Author Archives: Rui Bebiano

Do inimigo americano

Made in America
[retomando…] Como se sabe, é nas ocasiões difíceis que se mostra o melhor e o pior de nós. As emoções tolhem-nos então a consciência, falamos sem controlar as palavras, gritamos juras que reconhecemos logo serem um pouco exageradas. Diz o povo que «é do vinho!» Nessas alturas, é necessário aplicar um esforço suplementar para se evitar que o mais fundo de nós – os fantasmas, as raivas, os desejos, as expectativas – tolha os nossos actos. Infelizmente é isto que acontece com muitos dos «argumentos» de uma esquerda quase exclusivamente orientada para um espaço mítico cujos reflexos reverbera sem pensar duas vezes. O resultado é, para além do espectáculo triste de uma esclerose exposta em público, a oferta de argumentos aos sectores neoconservadores, cedendo-lhes o espaço de manobra que fora historicamente da esquerda e lhe facultara, durante décadas, a afirmação de uma efectiva superioridade moral.

Recorro, para ilustrar esta situação, a dois extractos da crónica de Constança Cunha e Sá saída no Público de hoje (citações algo longas mas necessárias): «A esquerda, naturalmente, depois de perder o seu “sol na terra” e de ter assistido à destruição sistemática dos seus principais mitos, descobriu no antiamericanismo primário, não só a sua grande bandeira, mas principalmente o seu último (e único) combate. Falhada a gloriosa aventura do comunismo e desfeitos os sonhos da ideologia, resta à esquerda aprender a viver num mundo que a contraria e escolher um inimigo que lhe restitua a identidade perdida. O resultado deste duvidoso exercício é conhecido: um delírio teórico que despreza a realidade e um moralismo sem moral que leva à defesa dos pobres e dos oprimidos e ao elogio de regimes que sobrevivem (e sobreviveram) à custa de uma imensidão… de pobres e de oprimidos.» Mais adiante, CCS refere-se a Miguel Portas, criticando o facto de este ter andado «pelos bairros destruídos de Beirute de braço dado com os heróis do Hezbolah», e lembrando que «este seria prontamente liquidado, se fosse exportado para o Irão, o principal patrocinador dos seus corajosos “resistentes”». E acrescenta: «Mas não é isso que impede este defensor da igualdade entre os géneros, dos direitos dos homossexuais e da separação entre o Estado e a Igreja de apoiar implicitamente um regime teocrático que se distingue pela violência com que trata as mulheres e pela intolerância fatal que nutre pelos homossexuais. O antiamericanismo militante, potenciado pelos erros da Administração Bush, supera qualquer tipo de incoerência e junta, na mesma causa, os mais improváveis parceiros.» Não havia necessidade de dar assim o flanco.

Publiquei há cerca de 5 anos uma pequena crónica sobre a questão do «antiamericanismo como dogma» [ver nota no final deste post], o qual justifica actos espúrios como aquele corporizado por MP (pessoa que prezo como sinal animador, espero que para continuar, de uma «esquerda que pensa» prospectivamente). Não sendo suspeito de simpatias para com as políticas de Bush, gostaria, todavia, de deixar à reflexão algumas palavras de Jean Baudrillard escritas há cerca de duas décadas atrás: «Não consigo deixar de achar que este universo completamente apodrecido de riqueza, de poder, de senilidade, de indiferença, de puritanismo e de higiene mental, de miséria e de desperdício, de vaidade tecnológica e de violência inútil, tem ar de manhã do mundo. Talvez por o mundo inteiro continuar a sonhar com ele, enquanto ele o domina e o explora.» Talvez, acrescento, por, antes ainda da revolução jacobina, ter nascido ali a «erva daninha» da melhor liberdade.

A esquerda que não integrou completamente a lógica neoliberal do sauve qui peut precisa reflectir sobre isto. Como atitude democrática, solidária e construtivamente utópica sobreviverá à usura do tempo e a esta dramática perda de capacidade para compreender o mundo de forma dinâmica e preparar os processos de mudança. Espera por uma refundação que, como todas as refundações, implica a observação dos alicerces e a eclosão de uma série de explosões. Gostaria que não fossem necessárias também umas quantas implosões.

Nota: O artigo que mencionei, publicado originalmente em 2001, encontra-se aqui em formato PDF.

