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«Espalhafato tecnológico»

Tecnologia

«Portugal é o segundo país entre os estados europeus da OCDE mais bem classificados no que diz respeito à sofisticação e ao acesso online a serviços públicos», escreve o diário Público. À frente de nós fica apenas a Áustria e situamo-nos acima do Reino Unido, da Noruega e da Suécia, países que habitualmente encabeçam os rankings relacionados com as tecnologias da informação. Só que em 2008 apenas 18 por cento dos cidadãos portugueses usavam serviços públicos em linha, o que coloca o nosso país em 17.º lugar numa lista de 22 países. Qualquer pessoa que não se deixe impressionar pela política do «espalhafato tecnológico», feito em larga medida de aparências, percebe que a disponibilização dos meios não tem acompanhado o seu uso regular e eficiente. No meio universitário, por exemplo – que julgo conhecer razoavelmente –, na maioria das áreas o aproveitamento dos computadores raramente ultrapassa o processamento de texto, a utilização irregular do e-mail e uma navegação muitas vezes errática. Basta observar-se como a generalidade das máquinas conserva inalterável, anos a fio, a configuração com a qual foram originalmente instaladas, sem esforço algum de personalização e de desenvolvimento. Porque não parar então com o show-off centrando-nos na formação? É muito mais útil, embora se revele menos espectacular e proporcione menores margens de lucro para os sempre prestimosos fornecedores de máquinas e serviços.

    Atualidade, Cibercultura, Opinião

    Guerra dos mundos

    Guerra dos mundos

    Acabo de instalar o Windows 7 no portátil e no computador de secretária. A tarefa foi rápida, correu muito bem, e, para já, a impressão é de que a Microsoft produziu finalmente um sistema operativo ao mesmo tempo fiável, intuitivo e atraente. O que não significa perfeito. Aliás, trabalho há anos com diversos SO em simultâneo e não conheço um sem defeitos. Talvez por isto me pareçam absurdas as sucessivas guerras travadas entre a Apple e a Microsoft a respeito da perfeição imaculada dos seus produtos. Reconheço a transparência e a beleza do interface dos produtos da maçã (sou, aliás, feliz proprietário de um iPhone e de um iPod), mas aprecio também a versatilidade e o custo mais baixo das criações da empresa fundada por Mr. Gates. Que cada uma das marcas diversifique a oferta, baixe os preços e se torne cada vez mais próxima dos consumidores, parece-me do interesse de todos (e delas próprias também, naturalmente). Por isso considero um pouco idiotas e desnecessariamente agressivos vídeos como este da Apple ou este da Microsoft destinados a ridicularizar a concorrência ofendendo ao mesmo tempo os consumidores. Tal como me parece sem sentido o sorriso de cumplicidade que diante deles os facciosos emitem.

      Atualidade, Cibercultura

      Marroquinaria

      Marrocos

      O verniz democrático da monarquia marroquina cai com facilidade. O simulacro de abertura e de modernidade com o qual vai iludindo os seus interlocutores do norte não resistiu às caricaturas de Khalid Gueddar, que «ousou desenhar a família real marroquina» e que por esse motivo está a ser julgado. E o diário Le Monde, que as publicou em França, foi proibido de circular no reino. A caça e a punição de jornalistas independentes, essa vem de trás e continua. Mais uma «especificidade» a respeitar?

        Atualidade, Democracia

        Jovem Guarda

        Gulag

        A sobrevalorização da juventude, inaugurada com a emancipação dos baby boomers e a apoteose da cultura «sessentista», mas entretanto recuperada pelo capitalismo, sitia-nos dia e noite. É ela que tem levado os nossos principais partidos, quase todos eles – à excepção, talvez, do Bloco de Esquerda, que por ser um partido maioritariamente jovem não precisa para já de expedientes desta natureza – a atirar para a segunda fila visível dos comícios, das conferências de imprensa e das bancadas parlamentares com pessoas cuja qualificação fundamental, em alguns caos, é precisamente essa: ter menos de trinta anos, cinturinha estreita, um pouco de sex appeal e, claro, uma dose qb de fidelidade política. O patético e fugaz caso de Carolina Patrocínio, a «mandatária» do PS a quem em boa hora rapidamente tiraram o microfone, é exemplar dessa subversão do conceito de juventude, afirmado como um valor em si mesmo. Naturalmente, um partido ideologicamente arcaico e globalmente envelhecido como o PCP, precisa muito de recorrer a este género de expediente. E então lá puxa, para as mesas das conferências de imprensa, para as filas dianteiras dos comícios e desfiles, para um ou outro lugar visível da Assembleia da República, de alguns decorativos nascidos depois de 1980.

