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Noventa dias

direitaesquerda

Sempre me pareceu, ainda o executivo de José Sócrates palmilhava alegre e impante as estradas de Portugal, que o ramerrão de certa esquerda de acordo com o qual PS e PSD são «as duas caras da mesma moeda», não sendo inteiramente falso em termos de macropolítica, projetava um enorme equívoco. Queiramos ou não, foi esta perceção, ainda que expressa de forma ligeiramente mais elaborada, que levou parte dessa esquerda a assinar de cruz a condenação à morte do anterior governo, projetando, numa atitude de contranatural cumplicidade, a mais do que previsível vitória da coligação que sustenta o atual. Foi insensata, pueril e profundamente danosa essa escolha. O governo do PS seguiu, é certo, caminhos ínvios e sinuosos, incapaz de escapar a pressões externas e ao manobrismo da parte mais insana do seu próprio aparelho, inábil para projetar uma política inteligente, independente e corajosa que permitisse buscar um caminho coerente, eficaz e socialmente aceitável no crítico contexto internacional que já se vinha desenhando. Mas bastaram noventa dias de governo PSD-CDS para se notar a diferença, para bem pior, em áreas cruciais. Independentemente do que foi preciso e possível negociar com a troika, das condições em que o anterior governo rosa teria também de ceder em algumas coisas – e fá-lo-ia com toda a certeza –, este, azul-laranja, tem aproveitado para «ir mais longe». Um «mais longe» que não é senão, em áreas críticas como a saúde, o ensino e a solidariedade social, o tentar aplicar em poucos meses, numa lógica de irreversibilidade, o programa que desde 1974 a direita e o patronato mais mesquinho e ultramontano jamais foram capazes sequer de propor. Os trabalhadores, as mulheres, os jovens, os idosos, a classe média, a quem estão a empobrecer e a retirar às cegas direitos absolutamente fundamentais, a quem em nome de um «saneamento financeiro» injusto e sem horizonte estão a roubar a esperança, que o digam.

Nota escrita a posteriori: Este post teve algum feedback na bloga. A maior parte limita-se a registar ou a acentuar a «originalidade» da posição de alguém que foi e permanece muito crítico do PS dos anos de governo. Outra, porém, vê nele uma declaração de apoio a este partido, coisa que só pode «ler» quem de facto só lê aquilo que quer ou não sabe pensar se não a branco e vermelho. Ou então não entende que qualquer mudança política que venha a reconduzir a direita ao seu lugar passa por um debate entre os socialistas e um diálogo efectivamente paritário com eles. E por alterações nas atitudes de irredutibilidade política que roçam a teimosia. Em alguns casos, um pouco tristes, a estupidez.

    Atualidade, Olhares, Opinião

    A comida rápida e a fome

    fast food

    Se não trabalhar no ramo ou tiver alguém na família que o faça, ninguém no seu perfeito juízo defenderá a fast-food. Os hambúrgueres feitos de sabe-lá-deus-o-quê, os pedaços de frango subnutrido, as batatas fritas em óleo reciclado, os condimentos químicos untuosos e coloridos, o sal sempre em demasia, as bebidas ultra-açucaradas. Tudo, já se sabe, veneno para as pessoas normais e para as outras também. Claro que a slow-food da rua ao lado, se descontarmos alguns exageros puristas com os condimentos, é muito melhor. Mas a primeira é razoavelmente barata e adaptada ao ritmo da nossa vida intensa, enquanto a segunda requer mais tempo e quase sempre mais dinheiro. Sei através dos suplementos de fim de semana, das sugestões da nutricionista e das ameaças do médico que devemos evitar a rápida. E tento sempre fazê-lo. Mas para muitas pessoas com a carteira vazia e sem lugar ou tempo para cozinharem não existe alternativa, e é com ela que de vez em quando a dieta alimentar se equilibra um pouco.

    Quando fui bolseiro durante uns meses de inverno na Paris do início dos anos noventa, recordo-me bem, só a McDonald’s, a Burger King ou a KFC me salvaram da miséria alimentar. O mesmo aconteceu em algumas viagens fora de portas, como sempre com o orçamento no limite. Não seria dos mais desgraçados – como Orwell, que na miséria de Londres ainda tinha, sabia que tinha, a alternativa de recorrer aos amigos ou à família – mas todos os dias comia ao lado de centenas de pessoas visivelmente pobres que ali iam para se aquecerem e contornarem a fome com algumas proteínas e os hidratos de carbono que o corpo pedia. Taxar fortemente a comida rápida, como acaba de sugerir o bastonário da Ordem dos Médicos, é proposta cega e precipitada que retiraria outra talhada à parca dieta alimentar de muitos, cada vez mais, dos cidadãos que menos têm e mais precisam. Logo agora que a fast-soup está a ter mais saída.