    Opinião

    A velhice de Sciascia

    A velhice de Sciascia
    Um dos primeiros sinais do envelhecimento mostra-se na relação com os processos de mudança. O inexoravelmente envelhecido – seja uma pessoa ou um sistema de ideias – revela uma dificuldade crescente em incorporar as imagens, os acontecimentos, os gestos que não tiveram lugar na fotografia imutável do seu pacto inicial com o mundo. Mede então os sucessivos presentes pelo grau de proximidade ou de semelhança com o modelo original. A partir de um certo limiar, essa teimosia passa a alimentar um processo incontornável de fuga perante o real, o qual deverá moldar-se forçosamente às suas expectativas. Trata-se de um trajecto que se repete de forma dolorosa, legando ao presente os sinais da decadência e acelerando os passos para a irrelevância.

    Uma recente revelação reafirmou-me este elo. Uma leitura deste verão – Cosa Nostra. História da Máfia Siciliana, de John Dickie (Edições 70) – mostrou-me o especto da velhice de Leonardo Sciascia. Quando do combate dos juízes Falcone e Borsellino contra a relação entre o crime organizado e o poder político em Itália conduziu, pela primeira vez, à possibilidade de desmantelamento efectivo da organização siciliana – facto que determinaria o assassinato dos dois juízes em 1992 – Sciascia, já velho e bastante doente, insurgiu-se contra o trabalho de ambos por este colocar em causa a imagem sobre a qual, ao longo de toda a vida, havia efabulado a sua ilha natal. Escreveu então no Corriere della Sera: «Quando me insurjo contra a máfia isso também me faz sofrer, porque dentro de mim, tal como dentro de qualquer siciliano, ainda está vivo um resíduo de mafioso.» Via assim o desmembramento daquela organização «como uma cisão, uma laceração.» Desta maneira, em nome do mundo que muitos anos antes concebera como seu, e cujos fundamentos estavam a ser abalados por um volume de informação sem precedentes, o autor de O Dia da Vergonha – com muitos outros escritos seus um elemento central de formação da consciência internacional anti-máfia que nos anos 80 transformara a série televisiva O Polvo num êxito de audiências e o comissário Corrado Cattani num herói do imaginário europeu – Sciascia recusou mudar e preferiu sair coerentemente deste mundo, concebendo-o como sempre fizera. Um fim triste e, infelizmente, muito comum.

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      A ratoeira e os estrábicos

      No último número do Courrier Internacional, o dossier «Líbano: escrevem os intelectuais» integra testemunhos de escritores de Israel, da Síria, do Iraque e do Líbano. Todos eles procuram, com o êxito possível, permanecer lúcidos debaixo do fogo da artilharia e do rumor dos brados da rua. Natural de Beirute, Wajdi Mouawad – não interessa esclarecer aqui em que família nasceu ou a que deus é suposto orar – conclui a sua colaboração com um grito de dor que deveria ser ouvido por todos aqueles que se apressam a colocar o bem e o mal inteiramente de um dos lados. «O que é aterrador não é a situação política», diz ali Mouawad, «é a ratoeira em que a situação nos coloca e nos obriga, face à impotência de agir, a fazer uma escolha insuportável: a do ódio ou a da loucura.» Num outro artigo, o poeta sírio Adonis fala-nos do espectro de «uma regressão de três mil anos», determinada pela possível destruição do oásis cultural libanês e pelo triunfo previsível dos extremismos religiosos: «O perigo que hoje se corre é o de um regresso ao tempo dos profetas, dos apocalipses, das guerras e do desespero. Um regresso ao absolutismo.» Coisa que não parece incomodar muito as certezas dos nossos analistas estrábicos a propósito de quem são os bons neste conflito decisivo. Vale a pena comprar este número do CI e lê-lo com os olhos abertos.

        Opinião

        O fascismo que existiu

        Concordo muitas vezes com as observações jornalísticas de Vasco Pulido Valente. Muitas vezes, divirjo também do seu tom azedo e, em alguns momentos, gratuitamente provocatório. Para além de uma atenção crítica ao que se passa à sua volta – o que corresponde, actualmente, a uma atitude relativamente rara na imprensa diária – percebe-se uma grande capacidade para se dirigir directamente ao essencial das questões, contornando as meias-tintas próprias de quem tem pavor de chegar a uma conclusão dolorosa ou de levantar problemas que se metam com os fantasmas pessoais. Não posso, porém, deixar de discordar da posição de Pulido Valente quando há dias, em crónica saída no Público, resolveu levantar-se contra o movimento que tem procurado impedir que se destruam ou desvirtuem espaços e edifícios que, de alguma maneira, sinalizam a memória do país que era o Portugal dos anos do Estado Novo.