        Claro que nem todos eles ficam bem na fotografia, pois assim que começam a falar – aqueles que o fazem – se percebe como a data do BI nada tem a ver com uma abertura ao tempo em que vivemos, com a ousadia, o humor descomplexado, a humanidade sem preconceitos ou a inteligência criadora que são características, presume-se, dos jovens que são jovens. A generalidade dos rostos visíveis e das bocas falantes da JCP mostram claramente esse lado, pois representam, quase invariavelmente, justamente aquilo que o seu partido tem de mais cavernoso e dogmático. Os exemplos são inúmeros, mas basta por agora olharmos para o último.

        Falo, evidentemente, do caso da deputada Rita Rato, de 26 anos, membro da Direcção da Organização Regional de Lisboa do PCP e da Direcção Nacional da JCP, «licenciada em Ciência Política e Relações Internacionais» e mestranda na mesma área (sic), a qual, confrontada com a pergunta jornalística sobre a existência do Gulag, afirmou: «não sou capaz de responder porque, em concreto, nunca estudei nem li nada sobre isso». Este «isso» trata-se de um pequeno detalhe: a morte de milhões de seres humanos – não apenas milhares, como refere um outro texto no qual também se comenta o caso – e a destruição física e moral, ao longo de décadas, de largos milhões de outros, numa escala numericamente superior à do Holocausto e que abrangeu desde simples cidadãos sem culpa formada a muitos militantes comunistas «culpados» apenas de, real ou imaginariamente, terem divergido de Lenine (sim, o Gulag foi inaugurado ainda em vida do chefe dos bolcheviques) e sobretudo de Estaline. Aquilo que impressiona não é a ignorância da Rita diante de um tema sobre o qual existem tantos livros e documentação disponível, uma vez que, provavelmente, ela nem será totalmente verdadeira, mostrando apenas falta de jeito na tentativa de fugir à questão. O que preocupa, e muito, é, para além da pequenez de formação cultural (e académica) que revela, o facto de alguém com as suas responsabilidades políticas e esta dose de ignorância (ou, pior, de má-fé) ser deputada num parlamento democrático e quadro de um partido que o integra. Mas se não arrepiar caminho terá o futuro assegurado dentro do seu círculo de giz.

        Post Scriptum – No número de Novembro da revista mensal LER, à venda dentro de dias, publicarei um artigo extenso sobre a literatura do Gulag. Talvez possa interessar também a quem jamais ouviu falar do assunto de outra forma que não seja a da perspectiva cúmplice ou desculpabilizadora.

          Atualidade, Memória, Opinião

          Saramago e o talibã

          Saramago

          É verdade que Saramago fez afirmações descomedidas sobre o valor histórico e a medida ética da Bíblia. O excesso não se encontra, porém, nas marcas de iconoclastia que elas contêm, na crítica da violência inerente à matriz das religiões do livro que elas comportam, mas sim no modo simplista do qual o escritor se serviu, uma vez mais vertido naquele tom de arrogância e superioridade moral para o qual não há já paciência. Acontece porém que a onda de protestos que se lhe seguiu tem alguns contornos perigosos, e se pessoas como um tal Mário David, ao que consta deputado europeu do PSD, consideram que as palavras do autor de Caim não passam de «imbecilidades» e de «impropérios», capazes de justificarem a perda compulsiva de nacionalidade, as coisas atingem um grau de gravidade superior. Mostram que existem portugueses com responsabilidades políticas que têm cabeça de talibã ou talvez de familiar do Santo Ofício. E isto já preocupa um bocado.

