Arquivo de Categorias: Apontamentos

V. Ilitch e Fofanova

Numa rua de Kiev. Fotografia de Pavlo

É maior do que pensava a minha ignorância da petite histoire do socialismo e por isso estou sempre a encontrar episódios novos. Nos dias que antecederam a tomada do poder pelos bolcheviques, Lenine escondeu-se em Moscovo no número 91 da Rua Serdobolskaia, apartamento 41 (atualmente o 106 da Perspetiva Marx, apartamento 20). A proprietária era uma mulher moscovita de 34 anos, que não só alojou Vladimir Ilitch, fornecendo cama, mesa e roupa lavada, como lhe serviu de ligação com os restantes membros da direção do Partido. É legítimo supor que o relacionamento entre os dois não tenha sido apenas estritamente político, dado o bilhete, ainda hoje conservado, que Lenine lhe deixou quando abandonou o apartamento para ir mudar a história da Rússia e do mundo: «Vou agora para onde tu me pediste que não fosse. Adeus.» De onde se depreende que a camarada possuía um nome só aparentemente convincente: Margarita Vasilevna Fofanova.

    Apontamentos, Devaneios, História

    Síria: silêncio é cumplicidade

    Na cidade síria de Alepo, a segunda do país com 2,5 milhões de habitantes, perante o avanço das forças de Assad, «um número muito grande de civis», encurralado pelos bombardeamentos cerrados de artilharia pesada por terra e ar, «reuniu-se em parques públicos em áreas mais seguras» ou então «refugiou-se nas escolas». A maioria dos cidadãos está desesperada, temendo pela vida e assistindo à destruição sem piedade da sua cidade-museu. O esquerda.net já viu aquilo que está a acontecer na Síria: uma chacina em nome da defesa de um regime massivamente contestado nas ruas de todo o país. Mas limita-se a noticiar, não toma uma posição. A «teoria do não-intervencionismo a todo o custo», em qualquer caso, independentemente de situações extremas nas quais o que deve importar é a defesa elementar de vidas humanas, conduz o Bloco de Esquerda a becos sem saída desta natureza. Já o Avante! apoia as forças do regime e vê coragem e nacionalismo, «defesa legítima» contra uma agressão externa «programada nos corredores do Pentágono», onde existe principalmente a brutalidade sem limites, lançada no terreno contra as forças anti-regime mas que atinge sobretudo civis que lhe não conseguem escapar. Enquanto o PCP é consequente com a sua fidelidade política ao inquebrantável princípio leninista do «inimigo principal» e ao velho parceiro na região da «saudosa» União Soviética, o BE evita tomar uma posição clara face a uma tragédia humana desta dimensão. Queira-o ou não, quem cala consente.

      Apontamentos, Atualidade

      O meu Beat Hotel

      As paredes sujas, a velha secretária, a máquina de escrever, as folhas de papel, os químicos, o lápis e a esferográfica, os cigarros, a caixa de fósforos, o cinzeiro cheio de beatas, os óculos. Só a lupa está ali a mais. Num devaneio da memória, diria que se trata da reconstituição museológica do meu espaço de trabalho em São Martinho do Bougado, concelho da Trofa,  na casa de piso único, térreo, sem quarto de banho ou cozinha, onde em 1974 vivi cinco meses de clandestinidade. Mais prosaicamente, é «apenas» a recordação fotográfica do habitáculo de William Burroughs no Beat Hotel de Paris. (Fotografia de Jed Birmingham)

        Apontamentos, Devaneios, Fotografia

        A fábula do passado

        Afonso Henriques
        De uma animação de Pedro Lino

        O post que escrevi ontem a propósito da morte de José Hermano Saraiva destacou aspetos que se completam no que representou a sua vida como homem público: a enorme popularidade que colhia como comunicador, a forma como a maioria dos historiadores o não considerava um dos seus, a maneira como ainda assim contribuiu para uma valorização popular da História, sem esquecer o percurso como quadro do Estado Novo e defensor do legado de Salazar. Ficou no entanto por comentar um aspeto importante: o que determinou uma popularidade tão grande que agora, na hora do seu desaparecimento, tantas pessoas que não serão propriamente adeptas do anterior regime se indispõem com as críticas, mais do que legítimas, mais do que necessárias, que lhe são feitas? (mais…)