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      Repórteres de guerra

      Como a própria guerra, o jornalismo que faz dela objeto não se limita aos episódios mais sangrentos da frente, à observação dos destroços ou aos meios da ação política que, invertendo o conhecido aforismo de Clausewitz, fazem a guerra por outros meios. Em regra, as reportagens mais interessantes produzidas em teatro de conflito não são as que descrevem os combates, os avanços e os recuos dos exércitos ou das milícias, mas antes as que retratam em primeiro plano os seus atores e figurantes, soldados e civis, perpetradores e agentes, vítimas e espetadores. No atual conflito líbio, são por isso exemplares e particularmente impressivas as reportagens que Paulo Moura tem escrito para o Público e Juan Miguel Muñoz para o El País. Sendo diferentes os cenários que cada um deles escolhe – Moura, mais na retaguarda, insiste na dimensão humana de quem viu as rotinas voltadas do avesso, Muñoz, perto da frente, sublinha a ansiedade, o medo e a esperança dos que se preparam para combater – ambos oferecem testemunhos de uma verdade antiga, relatada já por William Russell, que nas campanhas da Crimeia estabeleceu o género trabalhando para o Times. Revelam como é em situação de conflito armado que a solidariedade entre os que partilham um destino é levada ao extremo e que a perceção da transitoriedade dos hábitos e das convicções, da sua importância relativa, se revela mais perfeita, mais percetível, passando tudo o resto para um distante segundo plano.

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        Com o fiel Kindle a caminho de Babadag

        Babadag

        Não serei suspeito de não gostar de livros. Afinal vivo deles. Procuro-os sempre, a todas as horas, e faço deles um elo vital na relação com os outros ou na procura de um sentido para morar no planeta. Tenho muitos milhares, tantos que lhes perdi a conta, que me tolhem o espaço doméstico sem que, no entanto, disso me queixe para além do razoável. E como cresci com o seu toque, os seus diferentes odores, o seu rumor, preciso deles para sentir que apesar de todo o mal nem tudo por cá é passageiro, bárbaro e triste. Mas sei que este é um ritual arcaico, de partida, e que em breve – uma brevidade relativa, embora fatal – os livros corpóreos serão memória, objeto de culto e sinal de anciania. Sei, sem a sombra da dúvida, que as bibliotecas serão transformadas em arquivos ao dispor dos eruditos e a generalidade dos leitores servir-se-á de suportes mais leves e móveis, mais fáceis de conservar, de arrumar, de armazenar, de consultar. É verdade que alguns dos aparelhos alternativos de leitura estão ainda na incubadora, mas a tendência é segura, irreversível e independente do desejo de quem o não deseja.

        Comprei hoje mesmo na Amazon o meu centésimo livro para ler quase exclusivamente no Kindle – leio também em formato electrónico no computador de secretária, no netbook e no iPad, mas sei que estes são mais pesados, cansativos e dispersivos – e, estranhamente, muito estranhamente, pela primeira vez senti o forte desejo de terminar um certo volume em papel que tenho em mãos para rapidamente poder voltar ao prazer do pequeno ecrã de carateres em indelével e-ink. Espera-me ali, paciente, o número cem da minha biblioteca 2.0: On The Road to Babadag, um belo livro de Andrzej Stasiuk, o polaco escritor, jornalista, crítico e viajante, sobre trajetos por vias secundárias entre cidades pequenas, obscuras e moribundas da Europa do Leste ao longo das últimas duas décadas do século passado. E o prazer de, clique a clique, com uma chávena de café, um lápis e um papel (por enquanto) ao lado, lhe ir medindo os passos e revirando as páginas.

