel – não, que se saiba não é nada à outra senhora – não se trata de um sujeito qualquer. É cientista político, investigador emérito no Centro de Investigação em Ciências Sociais de Berlim, e noutros tempos foi conselheiro, calculem lá, dos senhores Blair, Schroeder e Zapatero. Um de cada vez, bem entendido. Está de passagem por Lisboa e ontem respondeu assim a duas das perguntas que o Público lhe fez.

            A Terceira Via parecia ser a resposta da social-democracia à globalização. O seu sucesso também acabou. Essa corrente ainda contém elementos para essa resposta do centro-esquerda à globalização?

            Enquanto metáfora, acabou. Quanto aos seus elementos constitutivos, há um legado negativo e outro positivo (…). Deixe-me citar primeiro dois ou três fracassos. Um dos maiores foi aquilo a que eu chamo o «Estado dos impostos». Eles não pensaram realmente que a social-democracia precisa de um Estado forte e que este tem de ser capaz de cobrar impostos a todas as classes da sociedade. E o que fizeram foi reduzir os impostos às empresas, às corporações, aos altos rendimentos, isso abriu as portas àquilo a que o grande economista Douglass North chama o «caminho da dependência». Passou a ser extremamente difícil voltar atrás, porque qualquer força política que o fizesse seria logo acusada pelos adversários de querer aumentar os impostos e isto faz perder eleições em quase todos os países europeus. O enfraquecimento do «Estado dos impostos» foi certamente um dos principais fracassos.

            O segundo foi terem sobrevalorizado os efeitos positivos da globalização, levando-os ao credo na desregulação financeira. Foi um erro. Não viram que o impacto da globalização, que se traduziu num aumento de bem-estar geral, deixou de fora o terço mais pobre das nossas sociedades, que se dividiram entre os ganhadores e os perdedores da globalização.

            O terceiro erro eu diria que foi terem deixado de fora o espaço da UE como espaço de acção política. Estes três erros acabaram por acelerar os problemas da social-democracia.

            As coisas boas?

            Não são tão fáceis de enunciar. Uma delas foi a importância que deu à sociedade civil, dizendo que o Estado não pode fazer tudo pelas pessoas. E, pelo menos em teoria, a ênfase que colocaram na educação, educação, educação.

              Apontamentos, Recortes

              A sombra

              a sombra

              Inteiramente de acordo com o texto do Daniel Oliveira sobre o péssimo gesto e o mau sinal que foi a recusa do PCP e do Bloco de Esquerda a apresentarem-se nas reuniões dos partidos políticos portugueses com a delegação do FMI. Não gasto tinta em argumentos, uma vez que a maior parte do que aqui poderia dizer já ficou dito pelo DO. Como a posição do PCP é coerente com aquilo que o PCP tem desde há muito tempo mantido, resta-me acrescentar, enquanto cidadão que desde a primeira hora considerou o Bloco uma peça imprescindível da democracia portuguesa – e nele tem esperançosa e persistentemente votado –, ter começado a temer que a situação crítica que vivemos tenha em alguns dos seus dirigentes retirado da hibernação os velhos fantasmas do maximalismo kamikaze. Ou isso ou então a Ruptura-FER tomou já o poder e ninguém avisou a malta.

                Apontamentos, Atualidade, Opinião

                O fotógrafo

                Nadar_autoportrait_tournant

                Se tivesse permanecido entre nós, Félix Nadar (1820-1910) – o valente figurão, o fotógrafo de Baudelaire, de Courbet, de Delacroix, de Verne, de Dumas, de Bernhardt, de Clemenceau, de Doré, de Nerval, de Liszt, de Sand, de Gautier, de Thiers – completaria hoje a bonita idade de 191 anos. Sem ele a memória visual da cultura europeia de Oitocentos teria sido outra. Bem mais pobre e cega, sem dúvida.