        VPV referia aí, e bem, uma verdade que algumas pessoas insistem em negar, ou sequer em aceitar ouvir: o país de Salazar e de Caetano jamais viveu um fascismo típico, com a dose de violência e a dimensão totalitária que se sabe ter acontecido em países nos quais este fundamentou a razão de Estado, ou junto de movimentos que não lograram alcançar o poder mas lutaram por governos anti-democráticos, chauvinistas e intransigentes. O salazarismo foi essencialmente um conservadorismo autoritário, beato e pacóvio, que temeu sempre a febre de violência e de expansionismo do Estado que nas décadas de 1920 e 1930 envolveu principalmente a maioria dos cidadãos da Itália e da Alemanha (se aceitarmos o nazismo como um «fascismo» germanizado). A repressão e a censura, tal como a mobilização das consciências através da propaganda e da educação, foram de facto, entre nós, muito mais «benévolos» do que naqueles lugares. Nisto, VPV tem pois toda a razão.

        Só que, apesar dessa «benignidade», o regime salazarista conformou, em Portugal, uma sociedade fechada, desigual, desumanizada, repressiva, arcaizante, cujos sinais aparentemente incorpóreos permanecem em muitos dos nossos atavismos, mas cuja conformação visível se situa nas práticas objectivas e na herança cultural que nos legou. Basta – recomendo-a a quem para tal tenha paciência – uma leitura atenta dos interesses e dos códigos evidenciados todos os dias pela maioria da nossa imprensa regional. Aí, sobrevive ainda o nosso «fascismo» caseiro. É nesse sentido que, enquanto «lugares da memória» e nichos de resistência, as prisões políticas ou os edifícios da Pide – em conjunto com todos os espaços simbólicos que despertam para a lembrança daquela época – merecem ser preservados. Ficarão como sinais de que por aqui existiu, legando ao presente as suas marcas repulsivas, um tempo de ordem e barbárie.

          Opinião

          Cuba, hoy

          Fidel
          Directamente dos cuidados intensivos, reclamando capacidades que estão para lá do humano, Fidel «fala» de si próprio e do lado visível da doença aos compatriotas e simpatizantes de todo o planeta. Não se esquece de deixar claro que, apesar das hemorragias e do peso dos anos, permanece «atento a tudo o que se passa». O que pode espantar é a forma como a generalidade dos meios de comunicação aceita este logro sem pestanejar, veiculando-o como notícia e não como o acto de propaganda e de prestidigitação que é. Nas consciências dos que dele não retiram senão o valor simbólico e o impacto mediático, o «mito cubano» guarda ainda uma grande parte da sua força e antigo sortilégio. Se retirarmos os gusanos de Miami, ninguém parece particularmente satisfeito com o triste cenário que envolve agora o velho comandante dos barbudos.

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            Uma bola em Agosto

            Ele referia-se assim a ela. «Sempre lhe tive muito carinho. Porque se não a tratamos com carinho, não nos obedece. Quando vinha até mim, dominava-a e ela obedecia. Às vezes ela ia por aí e eu: ‘Venha cá, filhinha’, e trazia-a. Tratava-a com tanto carinho como trato a minha mulher. Tinha-lhe uma ternura tremenda. Porque ela é fogo». Quem falava desta maneira da bola de futebol era Didi, o centro-campista brasileiro do Mundial de 58. Não muitos anos depois, nós, os putos que jogávamos ao acaba-aos-dez-muda-aos-cinco numa rua pouco frequentada – longe, por justificada conveniência, do olhar dos nossos progenitores – ainda sabíamos de cor o nome dos três mosqueteiros: Garrincha, Pelé e Vává. Didi era o quarto, sem o qual, como acontecia no romance de Dumas, os outros de pouco valeriam. Foi ainda o inventor do remate em folha seca, feito com parte exterior do pé. Cinquenta anos mais tarde alguém se lembraria de lhe chamar trivela, dando erradamente por seu criador um rapaz português de origem cigana e com nome de Semana Santa.