            Apontamentos, Atualidade

            Fantasia bíblica

            Bíblia ao pequeno almoço

            Contou-me certa vez um antigo dirigente estudantil que na juventude tinha lido e sublinhado integralmente O Capital. Disse-lhe então uma coisa um bocado destemperada mas sincera: «Acho que merecia um prémio. Ao fim destes anos todos a viver como marxista e ex-marxista, e a conviver com marxistas e ex-marxistas, é a primeira pessoa que encontro que tenha lido O Capital de uma ponta à outra». Admito que também não o li na totalidade e costumo sempre sugerir a quem sei que jamais o lerá – mas precise de alguns rudimentos sobre os conceitos de mais-valia e de modo de produção capitalista – que ao menos se entretenha com o prefácio à Contribuição para a Crítica da Economia Política. Como é sabido, este apontava já para algumas das principais teses desenvolvidas anos depois no livro mais espesso do barbudo de Trier.

            Lembrei-me disto quando soube hoje pelos jornais que os resultados de um inquérito feito a nível nacional revela que «apenas» 9,7% dos portugueses leram a Bíblia Sagrada. Por acaso sou um deles, embora o tenha feito numa idade em que apenas vi aquilo que queria ver: uma narrativa mágica sobre a eterna luta entre o Bem e o Mal que eu concebia à imagem e semelhança de um filme de Cecil B. DeMille ou de William Wyler. Mas pelo que conheço dos meus compatriotas e dos seus hábitos de leitura – a larga maioria nem o Código da Estrada de João Catatau terá lido com atenção de fio a pavio –, não me parece que tantos o tenham feito. Corro alguns riscos ao dizer isto, mas acredito que uma boa parte dos que afirmaram ter lido a Bíblia se devem referir a fragmentos do Novo Testamento escutados num ofício religioso ou àquele intocado volume negro de capa cartonada que têm lá em casa, dignamente perfilado com a Enciclopédia Alfa, o Livro de Pantagruel e os volumes encadernados da obra completa de Agatha Christie que escondem da pequenada a trilogia do Henry Miller. Ou será mesmo assim ou então a vida terá feito de mim um cínico e um incréu.

              Apontamentos, Atualidade

              «A derrota é uma coisa preciosa»

              Não basta deixar um link para este artigo do Rui Tavares nos destaques que costumam ficar por uns dias ali na coluna da direita. Quero sublinhá-lo pelo que nele se diz e pelo dele emana como exemplo. Gostaria muito de ouvir responsáveis do Bloco – e não apenas companheiros de jornada ou outsiders – a reflectirem assim, em público, construtivamente mas sem complexos, sem a preocupação de aparentar unanimismo, sobre o caminho próximo futuro da democracia e da esquerda que conta, aceitando que o caminho por si escolhido nem sempre tem sido perfeito, que as prioridades por vezes podem ser outras, que existem frentes por ocupar.

                Atualidade, Olhares

                E agora?

                escadas, labirinto

                Sem rodeios: o principal vencido destas eleições autárquicas foi o Bloco de Esquerda. Mas a derrota só terá admirado quem viva demasiado fechado sobre o seu próprio universo de convicções. Para os outros, ela era de certa forma esperada. Anoto rapidamente quatro explicações que não esgotam o tema.

                1. Com uma descida para pouco mais de um terço da percentagem de votantes em apenas duas semanas, ficou mais do que claro que uma boa parte do voto nacional (e local) no Bloco é um voto de protesto. Por si só, o empenho de muitos militantes e o talento de alguns dos seus rostos mais conhecidos, bem como a capacidade evidenciada para impor uma linguagem pública adequada ao «ar do tempo», ainda não são suficientes para gerar um espaço estável de identificação. E para assegurar a necessária confiança na sua capacidade para gerirem de facto as vidas das pessoas.