          Apontamentos, História, Memória

          O que nos resta

          Sagan
          F.S. em 1954
          Fotograma de Jacques Rouchon

          Françoise Sagan disse um dia numa entrevista: «Aquilo que faz falta na nossa época, é o gratuito. Mas é realmente excitante fazer coisas por nada. A nossa época é demasiado materialista e demasiado exibicionista, cheia de pessoas que contam em público todos os pormenores das suas vidas e que se satisfazem com a realidade. A imaginação é a única virtude que nos resta. E talvez seja mesmo a mais importante das virtudes.». É sempre fácil – e bastante tentador – estabelecer analogias entre as palavras avisadas dos que se foram, e um dia sublinhámos, e aquelas das quais nos podemos servir para julgar a nossa própria realidade. Mas num tempo como o presente, no qual absolutamente tudo é julgado pelo valor de troca e a gratuidade é considerada um desperdício ou coisa de ingénuos, vale a pena considerar estas que nos deixou a autora de Bonjour Tristesse.

            Apontamentos, Devaneios, Recortes

            Walter, judeu-alemão

            Walter Benjamin

            Morto (ou suicidado) em 1940, quando procurava escapar aos nazis, Walter Benjamin foi talvez o menos previsível dos marxistas do seu tempo, a ovelha negra de uma família que na altura se encontrava razoavelmente unida. Foi ensaísta, crítico literário, filósofo, tradutor, sociólogo, jornalista e radialista. Nos interesses e na experiência misturou literatura e reflexão filosófica, religião e secularismo, esquerda e misticismo. Combinou o idealismo alemão com o materialismo histórico, o desespero com a criatividade, a teoria com a vida. Especializado em Goethe, Balzac, Proust, Kafka e Baudelaire, mas interessado também, sempre, em miudezas, em atividades fúteis e em coisas vulgares. Perseguidor de brinquedos, livros infantis, barcos e viagens. E ocupado com mulheres impossíveis, o que não é de somenos. Gershom Scholem, o teórico do misticismo judaico, considerava-o um espírito muito especial, mas não entendia porque se relacionava ele com «todos aqueles esquerdistas». Brecht admirava-o, mas nunca conseguiu perceber que raio de conversas poderia ter ele com «todos aqueles místicos». Foi no entanto essa complexidade que o salvou do esquecimento e o fez nosso, como auxiliar da autonomia do pensamento e da ação, como exemplo da capacidade e da necessidade do desencanto perante o encantamento que escraviza.

              Apontamentos, Biografias

              Laranja limão

               

              Confiando naquilo que Nathaniel Hawthorne contava de Charles Fourier em The Blithdale Romance, este acreditava que o fulgurante e inevitável progresso da humanidade rumo à perfeição faria com que um dia o mar passasse a saber a limão. O fascínio da imaginação utópica assenta em operações e convicções desta natureza, que auguram um futuro de absolutos, programados e construídos à imagem dos desejos e da indeterminada determinação de quem os projecta. Os obstáculos apenas surgem quando os fabricantes de utopias por medida fixam a exata percentagem do açúcar, do ácido cítrico e do sódio da água marítima. Condenando a um degredo sem regresso, os infames, todo o sabor a laranja.

                Apontamentos, Olhares

                O olhar fotográfico

                Desde a primeva visão gravada por Joseph Nicéphore Niépce, em 1826, a partir da varanda da sua casa em Vincennes, a fotografia testemunha a dimensão expressiva do silêncio. Sinal primário da arte fotográfica, a suspensão no tempo da imagem captada com a câmara retira o fotografado do tumulto dos dias, complexificando e alterando a sua primitiva e mais simples conformação simbólica. O trabalho do silêncio intervém assim na construção de sentidos que de outro modo permaneceriam indizíveis. Roland Barthes falava, em A Câmara Clara, de um «saber fotográfico» absolutamente único e intraduzível. Palavra alguma o pode explicar. Resta-nos olhar. Olhar sempre.