            Algumas destas coisas, e muitas outras mais, aprendia-as num livro – como sabe sempre bem, cheio de humor, drama, acção e até algum mistério – que nos fala da paixão e das lições do futebol. Chama-se Futebol: Sol e Sombra. Foi escrito pelo uruguaio Eduardo Galeano e editado pela Livros de Areia. Ponha-o lá na listinha dos livros para ler em Agosto e vai ver que depois se sentirá uma pessoa melhor. E perderá alguma ingenuidade também.

              Recortes

              O meu pé esquerdo

              Peace Now
              1. Porque será que recusar qualquer concessão diante do fanatismo religioso, execrar todas as tiranias e qualquer governo de fundamentação teocrática, combater frontalmente o outro que não aceita a minha alteridade, aceitar o direito de qualquer povo (de qualquer povo) a seguir o seu próprio trajecto histórico (e a defendê-lo, naturalmente), se afiguram, aos olhos de tantas pessoas que se consideram partidárias dos direitos políticos e sociais democráticos mais elementares, como vestígios de simpatia para com os sorrisos deploráveis de George W. Bush e da menina Condoleezza ou as posições inequivocamente belicistas dos «falcões» sionistas? Claro que esta é apenas uma pergunta retórica.

              2. A uns como a outros, a «eles» como a «nós», apesar da guerra, da «luta de classes» ou daquilo que parece ser um confronto de civilizações – de identidades, se quisermos – espera-os, espera-nos, uma única missão. Pietro Citati identifica-a: «escavar o terreno do Éden que há em cada um de nós e demonstrar que existe apenas uma raiz, que todos os ramos brotam de um mesmo tronco, que todos os pensamentos, as sensações, as discórdias e as crenças não passam de uma única vaga de luz».

                Opinião

                [Figuras Exemplares] Os bons piratas

                O pirata menos bem sucedido da história terá sido provavelmente Edward England, cujas repetidas atitudes de generosidade no sentido de poupar as vidas dos prisioneiros fez com que os seus próprios homens se revoltassem contra ele e o abandonassem numa ilha deserta. Mas é possível encontrar vestígios de outros «bons piratas», como é o caso do singular capitão Mission, marinheiro libertário que no tempo de Luís XIV comandou o navio La Victoire. Gilles Lapouge, considera a vida naquele barco como «um comício ininterrupto» e Larry Law descreve alguns dos seus costumes. Assim, se capturavam negros, os seus tripulantes não só tinham de os libertar como eram forçados a ouvir um longo discurso sobre a igualdade das raças. Se por azar matavam em combate o capitão de um navio inglês, guardavam-lhe o corpo até chegarem a terra e enterravam-no com um piedoso sermão sobre a não violência. Quando os marinheiros se embebedavam, Mission fazia-lhes sempre uma prédica sobre as virtudes da temperança. E, para cúmulo da desonra pirata, terá substituído a bandeira negra por um pavilhão branco com a inscrição «Deus e Liberdade». O capitão Johnson tê-lo-á incorporado na lenda com a sua História Geral dos Piratas, durante muito tempo atribuída a Daniel Defoe, e de que a Cavalo de Ferro editou já o 1º volume (de Mission falar-se-á apenas no 2º). Uma leitura apropriada para este tempo de mar e praia.

                Mais dados sobre estas nobres pessoas e sobre muitos dos seus correligionários de sentimentos menos maleáveis no excelente O Grande Livro da Pirataria e do Corso, de Luís R. Guerreiro.

                  História

                  3′ 47” vezes 20

                  Nick Drake
                  Diz-me C. que tem lido os meus últimos posts e lhe pareço amargo. Sabes, é verão, o calor aperta e, como sempre nesta altura do ano, ando um bocado cansado. Só isso, garanto, porque de resto vivo no melhor dos mundos. Aqui não se sentem as bombas, apenas os mosquitos e o ruído do elevador. Encosto-me à janela, vou fumando um cigarro e murmuro Northern Sky. A ouvir em paz um dos meus mortos preferidos.

                    Etc.