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          Falta o brilho do Sol

          Hammerfest

          O Sol quase não brilha em Portugal. Os turistas que chegam do Norte extremo talvez não se apercebam disso. Quem viva eufórico um amor novo também não. Para os jockeys da finança brilha sempre. E para os craques do futebol também. Mas para o vulgar cidadão, que conhece em crescendo as contrariedades de cada dia que passa e as incertezas de um futuro sombrio, o Sol já quase deixou de brilhar. Vivemos todos em Hammerfest, aquela cidadezinha do setentrião norueguês na qual, como anunciava com ostensivo exagero o velho manual de Geografia, «até os cavalos se espantam quando passa alguém sem guarda-chuva». Podemos fechar-nos no espaço sagrado, miraculoso, da música, da literatura, das artes, dos pequenos doces caseiros, onde é possível vislumbrar um reflexo da luz solar. Mas ele é cada vez mais raro, frágil, efémero, confinado à imaginação da felicidade. E aos programas políticos no terreno – da esquerda à direita, ocupados com a gestão a olho da decadência mas desinteressados das arquiteturas de futuros – não chega a energia potenciada pela fotossíntese. No entanto, só estes, ou aqueles que saibamos fabricar, podem projetar, como um dia asseguraram os profetas da igualdade, caminhos de regresso à luz que «quando nasce é para todos». Afinal, até em Hammerfest há manhãs claras. Talvez mesmo de esplendor.

            Atualidade, Devaneios, Olhares

            Sombras, futuros e desafios

            portugalbss

            Nunca devemos dizer nunca. Não podemos, por isso, proclamar que os portugueses jamais viveram tempos tão críticos e difíceis quanto aqueles que agora experimentam, e um breve exercício de rememoração histórica facilmente detetará outros momentos fortes de desespero e de aparente impotência. Todavia, aqueles pelos quais atualmente passamos comportam uma dose suplementar de dramatismo, uma vez que os espaços de comunicação que a todos integram colocam, agora sim pela primeira vez, o conjunto dos cidadãos, e não apenas alguns, num estado de reconhecimento de que se encontram a viver uma viragem – e uma viragem projetada num horizonte sombrio, não aquele claro e otimista que o 25 de Abril abriu – que marcará por muitos anos as suas vidas e as vidas das gerações lhes sucederem. O que Portugal. Ensaio contra a autoflagelação de Boaventura de Sousa Santos nos propõe é a busca de antídotos capazes de afastarem a recepção da catástrofe de forma passiva, ou, pior, vivida num estado de autoflagelação que, como o fado, preludia a desgraça e a depressão. Neste utilíssimo ensaio, o sociólogo parte de um amplo cenário de crise, integrando «uma crise financeira de curto prazo, uma crise económica de médio prazo e uma crise político-cultural de longo prazo», para pensar a forma de lhe minorar os efeitos e de a derrotar.

            Como é próprio do seu já longo trabalho de reflexão política, Boaventura não prefigura aqui explicações fáceis ou soluções prodigiosas. Reconhece os escolhos, inquirindo a sua origem, morfologia, sequelas e processos de remoção, procurando ao mesmo tempo defrontar as explicações e as propostas dos políticos e comentadores nacionais que falam do seu próprio país, de nós, como fazendo parte de um lugar distante, «habitado por gente que conhecemos mal, por quem não temos especial estima e que certamente merece o fardo que lhe cabe carregar». O objetivo nuclear é superar esse estado de passividade e derrotismo, projectando num plano nacional, europeu e global os caminhos a partir dos quais será possível idear a esperança a que temos direito, dado que «esperar sem esperança seria o pior que nos poderia acontecer». Pode concordar-se ou não com alguns aspetos do diagnóstico, aceitar ou não todos os métodos de cura propostos, mas sai-se da leitura com uma segura certeza: na presente situação, com o abismo à vista, entre fatalismo e inconformismo não existe via intermédia. Um ensaio norteado por uma visão solidária do mundo e por aquilo a que o autor chama uma certa consciência de «otimismo trágico», a incluir de imediato na biblioteca fundamental sobre os futuros de Portugal.

            Boaventura de Sousa Santos, Portugal. Ensaio contra a autoflagelação. Almedina. 162 págs. Publicado na LER de Julho-Agosto de 2011.

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              Guerra e cumplicidade

              isto não é ficção

              A crítica contemporânea da velha ideia de «guerra justa» apoia-se com frequência num erro grosseiro. Parte de um princípio fácil de reconhecer por quem da vida social tenha uma perspetiva não contaminada pela paranoia da violência: todas as guerras são más, todas são devastadoras, todas provocam sofrimento, todas deixam um rasto traumático de medo, perda, mutilação e morte. Por isso, considera essa crítica que absolutamente tudo deve ser feito para que sejam evitadas ou para que cessem. Mas atrapalha-se num equívoco capaz de contrariar as melhores intenções quando sublinha, fundada nos valores do relativismo cultural mais inflexível, a impossibilidade de aplicar à violência armada diferenciados graus de ética e de justiça. Considera então que o justo para uma das partes envolvidas não o é necessariamente para a outra, e, em consequência, desconfia de quem se proponha estabelecer critérios que graduem responsabilidades na aferição do mal.