                  Apontamentos, Artes, Fotografia

                  Nómada

                   

                  Kenneth  White salienta, em O Espírito Nómada, a grandeza possível, infinita e insaciável, da viagem que resulta mais da atitude de quem a busca que do movimento de quem a cumpre.

                  Os nómadas não têm história, têm uma geografia e essa geografia, que tem lugar no «espaço plano» das estepes, escreve-se por meio de uma «linha criativa de fuga» caracterizada pela rapidez, uma rapidez «fora da lei», mas no fluxo, fora do âmbito da «máquina racional administrativa», seguindo as correntes de energia. (…) Não que seja em absoluto necessário passarmos todo o nosso tempo a viajar, como Frobenius, pelas estepes e pelos desertos. Deleuze, refina a sua ideia de nómada até ao paradoxo: «O nómada não é necessariamente alguém que se agita: há viagens no lugar, viagens em intensidade, e mesmo historicamente os nómadas não são aqueles que se movem à maneira de migrantes, pelo contrário, são aqueles que não se movem e que se põem a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar escapando aos códigos.»

                    Apontamentos, Olhares, Recortes

                    A aventura

                    Para a estética romântica, poesia e aventura não eram experiências puras, desinteressadas. Além do pormenor e da peripécia, ambas detinham um móbil, ambas visavam preencher um destino partilhado de uma forma passional mas razoável. Escrever ou pensar, escolher ou agir de outro modo, insinuava uma vontade de fuga, uma tentativa de escape, vista como algo de socialmente perigoso e por isso condenável. Só a partir das décadas finais do século XIX o desejo de tomar sem barreiras a indefinida direção da aventura deixou de ser tão insistentemente olhado com essa carga negativa. E só depois de Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, o desejo de ação sem outro objetivo que não o cumprimento de uma vontade indómita e de um imperativo inexplicável passou a guiar sem necessidade de justificação aqueles que escolheram o caminho da jornada insurrecta, da via errante. Sem norte seguro, sem clara intenção, sem absolutas certezas.

                      Apontamentos, Memória, Olhares

                      O microdiploma

                      O diploma

                      Correndo o risco de insistir num assunto repisado, chamo a atenção para o parágrafo do Miguel Cardina que, no Arrastão, sublinhou três fatores importantes relacionados com a microlicenciatura do ministro Relvas: a desgraçada dimensão ética da mentirola aprontada pelo próprio sobre a sua formação académica; as ligações perigosas entre setores dos partidos do poder, certos negócios e determinadas instituições do ensino superior privado; o provincianismo traduzido na vontade de deter o título de «doutor» para se fazer respeitar entre as massas informes de fatos cinzentos. Junto-lhe um curto comentário sobre dois aspetos que têm sido tratados de maneira mais lateral mas merecem alguma atenção, transcendendo até o timing preciso deste episódio de vaudeville. (mais…)

                        Apontamentos, Olhares, Opinião

                        Elvis’54

                        Elvis Presley

                        Elvis “The Pelvis” Aaron Presley gravou o seu primeiro álbum a 5 de Julho de 1954. Há precisamente cinquenta e oito anos. E o planeta não mais deixou de bambolear as ancas.

                        [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=w-ii6jpdOEk[/youtube]
                          Apontamentos, Artes, Música

                          A dúvida

                          Cioran
                           

                          E. M. Cioran sobre a escravidão da absoluta certeza. Em Do Inconveniente de Ter Nascido (Letra Livre).

                          A partir do momento em que formulo uma dúvida, ou mais exactamente: a partir do momento em que sinto necessidade de formular uma, experimento um bem-estar curioso, inquietante. Ser-me-ia de longe mais fácil viver sem qualquer vestígio de crença do que sem qualquer vestígio de dúvida. Dúvida devastadora, dúvida nutritiva!