                    Planeta Hezbollah

                    O documentário sobre o Hezbollah que a SIC-Notícias exibiu ontem – realizado há três anos por jornalistas identificados, com testemunhos também eles identificados com clareza – terá deixado a qualquer espectador de sentimentos genuinamente democráticos uma terrível impressão. Nele se mostraram os contornos de uma organização islamita, fortemente financiada a partir do exterior, que assume um paternalismo infame sobre a causa palestiniana, procurando «ensinar» os seus combatentes a porem de lado as inibições e a fazerem uma verdadeira «revolução islâmica». Nele foi possível ver uma força muito bem armada, equipada como um exército regular, com bases escondidas e instalações não identificadas espalhadas por ruas e ruelas de cidades libanesas, a artilharia pesada apontada sempre para o lado de lá da fronteira. Nele se deparou com um poder autónomo que não dá importância alguma às autoridades locais e manipula sem vergonha – incluindo nessa manipulação pagamentos em dinheiro e oferta de cuidados de saúde que os libaneses não podem custear – a extrema miséria da população muçulmana xiita, desprezando ao mesmo tempo os restantes 55% da população do país. Nele foi possível verificar a imposição nas zonas controladas de normas estritas de «comportamento islâmico», principalmente aplicadas às mulheres, e que no Líbano vinham sendo objecto de uma grande tolerância. Nele se ouviu, repetidamente, um discurso primário apelando à jihad e lançado contra tudo aquilo que se não pareça com uma visão teocrática e anti-ocidental do mundo. Nele se exibiu um ódio extremo a toda a tradição histórica de convívio étnico e religioso da qual o Líbano se manteve na região como um farol. E, acima de tudo, nele se colocou, diante dos olhos de quem o quis ver, um imenso menosprezo pela democracia representativa e pela liberdade de expressão, por eles diabolizadas como criaturas dos EUA e de Israel. Como dizia no documentário um dos seus principais responsáveis: «nós vamos provar, através do apoio democrático do povo, que a república islâmica é o único caminho». «E se o povo não aceitar democraticamente esse caminho?», questionou o entrevistador. «Então prosseguiremos o nosso combate por todos os meios», respondeu.

                    É a esta gente que, órfã das revoluções de que precisa para não diluir os seus mitos mais profundos, parte significativa da nossa «opinião progressista» – para utilizar uma expressão tão arcaica quanto eufemística – reconhece agora toda a legitimidade na luta «de massas» contra o estado de Israel. E na guerra – extrema e atroz, com o seu longo cortejo de inocentes vítimas, como todas as guerras – que acontece à nossa frente. Em que planeta estamos nós?

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                      A meretriz e os alquimistas

                      Singular preocupação tem retirado o sono aos naturais da minha cidade. A razão parecerá fútil, mas é séria: sabendo-se que o equipamento tradicional da sua principal equipa de futebol é negro com os números dos atletas gravados a branco, uma imposição comercial acaba de impor o dislate de transmutar o branco em ouro. E se, do ponto de vista cromático, o branco implica tanto a soma como a ausência de todas as cores, balanceando simbolicamente entre a força do dia, a pureza e a pulsão da morte, já o dourado evoca a autoridade e o fogo purificador. O que não é obviamente a mesma coisa. A ordem natural do mundo – à escala local, naturalmente – está assim posta em causa, tendo por isso um antigo vice-presidente do clube escrito em artigo publicado, dando voz à aflição dos conimbricenses, que ao permitir-se a inserção dos números dourados nas camisolas da Académica estará esta «a prostituir-se». A força do argumento irrompe então, esmagadora: «com esta medida, fica claro que a Briosa está à venda e que no deliberado conspurcar da sua centenária e prestigiadíssima camisola está a leilão também a sua ‘alma’ de instituição sui generis, ora metamorfoseada em banal meretriz, que sobe o desce a saia, sem pudor ou vergonha, ao sabor das suas conveniências e necessidades financeiras». Argumento que, sem dúvida alguma, se revelará incontroverso.

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                        Longe de Deus e perto do céu

                        Voltaire
                        «Le merveilleux de cette entreprise infernale, c’est que chaque chef des meurtriers fait bénir ses drapeaux et invoque Dieu solennellement avant d’aller exterminer son prochain.» (Voltaire, do artigo Guerre no Dictionnaire Philosophique)

                        Se, para além do antiquíssimo cortejo de dor, destruição e morte, existe na guerra algum factor de inevitabilidade, ele deve encontrar-se na quase impossível posição de neutralidade de quem com ela se veja forçado a conviver. As tentativas para alcançar esse estado de inocência são tão impossíveis de manter quanto difíceis de justificar. E nem mesmo os místicos o conseguiram demasiadas vezes, como o comprovam as legiões multiétnicas de mártires da paz. O máximo que se pode conseguir nestas situações é fazer de contas que se não pertence a este mundo, pactuando ao mesmo tempo com a ordem das coisas que o domina.