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                A guerra às avessas

                As imagens até há poucos dias chegadas do conflito na Líbia, mostrando o seu lado desregrado imposto pelo voluntarismo dos insurgentes, foram ampliadas agora que desceram à grande cidade. Em Tripoli, observamos no terreno uma espécie de manual ilustrado da forma de não fazer a guerra. A cadeia de comando é impercetível ou pelo menos irreconhecível, ultrapassada por uma horda que combina deserdados do sistema com uma massa de jovens que, afora o pormenor das armas, se apresentam ao combate como se estivessem a caminho do Festival do Sudoeste. Avançam desafiadores, arrogantes, mas mal armados, pior equipados e em completa desordem. Movimentam-se em campo aberto, usando bonés de basebol brancos ou coloridos detetáveis a olho nu pelos atiradores inimigos, t-shirts do Inter de Milão ou com a efígie do Che, keffyehs iguais aos da Fatah, corsários de marca e sandálias havaianas. Disparam em todas as direções, a qualquer momento, gastando munições sem um sentido claro ou objetivo percetível, sem precisar um alvo do qual não possuem quaisquer coordenadas, por vezes com companheiros na provável linha de tiro.

                Nestas condições, é inevitável que uma grande parte das mortes e ferimentos seja autoinfligida. A ocupação do complexo de Bab Al-Aziziyah foi particularmente notável sob este aspeto, assistindo meio-mundo, em direto pela televisão, ao que parecia ser uma réplica de um imenso e ruidoso mercado árabe, com pessoas circulando aos magotes em todas as direções, conduzindo pickups em derrapagem como se fossem burros de carga em versão turbo, transportando objetos roubados, aqui e ali tentando mesmo vender algumas coisas aos jornalistas ocidentais. Mas se gente nestas condições pôde avançar desta maneira e conquistar terreno tão depressa, isso só pode querer dizer que, para além da importante ajuda militar da NATO, o regime de Khadaffi se encontrava ainda mais dividido e isolado das pessoas comuns do que poderíamos ingenuamente imaginar. Só neste cenário podemos entender que tenha sido possível chegar-se a um tal ponto de não-retorno, fazendo tábua rasa dos manuais mais elementares da arte da guerra clássica ou dos princípios consagrados da guerrilha urbana. Ainda assim é extraordinário não se ouvirem apelos ao bom-senso táctico e a uma atitude cívica que pouparia muitas vidas.

                A partir de hoje os posts publicados seguirão as regras do último Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

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                  Não há revoluções perfeitas

                  Não há revoluções perfeitas e ainda bem que assim é. As revoluções imperfeitas que procuraram fazer-se passar por perfeitas transformaram-se rapidamente em instrumentos de uma ordem social imposta, tendencialmente despótica, crescentemente violenta e opressiva, que de revolucionário manteve apenas o rótulo e a retórica. Aconteceu com todas aquelas que irromperam depois de deixarem amadurecer os «grandes princípios» e os programas que deveriam ser aplicados com mão de ferro após a vitória da nova ordem. Aconteceu como a francesa, a russa, a chinesa ou a iraniana. Por isso são sempre mais admiráveis as revoluções inacabadas, como a portuguesa, a checa ou a egípcia, que nasceram de princípios vagos e sem um programa claro, que apenas prepararam o terreno para uma mudança de longo curso, inevitavelmente complexa e contraditória, a percorrer em ziguezague, que só a realidade vivida poderia ou poderá ditar.

                  O que importa nas revoluções imperfeitas é pois o instante, o ponto de viragem, o momento de fuga em relação ao passado, a possibilidade de transformar, a consciência de se viver um tempo rigorosamente único de libertação colectiva de uma ordem injusta e indesejada. O que nelas conta é acima de tudo, e talvez exclusivamente, o voltar anárquico da página. Por isso, antes a projecção da esperança e a consciência da possibilidade da mudança – ainda que esta vá alterando os sentidos, e possa trazer consigo muita desilusão – do que o conformismo e a inacção perante as tiranias bloqueadas. Ou a expectativa de um sinal que mostre o momento ajustado para a tal revolução exemplar, feita com os aliados absolutamente certos e em nome da inquestionável «linha justa». É nisto que deveriam pensar um pouco os cépticos crónicos das revoluções desprogramadas, para quem, como na popular chula do Minho, «p’ra pior já basta assim». Estou a falar da Líbia, obviamente.