                            Apontamentos, Recortes

                            Havia o céu

                            Albert Camus
                             

                            Para Albert Camus, a pobreza que conhecera, que vivera, durante a infância passada em Argel, não lembrava necessariamente a mais crua desgraça. Ei-la à luz de O Avesso e o Direito.

                            Nas noites de Verão os operários punham-se à janela. Na sua casa não havia senão uma janela muito pequena. Traziam-se então cadeiras para defronte da casa e gozava-se a noite. Havia a rua, os vendedores de gelados ao lado, os cafés em frente, e os ruídos de crianças correndo de porta em porta. Mas sobretudo, por entre as grandes figueiras, havia o céu. Há uma solidão na pobreza, mas uma solidão que dá a cada coisa o seu valor. Com um certo grau de riqueza, o próprio céu e a noite cheia de estrelas parecem bens naturais. Mas no fundo da escada, o céu retoma todo o seu sentido: uma graça sem preço.

                              Apontamentos, Recortes

                              Uma gente

                              Wislawa Szymborska
                              Wislawa Szymborska

                              Uma gente em fuga de outra gente,
                              num país debaixo do sol
                              e de algumas nuvens.

                              Deixam para trás um tal seu tudo,
                              campos semeados, umas galinhas, cães,
                              espelhos, nos quais o fogo se mira,

                              levam às costas os cântaros e as trouxas,
                              quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.

                              É em silêncio que alguém desfalece,
                              é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
                              e alguém sacode o filho morto.

                              Nunca é pela estrada que têm à frente,
                              nem é esta ponte
                              sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
                              Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
                              no alto, um avião errante rodopia.

                              Dava jeito ser invisível,
                              pedra de cor parda,
                              ou ainda melhor não existir
                              durante um pouquinho ou por mais tempo.

                              Mais ainda está por acontecer, apenas onde e quando.
                              Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quem e quando,
                              de que forma e com que intenções.
                              Se puder escolher,
                              talvez não queira ser inimigo
                              e os deixe com alguma vida.

                              Wislawa Szymborska – de Paisagem com Grão de Areia
                              (trad. Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)

                                Apontamentos, Poesia

                                O louco da aldeia

                                Solidão

                                Discriminado pelo comportamento ou pela fala, em cada pequena comunidade é o «louco» quem anuncia as verdades que muitos reconhecem mas ninguém verbaliza fora do domínio do privado. Na aldeia, na pequena vila, na cidade provinciana, é fácil identificá-lo pela presença diária, pela estranheza do comportamento, pelo estatuto de marginalidade. Ele pode ser o doido, o beberrão, o velho que perdeu o tino, o pobre de pedir, o vagabundo, o sem-abrigo, a prostituta entrada na idade. No limite, pode também ser o poeta, o artista, ou aquele que aspira a sê-lo, principalmente se não detiver algum reconhecimento público. Se o tiver, caso raro, ganha então o estatuto de excêntrico, sinalizando uma promoção social.

                                Esses «loucos» eram particularmente visíveis em sociedades nas quais o Estado-Providência faltava ou falhava: em Portugal, antes da Revolução de Abril, quando os mecanismos de apoio social eram escassos ou nulos, era vê-los de manhã, esperando em grupo que as tascas abrissem, pedindo esmola nos adros das igrejas, deambulando pelas ruas para servirem de divertimento dos que se julgavam integrados e sãos de espírito. O jornal da terra erguia-os como figura local «típica», supostamente única, como vulto curioso, um pouco cómico e extravagante, a quem se deveriam dar uns trocos para que pudessem continuar a viver e deixassem os outros em paz. E quando enfim morriam, tinham reservado um parágrafo de obituário, que assinalava para memória futura, num último assomo de indignidade, o trilho de uma vida de desterro, desconsolo e abandono.

                                  Apontamentos, Democracia, Olhares

                                  Ai Angola!

                                  Reprodução de um documento, disseminado através do Facebook, que justifica o maior eco possível. Testemunho tristemente exemplar do comportamento arbitrário do regime de Luanda. E afronta às longas décadas de luta de tantos angolanos pela democracia e pela independência do seu grande país.

                                    Apontamentos, Democracia, Olhares