                2. Por enquanto, quando descemos ao terreno, à dimensão do concelho, da freguesia, do bairro ou da rua, percebemos rapidamente a fragilidade orgânica do BE, as dificuldades de implantação social de muitos dos seus militantes e activistas, a falta de experiência de gente empenhada, muitas vezes generosa e cheia de energia, mas a quem falta sob muitos aspectos trabalho consistente reconhecido. Isso nota-se bastante no contacto directo e em eleições desta natureza, onde o que conta são principalmente os rostos dos candidatos e a segurança que oferecem.

                3. Tornou-se agora mais sensível uma das debilidades do Bloco que tem acompanhado o seu trajecto. Refiro-me ao facto de, durante a maior parte do tempo, a sua agenda se ter concentrado em excesso no trabalho parlamentar e nos calendários eleitorais, reduzindo progressivamente uma das áreas de intervenção do BE original que era a participação diária dos seus militantes, e também das suas estruturas nacionais, em causas que tenham a ver com interesses e expectativas situados para além do combate institucional. Reconheça-se: um espaço que o PCP tem sabido preencher melhor.

                4. Falo apenas como observador: é cada vez mais perceptível a opacidade do Bloco em relação à sua política de alianças. A «esquerda de confiança» – sempre achei infeliz e ambígua a expressão – hesita quando se trata de conciliar interesses, de «sujar as mãos» em experiências de poder que reduzirão necessariamente o peso do seu lado protestativo. Daí o grande erro que foi recusar em Lisboa uma aproximação a António Costa – o Daniel Oliveira já escreveu sobre isso – e, pior, o ter escolhido como alternativa um candidato que representa, em termos públicos, uma das vertentes mais rígidas do heterogéneo BE.

                Agora é preciso emendar caminho, rever expectativas, e, acima de tudo, tornar mais claros os objectivos do combate político. O que implica luta de ideias, discussão de projectos, e não apenas passar um pano morno por sobre as feridas. Mas isso será, naturalmente, com os militantes do Bloco.

                P.S. – Para que não existam confusões: eleitor em Coimbra, votei BE e apoiei publicamente o BE tanto nas legislativas como nas autárquicas. Não estou arrependido, mas também não sou cego.

                  Atualidade, Opinião

                  A «rua» madeirense

                  Guerrilha

                  Como muitas outras pessoas que politicamente nada têm a ver com eles, tenho vindo a desenvolver alguma admiração pelo trabalho guerrilheiro dos militantes do PND. Aquele grupo de cidadãos um bocado reaças mas corajosos que na Madeira lutam praticamente sozinhos contra o poder arbitrário e troglodita de Jardim, Ramos e respectiva confraria. Que apenas se mantém no poder porque os governos da República condescendem com as tropelias e os contribuintes portugueses, todos eles, pagam a «vasta obra», as facturas e os respectivos juros. Uma vez que está fora de questão um desembarque de pára-quedistas aliados no Paúl da Serra ou na Ponta do Pargo, e uma grande parte da oposição local é visivelmente conivente com a teia clientelar do PSD – ou então demasiado «responsável» e instalada para se envolver em tropelias – restam-nos estas pessoas para falarem a única língua que Jardim realmente entende. A da rua, do berro e do empurrão. Mas assim ouvimo-los.

                    Atualidade, Democracia

                    Um problema para o Super-Obama resolver

                    Super-Obama

                    Hoje de manhã, quando me perguntaram o que pensava sobre a escolha de Barak Obama para Nobel da Paz, pensei que estavam a gozar comigo. Não porque me parecesse completamente imerecido – não faço para daquele grupo de idiotas que considera «Obama pior que Bush» sem conseguir perceber que o vento mudou e a América com ele – ou por falta de simpatia pela pessoa em si. Longe disso. Mas simplesmente porque ainda não tinha ouvido a notícia e não a julgava possível. Acontece que a parte que cabe ao presidente dos EUA na obra de pacificação do mundo está ainda quase toda por fazer e declarações de intenção, associadas a enormes doses de charme, não deveriam servir, julgava eu, de atestado de cumprimento da missão que este prémio supõe. Ao mesmo tempo, eleva a fasquia e coloca sobre os ombros do presidente americano uma pressão que pode vir a prejudicar o seu trabalho futuro. Obama não é Clark Kent e muito menos o Super-Homem.