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                    Responsabilidade ou servidão

                    Na Genealogia da Moral, Nietzsche evoca a «longa história das origens da responsabilidade» para mostrar como esta categoria foi impondo uma disciplina do dever que tornou previsível o comportamento humano. Sob esta perspectiva, ela pode traduzir uma forma de sujeição moral que reduz a margem de liberdade e transforma o indivíduo num ser conformista. No entanto, as coisas não precisam ser necessariamente assim: o «homem da mais vasta responsabilidade», capaz de construir a sua própria ética através da vontade, pode, para o filósofo, caminhar no sentido contrário, promovendo as suas próprias regras como um acto de liberdade. A dissociação entre responsabilidade e conformismo será aliás, décadas depois, particularmente sublinhada pelos existencialistas. Sartre projectou em 1946 a conhecida tirada a propósito do ser humano estar condenado a ser livre: «condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre, porque uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer». Liberdade e responsabilidade aproximar-se-ão assim num núcleo ético que determinará o comportamento de muitos dos elementos de uma geração, a saída dos horrores da Segunda Grande Guerra e da experiência do «totalitarismo ideológico», à procura de um novo conceito de empenhamento cívico e de independência moral. Em The Burden of Responsability, significativamente traduzido na edição francesa por La Responsabilité des Intellectuels, um livro sobre a intervenção autónoma e a contracorrente de Blum, Camus e Aron, Tony Judt lembra a relação desta forma de entender a «escolha responsável» como uma atitude de compromisso de cada um para com os outros, mas também para consigo mesmo.

                    Obviamente, nada disto é tomado em linha de conta pelas figurinhas que, diante do espectáculo terrível dado pelas hordas de pré-adolescentes lançados em actos de violência nas cidades inglesas – e presumivelmente em outras, apenas à espera da oportunidade – vêm agora para os jornais e televisões falar de uma «responsabilidade» que para elas é sinónimo de obediência e de respeito unívoco pelos valores mais tradicionais proclamados no domínio da acção do Estado, da família, das igrejas ou das instituições militares. Que existe um crescente défice de responsabilização social na atitude de muitas pessoas jovens na sua relação com os outros pode até ser verdade. É inegável o alastramento de uma geração de cidadãos que nasceu e cresceu, em numerosos casos, a diferir constantemente para os outros – para os pais, a escola, o Estado, os patrões, no limite para a polícia e os tribunais – a gestão da sua própria vida. Mas este não é seguramente o caso da maioria esmagadora destes jovens em incontrolada fúria, os quais, obviamente, não nasceram em berço de ouro ou em famílias que de tanto os protegerem ou os ignorarem os transformaram em criaturas «irresponsáveis» cujo lugar é uma casa de correcção. As razões são aqui, com toda a certeza, muito mais complexas. É fácil, no entanto, vir agora com o ladainha da responsabilidade, ou da ausência dela, para legitimar atitudes autoritárias que muitos destes psicólogos sociais de pacotilha estão desejosos de ver colocadas em prática, se necessário com o uso da força, por aquelas que proclamam como as «instituições fundamentais da sociedade». Retomando a acepção sartreana, se «o homem é condenado a se fazer homem, a cada instante de sua vida, pelo conjunto das decisões que adopta no dia-a-dia», pode dizer-se que, contrariando-a, esta gente deseja que as coisas avancem no sentido inverso. Que o ser humano se «faça homem» tornando-se mudo e obediente. Este não pode ser o caminho para resolver o enorme problema que temos em mãos.

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                      Erva no asfalto

                      London 2011

                      Com uma vocação natural para tomar o partido dos mais fracos, tenho dificuldade em orientar-me quando tento perceber de que lado estão os bons e os maus nos motins que incendeiam a periferia de Londres e de outras cidades inglesas. Mas porque a vontade de justiça não é impeditiva de pensar um pouco, contorno a perspectiva simplista que tende a explicar o que está a acontecer desculpabilizando «os miúdos» bons – que por impulso partem, batem, queimam ou roubam – e apontando o dedo acusador apenas ao «sistema» mau, que os remete sem remissão para essa fila do fundo de onde procede a revolta.