                  Apontamentos, Memória, Olhares

                  O caso Weiwei

                  Ai Weiwei, o mestre-escultor das sementes de girassol em porcelana que é possível esmagar com os pés, o importante artista, filósofo e activista dos direitos humanos, foi preso este fim-de-semana em Pequim quando se preparava para viajar até Hong-Kong. Na mesma altura foram também detidos diversos colaboradores seus. Neste momento as autoridades da República Popular da China mantêm Weiwei incontactável.

                  Uma petição exigindo a sua libertação pode ser assinada aqui. Imagens de algumas das suas obras podem ser vistas neste slideshow.

                    Apontamentos, Artes, Atualidade, Democracia

                    Lie to Me

                    Lie to Me

                    Cada Primeiro de Abril parecia um dia único. E não só para as crianças. A expectativa era grande, maior até, provavelmente, do que a das vésperas do Natal. A jornada começava cedo, vasculhando nos títulos dos jornais, nos noticiários da rádio ou da televisão, na conversa do vizinho, a mentira pela qual tanto se aguardara. O embuste fazia parte do jogo e era mais saboroso se parecesse verosímil, ou pelo menos incerto, podendo ser mantido até à manhã seguinte sem que alguém tivesse a coragem de o desmentir. Mas será mesmo que…? A 2 lá vinha então o anúncio, também esperado, revelando a extensão da burla e confirmando, quase sempre com um certo pudor, que quem por ela se deixara envolver o não tinha feito por ignorância ou burrice, mas por cumplicidade ou distracção.

                    Assim foi durante bastante tempo, não se sabe até quando. É provável que tudo tenha começado a mudar algures nos anos oitenta. E na década seguinte já o Dia das Mentiras tinha deixado de ser aquilo que fora. Não por se perder a magia do engano, mas por este se haver vulgarizado, deixando de corresponder a um estado de excepção. A velocidade e a imprevisibilidade da mudança, a generalização do boato e da imprecisão, o uso jornalístico da possibilidade com um tratamento análogo àquele conferido ao facto, a criação da «inverdade», a manipulação dos acontecimentos pelas manchetes, banalizaram a boa e calorosa trapaça. Por isso o Primeiro de Abril não será mais o que foi: um dia diferente em que a mentira participava, a mentirola divertia, a mentirinha não aborrecia e o engano acendia a imaginação.

                      Apontamentos, Devaneios, Olhares

                      Apontamento malaguenho

                      Combatentes republicanos

                      Queridisimos intelectuales (del placer y el dolor) é um documentário que obviamente não vi, estreado ontem no Festival de Cinema de Málaga no qual certamente não estive. Dele retenho, por isso, apenas os ténues ecos, frases soltas, que chegam com as leituras em roda livre das três da madrugada. Eles contam que o filme cola intervenções avulsas, aparentemente incoerentes, de intelectuais espanhóis contemporâneos. Guardo duas. A primeira é de Carlos Moya, não o ex-tenista de sucesso mas o sociólogo emérito, que declara ter sido o haxixe, durante os anos sessenta, «a quinta coluna do Islão» no Ocidente. Fica a boutade, para reflexão eventual e memória futura da mesma. A segunda intervenção que retenho é a de Santiago Carrillo, e nela o velho resistente, o antigo secretário-geral do PCE, afirma que durante a Guerra Civil espanhola teve lugar «uma explosão de liberdade sexual».

                      Esta «liberdade sexual» nas diversas frentes de combate deve ser relativizada mas foi real. Ela serviu à propaganda do franquismo, aliás, para mostrar a «imoralidade» dos republicanos, apresentados por vezes como vivendo em permanência entre Sodoma e Gomorra. Veja-se, como exemplo, a descrição dos republicanos «bolcheviques e jacobinos» traçada no conhecido filme de propaganda L’assedio del’Alcazar, rodado em 1940 por Augusto Genina. Sem querer ser simplista, julgo no entanto poder dizer, em abono da frase de Carrillo, que uma moral sexual mais rígida, fundada na condenação de ligações múltiplas, descomprometidas e fora do casamento, foi sinal, apenas sentido a partir dos anos quarenta, de uma regressão do franquismo em relação a práticas anteriores, historicamente comprováveis, que admitiam realmente uma menor rigidez no campo da sexualidade. Algo de semelhante se passou aliás em Portugal, com o recuo imposto durante o salazarismo de uma vivência social, sob este aspecto razoavelmente aberta, que havia sido posta em prática em determinados ambientes durante a Primeira República.