                      Apontamentos, Atualidade

                      Desespero e silêncio

                      Cadência

                      Não são «manifestamente exageradas» as notícias que chegam sobre o número de suicídios – 24 pessoas em 18 meses – entre os trabalhadores da France Telecom incapazes de corresponderem às metas brutais, às cadências impossíveis e às deslocações forçadas que têm sido impostas pela administração da empresa. Como método, o processo não é novidade alguma, e conhecem-se desde há décadas situações análogas ocorridas, por exemplo, nos EUA, no Japão ou em Singapura. No passado, a União Soviética das brigadas stakhanovistas viveu também muitos casos semelhantes. A diferença estará apenas no facto de, por esta vez, as organizações de trabalhadores se terem revelado particularmente atentas denunciando o drama através dos media. Afinal a tradição francesa de independência do movimento sindical e de luta pelos direitos dos trabalhadores não constitui propriamente uma lenda. Talvez ela possa servir de inspiração a muitos dos nossos sindicalistas, por vezes mais preocupados em fazer coincidir as suas batalhas com metas políticas externas do que em ir ao fundo do lado menos visível, mais sombrio, da realidade humana com a qual lidam e que é suposto representarem. Porque é impossível, no actual contexto envolvendo tantas reestruturações profundas e unilaterais, e um culto declarado dos «índices de sucesso», que não ocorram entre nós casos análogos de depressão e desespero. Onde pára a voz das pessoas que têm de os suportar?

                        Atualidade, Democracia, Olhares

                        Eleições autárquicas e kitsch

                        Kitsch

                        Não é fácil abordar a dimensão kitsch de um certo poder autárquico e das campanhas eleitorais que o consagram. O exercício pode ser visto como um gesto imprudente, resultante de snobismo ou de arrogância. Pode ser olhado como manifestação de desdém por um dos círculos do regime democrático onde mais se têm feito sentir as mudanças positivas. Embora qualquer pessoa honesta e razoável reconheça que corresponde também a um dos campos nos quais a corrupção, o esbanjamento e o desatino têm ido mais longe. Em regra impunemente, pois os seus promotores têm quase sempre o bom senso de irem apagando as pistas. Mas resta a obra e o estilo, e sobre estes podemos sempre ir conversando.

                        A voga do kitsch enquanto experiência de mau gosto com capacidade para consagrar códigos estéticos que contribui para sacralizar o poder – nesta direcção, o nazi e soviético foram particularmente eloquentes – materializa uma dos sinais mais fortes deste lado lamentável e disforme da política. Reportando-se à sua ligação com o campo das artes, Gillo Dorfles anotou, num artigo publicado em 1963 na revista Aut-Aut, que o próprio conceito de kitsch é aplicável «à obra de arte, ao seu criador e ao seu desfrutador». Acredito que a ideia pode ser estendida à dimensão visual e simbólica de um certo modo de exercer, de dar voz e de legitimar o poder local.

                        Sob esta perspectiva, exercer o poder local significa então sobretudo «mostrar obra», independentemente da sua integração harmoniosa no meio e da racionalidade do valor de uso que comporta. Produzem-se então – todos conhecemos centenas ou mesmo milhares de casos – estradas e arruamentos desnecessários, rotundas supérfluas, praças megalómanas, edifícios sem serventia clara, museus e bibliotecas desprovidos de recheio e de programação, estátuas e mobiliário urbano de péssimo gosto, opções toponímicas duvidosas, quando não ridículas, e políticas culturais atentas apenas ao paladar e aos ímpetos identitários mais primários.