                      Existe, claro, um ambiente de injustiça social que empurra aqueles rapazes – quase só rapazes, já repararam? – para a ira desmedida e sem desígnio perceptível. Como existe o problema dos lojistas remediados, dos trabalhadores anónimos, dos imigrantes à procura da sobrevivência, que vêm o seu ganha-pão e os seus pertences volatilizados por pessoas das quais se distinguem apenas pelo facto de possuírem um trabalho, um pequeno negócio, acesso a uma vida sóbria mas digna. Não pode excluir-se, evidentemente, a teoria do sintoma, que nos fala sempre do fumo que nasce do fogo, que insiste em que a revolta resulta do medo de um futuro que não pode ser vislumbrado com esperança. Como também não pode esquecer-se o efeito de imitação, que transforma a violência gratuita em exemplo a copiar. Ocorre aqui, de facto, uma «culpa sistémica», partihada, provocada por políticas que empurram tantos jovens para a falta de perspectivas, a miséria material, o bloqueio moral, o desrespeito do outro.

                      Mas existe também uma outra qualidade de culpa que deve ser imputada aos governos, aos partidos que disputam o poder, ao sistema escolar, até aos sindicatos, que, predominantemente preocupados com quem consome, com quem vota, com quem trabalha ou está em vias de o fazer, com quem paga impostos e por isso «conta», se têm muitas vezes esquecido dos marginados, dos precários, dos imigrantes, dos excluídos, principalmente jovens, que têm crescido sozinhos, à toa, «fechados na rua», como uma erva daninha, sem que ninguém se preocupe muito com ela enquanto não começar a invadir o asfalto. Foi isto, parece, que agora aconteceu. E da pior forma possível.

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                        Três personagens (e mais um)

                        Leonardo Padura

                        O desígnio comunista, o ideal que se aplica a projectar um mundo mais justo, menos desigual e por isso presumivelmente melhor, convive com um espectro que lhe ensombra as noites e lhe atrapalha as rotas. A compleição colossal deste fantasma compreende três partes que funcionam em conjunto. A primeira integra o corpus teórico que definiu a teoria da luta de classes e a adaptou à tomada e à conservação do poder pelos autoproclamados mandatários da «classe revolucionária». A segunda parte comporta a experiência catastrófica, bestial e vencida do «socialismo real». A terceira inclui a organização e a prática dos partidos e organizações que juram lutar pelo comunismo sem serem capazes de ajustar as contas com a experiência histórica que o perverteu. Enquanto esta massa não for compreendida e desmembrada, dificilmente o ideal comunista recuperará a sua capacidade para conquistar milhões de partidários e de simpatizantes e para gerar futuros desejáveis e plausíveis de justiça e de liberdade. A percepção deste problema – e desta necessidade também – é uma boa chave para a leitura de O Homem Que Gostava de Cães, o último livro do escritor cubano Leonardo Padura. (mais…)

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                          O ruído do silêncio

                          rua israelita

                          Não é apenas por ser Verão e o número de cidadãos alheados dos infortúnios do mundo aumentar sempre com os calores da estação. Também nos meios habitualmente activos e interessados na mudança parece existir um pacto de silêncio em relação ao que está a acontecer agora mesmo em dois Estados do Oriente Médio. Na Síria, as cidades são bombardeadas sistematicamente pelo exército enquanto os manifestantes pró-democracia, presos, torturados ou simplesmente assassinados – «financiados pela CIA», bradam os mensageiros do costume – esperam em vão por iniciativas diplomáticas que ninguém toma. Fica assim o tirano Assad com as mãos livres para fazer o que bem lhe apetece. Uma boa prova de que do «não-intervencionsimo absoluto» pode resultar uma efectiva cumplicidade com o crime mais ignóbil. Em Israel, manifestações com uma dimensão sem precedentes questionam na rua as políticas sociais do governo, mas a solidariedade de quem do lado de cá se bate por idênticas causas permanece muda, queda e invisível. Outra prova de que do «anti-semitismo primário» facilmente pode resultar uma grande capacidade para confundir o justo com o injusto. Em ambos os casos, o activismo selectivo, mais preocupado com os meandros da política interna e os equilíbrios geoestratégicos, com o que importa invocar e o que interessa calar, do que com a vida efectiva das pessoas concretas, convive pacificamente com a iniquidade. Cala e por isso consente.

