Na arqueologia do contemporâneo

O cigarro

Parece uma extravagância e provavelmente é-o, mas comecei há uns anos a coleccionar palavras a caírem em desuso. Não me refiro às de um arcaísmo patente, já só conservadas em livros, jornais e cartas antigas, mas sim àquelas que ainda são utilizadas e das quais se servem apenas algumas pessoas das gerações mais velhas, membros de determinados agrupamentos políticos ou cidadãos socialmente agregados por certas práticas e rituais. Apenas um exemplo: a palavra «larápio», à qual ninguém recorre agora quando quer nomear o ladrão, pouco me interessa, mas «gatuno», que já só aparece nas imprecações dos estádios de futebol – naturalmente dirigidas ao infeliz árbitro da partida e intercaladas com ofensas à sua progenitora – ou no discurso político da direita e da esquerda mais arcaicas, é um must. Talvez este seja um tique profissional, forçado que estou a seguir, se não se quiser tornar-me críptico para quem me ouve em aulas e seminários, a mudança cada vez mais veloz e ziguezagueante dos vocábulos e dos seus sentidos.

Entretanto iniciei outra colecção. Desta vez a dos gestos que estão a evaporar-se ou deixámos de encontrar no dia-a-dia deste lado de cá do hemisfério norte. A primeira peça da colecção retirei-a de um filme dos anos 50, a preto e branco, visionado ao acaso no YouTube. Ela documenta o hábito cada vez mais proscrito de fumar fazendo desse acto uma parte importante do jogo social: aquele modo único, pouco higiénico mas que funcionava como marca de à-vontade, de estilo, por vezes de provocação, de apagar o cigarro, dentro de um café, no hall do cinema ou numa repartição pública, atirando-o ainda incandescente para o chão e esmagando-o sem piedade com o tacão ou a sola do sapato. Uma marca de macho ou de «mulher da vida» que, se repararem, quase desapareceu do nosso horizonte. Tal como engraxar os sapatos em público, cuspir para o lado sem qualquer aviso, usar um pente no bolso posterior das calças e servir-se dele com regularidade, limpar os ouvidos com o mindinho ou tamborilar com os dedos em cima do balcão do bar enquanto se espera pela cerveja gelada. Espera-me pois uma missão na arqueologia do contemporâneo. Pouco urgente, mas uma missão.

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