                        Dar voz passa, nesta dimensão, por personalizar o poder, não tanto em função do resultado final mas antes a partir do rosto visível do «dono da obra». Só isto pode justificar o alastramento frequente de uma política clientelar local tendo como vértice, nos casos de maior sucesso, figuras de chefes locais reconhecidamente autoritários, por vezes corruptos, com uma má imagem para além dos limites físicos do concelho, mas associados a um discurso e a uma imagem populista e kitsch, próprias daquele «chico-espertismo» arrivista e bem sucedido do qual recentemente falou José Gil. Os casos de Ferreira Torres, Valentim Loureiro ou Fátima Felgueiras, com uma iconologia própria, são os mais conhecidos, por mais mediatizados, mas estão longe de serem únicos (o campeonato de Isaltino de Morais é, reconheça-se, um pouco diferente).

                        As eleições autárquicas são também um momento decisivo no processo que visa legitimar a autoridade e as opções de quem se instala. Dada a visibilidade do momento, torna-se aqui mais perceptível do que nunca a dimensão do mau gosto exibido pelas campanhas e pelos seus figurantes. Desde logo na propaganda concebida para a ocasião: a pose «presidencial» na roupa domingueira, o grafismo exuberante e primário dos cartazes, a sobreposição até à náusea da simbólica identitária local, as palavras de ordem sobre a devoção filial do candidato à sua terra e sobre o amor desmedido que consagram às ruas, às tradições e, naturalmente, aos seus eleitores. Aliás, na Fenomenologia do Kitsch Ludwig Giesz chamou a atenção para o sentimentalismo – como é sabido, um subproduto do ultra-romantismo – como um dos recursos mais poderosos de «mau gosto estético». Daí a proliferação de candidatos que se servem dos cartazes para, mimando a publicidade aos concertos de Tony Carreira, chegarem, «com amor», «com ternura», com açúcar e afecto, aos corações sensíveis de quem os elege.

                        Por último, intimamente associados a estes aspectos, as políticas e os programas culturais seguem muitas das vezes a mesma lógica kitsch, assumindo o conceito de cultura na sua perspectiva mais popular – no sentido do vulgar, nem tanto no do etnográfico – e passadista. Declaram, para o efeito, uma opção de interesses por um passado histórico frequentemente manipulado e pelo culto do «popularucho», rejeitando, em regra por inabilidade política, provincianismo e fechamento de perspectiva, uma lógica de adequação ao mundo contemporâneo e às expectativas dos segmentos mais informados e dinâmicos da população que os escolhe.

                        Este panorama não pode ser generalizado, pois subsistem bons exemplos de atitudes completamente diversas. Mas vivendo como vivo em Coimbra, posso dizer que habito um dos mais destacados vórtices da política autárquica kitsch. Fazendo, garanto, um esforço diário para lhe sobreviver e para não deixar de amar a minha cidade.

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                          Bagatelas [virando a página]

                          Labirinto

                          * O Partido Socialista recebeu uma transfusão de sangue de Manuel Alegre e de alguns dos «históricos» que os seus mais fiéis apparatchiki tanto depreciaram ainda há pouco tempo atrás. Em larga medida, e em conjunto com a energia de Sócrates, foram eles quem estancou no limite a hemorragia que iria fazer crescer ainda mais o eleitorado do Bloco. Não foram as Lurdes, os Albertos ou os Augustos.

                          * PS e PSD – partidos «aparelhistas» e, na verdade, pouco politizados – perderam terreno para as forças com um eleitorado mais convicto e mais militante. Basta escutar com alguma atenção a longa fila de pessoas que vota em ambos por hábito e fé, frequentemente incapaz de declarar o porquê da escolha. Poderiam acorrer às eleições para o seu clube do coração ou a tomar a camioneta para Fátima. Com os outros não é tanto assim, embora em democracia, como é sabido, não existam votos de 1ª e de 2ª.

                          * Todos subestimaram o CDS. Provavelmente, até uma boa parte dos centristas o terá feito também. Mas o CDS, deveriam sabê-lo os estrategos, é voz atávica de uma boa parte do «país real». Aquela que vem de passado que perdura, do respeitinho pelas hierarquias que atravessa a longa duração, do preconceito de classe que separa patrões e empregados, patroas e empregadas, do catolicismo ultramontano que sobreviveu a trinta e cinco anos de laicismo democrático como sobrevivera noutros tempos aos dezasseis de republicanismo costista.