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                            Gares, comboios e o resto

                            A partir da década de 1830, com a abertura das primeiras linhas preferencialmente destinadas a passageiros, a Europa e as Américas descobriram no caminho de ferro uma dimensão da utopia. O novo meio de transporte permitia agora percorrer enormes distâncias a velocidades inauditas, construindo, para quem tinha a possibilidade de viajar, uma forma radicalmente nova de apreender o mundo, os mapas, as fronteiras, as paisagens, as relações humanas, os negócios, o conhecimento e até a memória. A literatura oitocentista testemunha mil vezes a participação do comboio e das suas linhas na aceleração dos enredos, na verbalização do fascínio romanesco por uma geografia renovada feita de chegadas, de partidas e de movimento.

                            Esta dependia em larga medida do traçado em rede, que dava azo a que as antigas jornadas lineares, normalmente por etapas, ganhassem agora novas configurações, mais complexas e ao dispor da vontade e da bolsa dos viajantes que se multiplicavam. Mas não servia apenas para os levar a conhecer mundos, uma vez que esses mundos podiam também desembarcar nas cidades. Eça fala-nos do alvoroço dos estudantes que peregrinavam semanalmente até à estação de Coimbra para verem chegar, e logo ali serem abertos, os caixotes contendo as últimas novidades literárias da admirada Paris. O Sud Express surge então como parte do que se acreditava poder vir a ser uma linha continental capaz de unir Lisboa a São Petersburgo. Foi a expansão dos nacionalismos, culminando com as duas guerras mundiais e a afirmação dos Estados autoritários assentes no controlo dos cidadãos, que tornou impossível, e por vezes pintado de negro carregado, o devaneio oitocentista. O medo e o desespero apoderaram-se então das gares e das carruagens, tantas vezes «rigorosamente vigiadas», como evocava o filme de Jirí Menzel.

                            O fim das ditaduras e o derrube do Muro poderiam ter deixado que a utopia ferroviária retomasse o seu caminho, mas entretanto o uso das estradas já se havia tornado determinante. A linha de comboio, no entanto, não deixou de continuar associada a um certo padrão de viagem, tendo ao longo de décadas ajudado milhões de jovens a descobrirem o seu continente e gerações de trabalhadores a ganharem as suas vidas. Habitando o nosso imaginário colectivo, ela está agora em condições de ajudar a resolver muitas das dificuldades de transporte que a crise económica está a impor à maioria dos cidadãos. O comboio tomado – excepto para quem continue a comprar os pacotes turísticos que simulam os míticos Expresso do Oriente ou o Transiberiano – já não como espaço previsível de «aventura e descoberta» mas como uma necessidade e um veículo para ir traçando sucessivas linhas da vida. Assim o considerem as autoridades públicas, antes que os carris abandonados fiquem cobertos de pedregulhos, ervas daninhas e ninhos de serpentes.

                            Fotografia: Marta Bevacqua, The Train

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                              A poesia não é para os cães

                              poetry

                              Para que serve a poesia hoje? é um pequeno livro de Jean-Claude Pinson, recém-editado pela Deriva, que nos ajuda a responder a uma pergunta completamente actual: «O que pode ainda a poesia, quando as suas ilusões líricas do passado recente (proporcionar uma vista desimpedida para o Absoluto, “mudar a vida”…) foram desacreditadas?» Com uma intensidade ampliada quando na ordem-do-dia se encontra a eliminação por decreto – e por organizado descrédito – do que se revela supérfluo, daquilo que não possui valor de uso nem serve para trocar por papel-moeda ou linha de crédito, não podendo aplicar-se a reduzir défices, a aferir «competências efectivas» ou a cumprir «objectivos estratégicos», importa olhá-la como território da clarividência e de resistência, não meramente onírico ou projectado para a evasão, que jamais deixou de ser mas deve reassumir.

                              (…) o poeta – o poeta baudelairiano – confia-se à musa citadina em vez da académica, e coloca-se do lado do que é «fraco, arruinado, entristecido, órfão». Canta sem refilar os «cães calamitosos que erram, solitários, nas ruínas sinuosas das imensas cidades». E talvez seja por a poesia não hesitar em encarregar-se, acrescenta Baudelaire, da «honra dos cães sujos», que pode esperar contribuir para que permaneça aberta outra habitação do mundo, menos alienada. Pois a poesia não é, apesar de tudo, feita para os cães.