                      Por outro lado, e esta é uma constante intemporal, a guerra intensa, e a guerra civil é uma guerra de elevadíssima intensidade, funciona sempre – como sabe quem alguma vez a viveu e os livros nos contam vezes infinitas – como um poderoso afrodisíaco. Debaixo da sua influência, os «factos da vida» acontecem então por si, mais naturalmente, por vezes violentamente, quase sempre com urgência. E nem entre os franquistas ela esteve ausente, como o comprovam diferentes testemunhos. Por isso a frase de Carrillo só pode admirar quem ande um tanto distraído ou esteja, com falta de tempo, à procura de um título para uma breve nota de reportagem. Provavelmente foi isto que aconteceu. Com êxito, pois foi ela que me chamou a atenção durante a leitura-relâmpago desta noite.

                        Apontamentos, Devaneios, História, Olhares

                        Desesperança (1)

                        désespoir

                        Escrevo enquanto a maioria desespera. A esta hora ninguém sabe muito bem aquilo que vai acontecer, mas parece certo que o governo caiará. Ou talvez não, talvez não seja já. Mas será em breve. Ganha forma o espectro da incerteza, pairando sobre um cenário de pré-catástrofe. Ninguém se atreve a arriscar previsões que não tragam consigo nuvens negras. Só os lerdos e os ignorantes podem pensar de forma diferente. E o pior é que a alternativa não é alternativa. A queda de um governo incapaz de produzir futuro trará outro, que gerirá a catástrofe prometendo-nos o Éden para dentro de trinta anos. Ambos, os que estão de saída ou aqueles que irão chegar, irão falar-nos de inevitabilidade, da impossibilidade das coisas poderem ser de outro modo. A nossa vida, projectada sobre um mundo devastado, empurrará a esperança para o tempo dos nossos netos.

                          Apontamentos, Atualidade, Olhares

                          A culpa (reprise)

                          A família

                          A Confederação Nacional das Associações de Família, com a argúcia e a presciência que se lhe reconhecem, diz que há um «risco de conflito geracional» pelo facto de haver «jovens frustrados» que «poderão sentir-se impelidos a pedir contas a toda uma geração que lhes deixa um legado de dívidas, de falta de oportunidades, de retrocesso nas liberdades». Se bem interpreto esta preocupação, as famílias deverão então efectuar sessões de autocrítica – ou de auto-análise, para os familiares mais instruídos – nas quais os mais velhos se deverão penitenciar por um dia terem acreditado que viviam num mundo que tendia a ser melhor do que aquele que lhes havia sido legado pelos seus pais. E assim sucessivamente, regredindo na história da responsabilidade geracional, na medida do possível, até ao instante da Criação. Perceber-se-á então que o culpado de tudo foi quem começou o movimento, ou seja, Deus. Parece-me que a Confederação Nacional das Associações de Família está a meter-se numa grande embrulhada.

                            Apontamentos, Devaneios

                            Do passado que passou

                            praxe

                            Há uns meses fui desafiado pela Plataforma Anti Praxe Académica, de Coimbra, a escrever um texto para editar no seu P.A.P.A.zine. Saiu aquilo que abaixo se transcreve. Sei que não é fruta da época – já passou a Latada e ainda não chegou a Queima, datas-magnas da vida estudantil para grande número de universitários – mas talvez por isso mesmo, porque seja tempo de menos adrenalina movida a superbock, seja também a altura de o divulgar aqui. Didactismo e panfletarismo qb, que há gostos para tudo.