                          * Quem vendeu uma imagem dinâmica, cintilante, optimista, atenta à sede de novidade que alimenta as maiorias e às regras básicas da mobilidade cénica ganhou (o PS e mesmo o BE, que agora investiu muito nesse campo). Quem apostou numa campanha repetitiva, negativista, e apoiada em valores antieuropeus ou conservadores, no medo ou no rancor, perdeu (o PSD e, do outro lado, o PCP). O CDS, esse trilhou uma campanha autónoma, pois dirige-se a um eleitorado conservador que reconhece um certo padrão de imutabilidade como próprio da natureza humana.

                          * O método de Hondt continua a fazer das suas. O CDS apenas com mais 0,61% de votos que o Bloco conseguiu eleger mais 5 deputados. Já o BE com mais 1,97% de votos que o PCP conquistou só mais 1 deputado que este. Mas contra isto, sem um irrealizável acordo de revisão da lei eleitoral – que até poderia produzir uma lei pior –, pouco se poderá fazer. Ou não?

                          * O peso da opinião pública na construção de consensos e de dinâmicas de mudança pode agora ganhar uma nova dimensão. O fim do «quero, posso e mando» tenderá a ampliar o debate democrático, uma vez que no novo contexto político é possível fazer vingar posições, e não apenas «marcar posição». A vontade de participação tem assim condições para viver um novo impulso. Resta saber como e se por muito tempo.

                          * O Bloco de Esquerda está numa encruzilhada. Ao contrário do que pensam alguns simpatizantes mais optimistas, dificilmente crescerá mais do que cresceu agora sem se assumir como partido de combate pelo poder. E apenas o pode fazer questionando aquela parte da sua matriz fundadora que se assume como visceralmente anticapitalista e protestativa. Abre-se um tempo de reflexão para que tudo se torne mais claro e equilibrado, antes que o balão comece a esvaziar e as fragilidades apareçam à luz do dia.

                          * Espera-se que a parte sã do PS se deixe de teorias da conspiração e perca a nostalgia da maioria absoluta. E que não permita a repetição da atitude autista ou a vertigem autoritária, apoiadas nas costas largas do «contexto de crise», que dominaram o partido ao longo destes quatro anos últimos. Que tenha coragem política para procurar primeiro o consenso ou o acordo, e não o confronto. Para colocar as pessoas à frente das estatísticas. Provando finalmente que uma maioria relativa pode impor um clima de abertura que o poder não partilhado inevitavelmente rejeita.

                          [virar de página]

                            Atualidade, Olhares, Opinião

                            Precisamos falar

                            Conversa

                            Em função dos resultados destas eleições – e da inconsistência de muitas escolhas, claramente camaleónicas, episódicas e volúveis –, não é preciso ser-se adivinho para prever quatro anos, ou provavelmente menos, de contorcionismo táctico, negociações complicadas e difíceis debates intestinos. Uma coisa é certa: encerrou o mais recente ciclo do poder absoluto. A discussão e e o confronto de ideias ganharam um novo sentido e são agora indispensáveis.

                              Atualidade, Olhares

                              De repente, os outros

                              Musical Chairs

                              De repente lembro-me dos outros. Daqueles que permaneceram na penumbra, verdadeiramente na penumbra, ao longo da campanha. Olhados como eleitores potenciais, a quem seduzir, mas quase sempre ignorados na materialidade das suas vidas, nas diferenças que consubstanciam, nas expectativas e anseios que são só seus. Nas mulheres destacadas por preencherem quotas, aparentando paridade onde existe desigualdade de facto. Nos jovens transformados em figurantes, protagonistas para fazerem ruído e simularem futuro. Nos desempregados que perdem voz à medida que se distanciam da vida activa e se deprimem, fora de comícios, manifestações e arruadas. Nos imigrantes diligentemente varridos para longe das câmaras embora participem do nosso destino comum. Nos idosos cujos rostos passam num instante quando a televisão persegue os candidatos. Nos gays, nas lésbicas, nos artistas, nos intelectuais, arregimentados para evocarem um «capital de modernidade» perante a opinião pública, mas excluídos ou confinados a recantos invisíveis nas propostas concebidas para serem lidas pelo cidadão comum e decifradas pelos legisladores. Lembro-me de todos estes, que são milhões, e pergunto-me sobre o que lhes oferece a política institucional, aquela que verdadeiramente decide e governa as nossas vidas. Aquela cujos actores, após a dança das cadeiras, reocupará hoje os seus lugares reservados.