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                                Ser, não-ser e parecer

                                parecer

                                A resolução do Conselho Académico da Universidade Católica sobre esse dress code mínimo pelo qual, em proveito da sua dignidade corporativa, são responsáveis professores e alunos, encerra contornos inquietantes. Ela visa banir dos espaços e instalações da instituição os «modos de trajes e formas de apresentação próprias de local de lazer e de desporto», sugerindo, como instrumento de controlo, que «todos os responsáveis pela salvaguarda do ambiente e da imagem da universidade nas suas instalações e no espaço do Campus universitário, devem chamar a atenção dos que se apresentarem de maneira imprópria». Ocorre aqui, desde logo, uma dimensão normativa que colide com a liberdade individual. Ela até pode ser aceitável em quartéis ou prisões, mas não em locais públicos frequentados por pessoas que podem entrar e sair dos espaços sob a alçada do código sem qualquer coacção. Não se percebe, além disso, a quem se aplica, dado que os cidadãos atingidos pela medida podem ser até convidados vindos de outras universidades, de outras culturas, ou simples cidadãos em viagem de férias mas interessados numa conferência ou numa exposição. Pode ainda afrontar identidades pessoais ou colectivas, ostracizadas por «impropriedade» daqueles que transportem no corpo os seus sinais «aviltantes».

                                O que mais importa aqui não é, porém, o caso em si, mas sim a tendência que ele sinaliza. A insinuação da cultura antidisciplinar, nascida nos Estado Unidos na década de 1950, e que dominou o ocidente por mais de vinte anos, traduziu-se, entre outros aspectos, na apropriação de estilos de vida, modalidades de gosto, padrões de vestuário, códigos de comportamento, cambiantes gestuais, linguagens, definidos como uma espécie de prolongamento, no que à vida pessoal dizia respeito, das «estradas da libertação» então abertas. De Lisboa a Praga, ela perturbou particularmente os regimes fechados e autoritários, para os quais a emancipação e a diversidade do parecer – da cor da camisa ao corte das calças e do cabelo – constituíam uma marca de intolerável rebeldia. Para os insurrectos, por sua vez, ela era um sinal identitário, um modo de perturbação da ordem cultural, social e ética que visavam contestar. Não será, por isso, por um acaso que, nestes tempos nos quais passou a ser sinal de boa política a correcção da desordem utópica produzida e propagada durante os sixties, o resgate do fato-e-gravata se imponha como aspecto de um «regresso à ordem». Alguns pedagogos do Estado Novo falavam das universidades como lugares de formação de um «escol de mandantes». Este processo de diferenciação social passava então por uma normalização rigorosa da economia do parecer. Felizmente os tempos são outros e estes círculos já deixaram há muito de deter capacidade para imporem o seu modelo de regulação. Mas teimam em cumprir o papel de difusores de uma concepção de elite – do saber e de poder – destinada a demolir a ideia de liberdade e de igualdade que fundamenta a civilidade democrática.

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                                  Antes tarde que nunca

                                  marreta

                                  Antes tarde que nunca. E mais vale já que depois.

                                  A comissária europeia para a Justiça, Viviane Reding, acaba de propor, em declarações ao jornal alemão Die Welt, o desmantelamento das três principais agências de rating norte-americanas, a Standard & Poor’s, a Moody’s e a Fitch. «A Europa não pode permitir que o euro seja destruído por três empresas privadas norte-americanas», disse esta comissária luxemburguesa, exigindo mais transparência e mais concorrência na avaliação de Estados pelas referidas agências. Resta saber se este tipo de declaração corresponde a uma intenção sincera, a um programa a traçar e a cumprir, ou se se limita a servir para pacificar os ânimos mais exaltados.

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                                    BE

                                    À hora a que termino estas linhas deve ter acabado já o encontro aberto do Fórum Manifesto destinado a debater o passado recente e o futuro do Bloco de Esquerda. Sou um daqueles seus votantes e/ou simpatizantes – com a presunção de aqui pertencer a uma maioria – que não fora a presença forte desta corrente muito dificilmente se teria conservado nessa qualidade por mais de uma década a fio. O reconhecimento desta proximidade acaba, aliás, de ser confirmado pelo documento que serviu de ponto de partida para o debate de hoje, uma vez que me revejo no essencial da sua análise da actuação recente, das debilidades, das forças e das necessidades imediatas do partido. Discordo de pouca coisa, anotando apenas a falta de uns quantos temas que me parecem decisivos, entendendo essa ausência como motivada pelo desejo de «unir em vez de dividir». Mas como sou daqueles que reconhece também a necessidade de, em alguns momentos, «dividir para unir», ou mesmo «para reinar», aqui fica, embora a destempo, o meu pequeno contributo. (mais…)

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