                            Para a maioria dos estudantes que nas décadas de 1960-1970 frequentaram a Universidade de Coimbra – nas outras o problema nem se punha –, a praxe académica não tinha grande peso. Simplesmente porque estava a desaparecer. Antes do «luto académico», decretado em 1969 para responder à repressão dos estudantes, já a maioria destes pouco se preocupava com esse tipo de prática simbólica. O desenvolvimento do associativismo estudantil e o alastrar de uma concepção tendencialmente democrática e igualitária da sociedade, a recusa de um certo «espírito de rebanho» que as autoridades apreciavam, iam transformando a praxe, como rotina de base corporativa e elitista, em algo de suficientemente anacrónico para ser ignorado por um número crescente de alunos. Até mesmo o uso do traje académico vivia uma fase de claro recuo, embora alguns ainda dele se servissem casualmente. Ao fechamento da batina, imposto pela decisão colectiva do «luto», seguiu-se por isso, em poucos meses, o seu quase completo desaparecimento.

                            O que aconteceu nessa altura foi assim a confirmação de uma transformação de facto: não se fez desaparecer a praxe do dia-a-dia estudantil, pois aí ela já quase não existia, mas acabou-se com a festa académica tradicional e com a ostentação pública da imagem elitista do aluno universitário. Esta mudança serviu para unir os estudantes contra o governo da altura, aproximando-os do cidadão comum e mostrando que consideravam existirem situações muito mais importantes do que a ocasional exibição do destaque social e da capacidade para consumir álcool. A presença de um número cada vez maior de mulheres na academia acentuaria aliás a metamorfose, limitando o «prestígio» da boémia masculina e da «autoridade da moca» na qual se fundava parte da velha ordem estudantil. Os estudantes não se viram assim «privados da praxe», como li há meses num artigo de jornal: a larga maioria deles descartou-a porque já não a sentia como sua, servindo-se do que dela restava apenas para a sua luta anti-regime e anti-sistema. Por isso durante mais de dez anos, e com a Revolução de Abril pelo meio, ninguém mais pensou no assunto. Ele simplesmente parecia morto e enterrado. (mais…)

                              Apontamentos, Coimbra, Memória, Olhares

                              Escrever, não escrever

                              escrita

                              Talvez existam tantas explicações para a opção do escritor pela escrita quanto a soma dos que a seguiram. Ou mesmo mais, pois existe ainda um certo número, com toda a segurança bastante superior, de pessoas que a procuraram mas desistiram e seguiram outra vida. Gosto da justificação que Roberto Bolaño deixou durante uma entrevista conduzida por Carmen Boullosa e publicada na revista nova-iorquina Bomb no final de 2002, cerca de meio ano antes da sua morte. O que nela  me atrai é justamente a imponderabilidade, deixando no ar aquela que é, afinal, a única afirmação possível: escritor algum o é fora de um conjunto infinitamente variável de acasos, de escolhas e de desistências.

                              Ser escritor é agradável – não, agradável não é o termo –, é uma actividade que tem a sua quota-parte de momentos divertidos, mas sei doutras coisas que são ainda mais divertidas, tão divertidas como para mim a literatura. Assaltar bancos, por exemplo. Ou realizar filmes. Ou ser chulo. Ou voltar a ser criança e jogar numa equipa de futebol mais ou menos apocalíptica. Infelizmente, a criança cresce, o assaltante de bancos é morto, o realizador fica sem dinheiro, o chulo adoece e depois não há outra opção que não seja escrever. Para mim a palavra «escrita» é exactamente o oposto da palavra «espera». Em vez de esperar, há escrever. Bem, provavelmente não tenho razão – é possível que escrever seja outra forma de esperar, ou de adiar coisas. Gostava de pensar doutra maneira.

                              Em Roberto Bolaño: Últimas entrevistas. Introdução de Marcela Valdes. Trad de José António Freitas e Silva. Quetzal. 122 págs.

                                Apontamentos, Olhares