                                Atualidade, Olhares

                                Um voto crítico mas convicto

                                Bloco em Coimbra
                                Imagem do comício do BE em Coimbra na noite de 21 de Setembro

                                Ser politicamente independente e não ter militância partidária não significa ser contra os partidos e a política, ou permanecer indiferente perante os debates e os conflitos que nos cercam. Esta opção corresponde, no meu caso, a uma escolha que implica um posicionamento crítico construtivo e uma vivência tanto quanto possível empenhada da cidadania. Encaro por isso como um acto de coerência o apoio ao programa e às propostas do Bloco de Esquerda para estas eleições legislativas.

                                Desde logo porque este propõe uma intervenção política «à esquerda», sem complexos, que não é puramente retórica e meramente desenvolvimentista, ou então exclusivamente protestativa e maximalista, como as avançadas pelos outros partidos frequentemente conotados com a esquerda. Não sacraliza um crescimento económico auto-satisfeito e sem norte, ao qual em última instância tudo é sacrificado, como não reivindica um ódio de classes e uma atitude teimosamente isolacionista fora do tempo.

                                Depois, porque a generalidade das listas eleitorais do Bloco não obedece à lógica do aparelho ou da representação fundada na figura supostamente neutra e impoluta da «personalidade». Integra alguns dos seus quadros mais valiosos, dinâmicos e empenhados, como não poderia deixar de acontecer – entre os quais existem por vezes diferenças de pontos de vista, pois o pensamento único não mora aqui –, mas recorre basicamente a pessoas reconhecidas pelo seu vínculo às causas sociais e a experiências pessoais e profissionais de mérito reconhecido.

                                Por último, porque o programa do Bloco de Esquerda propõe escolhas e sugere iniciativas públicas que apontam para a clara afirmação política de uma esquerda socialista, moderada na acção diária mas radical contra a injustiça e a desigualdade, que os adeptos da economia neoliberal e da intervenção meramente gestionária do Estado se têm esforçado para definir como irrealizável, adversária do desenvolvimento e socialmente desastrosa. Ao invés, uma viragem de políticas é possível e acredito ser esse o caminho para o qual apontarão, construtiva e combativamente, os futuros deputados eleitos pelo Bloco. Por isso apoio a sua eleição. Sem com este apoio desactivar a minha vigilância crítica. Antes pelo contrário, se querem saber.

                                Versão «revista e aumentada» de um texto que apareceu há dias em Coimbra em Bloco!, o blogue da candidatura do Bloco de Esquerda às eleições legislativas pelo distrito de Coimbra.

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                                  Saudades de Nikita

                                  Khrushchev

                                  O pícaro coronel Khadafi, pseudo-Nehru da aurora do século 21, tinha 15 minutos para discursar na Assembleia Geral das Nações Unidas. Falou durante 95 – Fidel Castro, recordista absoluto da especialidade, dispendeu 240 em 1960 –, disparando em todas as direcções, qualificando o Conselho de Segurança como terrorista, e chegando a lançar estrondosamente ao chão um exemplar em árabe do documento fundador da instituição que o acolhia. Jogando com o estatuto de inimputável e chantagista que lhe permite compor perfomances desta natureza sem que, no mínimo, alguém se erga do seu lugar e saia da sala ostensivamente, deixando-o a arengar para confrades e clientes. Ou proteste batendo com um sapato na respectiva bancada, como o fez certo dia o saudoso líder soviético Nikita Khrushchev, outro personagem razoavelmente burlesco que foi determinante no seu tempo. Mas esse ao menos tinha alguma piada e não fazia explodir aviões de passageiros no ar.

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