                        Debaixo de fogo, entre gritos e explosões, respirando o cheiro inconfundível do combate – conhece-o bem quem já esteve em campo de batalha – é estranha a imparcialidade. Ali mata-se ou morre-se, foge-se em pânico ou fica-se paralisado pelo medo, luta-se por uma das partes, ajudam-se os seus feridos ou acalmam-se os que perdem o controlo, mas jamais poderá agir-se como se nada daquilo estivesse a acontecer. E, ainda que a confortável distância, ainda que em posição de presumível segurança, é difícil manter a equidade. Basta recordar a forma como os pacifistas foram tratados durante a Primeira Guerra Mundial, acusados de ausência de patriotismo e de pacto com o inimigo, ou como na mesma altura foram vistos certos membros das vanguardas artísticas, culpados de pusilanimidade. De resto, perante o desfile trágico dos refugiados, a visão dos corpos feitos em papa, as crianças em choque, os adultos transformados em bestas ou em cobardes, como ficar indiferente?

                        Pode, no entanto, pôr-se a questão em termos diferentes: será possível, em cenário de guerra, recusar a indiferença sem que tal signifique tomar partido por uma das partes? A guerra em curso no Médio Oriente recoloca a urgência desta questão e, de novo também, a necessidade de definir um esforço de resposta. A maioria das tomadas de posição – particularmente visíveis aqui no mundo dos blogues – tende a desenhar o confronto a traços unicolores, sendo raros os comentadores que assumem posições de equidistância. Separa-se portanto, quase sempre, o lado bom e justiceiro da metade má e criminosa. À esquerda, esta realidade é particularmente evidente, diabolizando-se inequivocamente os israelitas e glorificando-se a justeza de uma «causa árabe» cuja dimensão «genérica» jamais é explicada, para além da oposição, nem sempre racional, ao inimigo americano. À direita, o inverso: a assumpção do universo islâmico como factor de instabilidade e a glorificação entusiástica do carácter higiénico das bombas que o Estado hebraico faz cair sobre o martirizado Líbano. Somente a direita mais extrema, simultaneamente anti-semita e anti-sionista, parece bloqueada. Mas o quadro não pode ser assim tão simples e, razoavelmente longe dos combates, será possível esboçar uma reflexão comprometida e razoavelmente serena. Embora mais dura, uma vez que impõe o questionamento de certezas – determinadas por credos religiosos ou pelos vestígios das velhas metanarrativas – que é muito mais cómodo aceitar como inabaláveis. Talvez seja, então, a vez de uma opinião inequivocamente laica tomar a palavra.

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                          Chá no deserto

                          Do outro lado do Estreito, sem papéis e sem bagagem. Aceitar o calor. Falar a língua do colonizador tardio. Gesticular um pouco, se necessário. Seguir de dedo no mapa as cidades invisíveis (de Bowles). Espreitar os gineceus das suas casas. As fontes interiores que as suavizam. As sombras que se sucedem às sombras. Guardar o rumor berbere e depois o silêncio, sem olhar as espadas. Murmurar: «não importam as espadas».

                            Devaneios

                            Na R.D. do Kitsch

                            DDR Kitsch
                            Papel higiénico na DDR
                            A produção de objectos destinados a servirem no quotidiano comum dos antigos «países socialistas» europeus ajuda-nos a entender as origens do seu rápido colapso e da desafectação de um número crescente dos seus cidadãos em relação ao universo no qual eram forçados a habitar. A partir da década de 1950, enquanto no mundo em redor emergiam padrões de vida orientados no sentido de uma renovada concepção estética e funcional da vida, naqueles espaços protegidos economias bloqueadas e sistemas políticos de grande rigidez mantinham-se em constante guarda perante qualquer indício de mudança que ecoasse a partir de um ocidente eternamente diabolizado e inequivocamente «decadente». Crescia assim uma paisagem visual fora do tempo, um mobiliário de todos os dias alheio às tendências da nova cultura-mundo – orientada para o consumo e para o consumismo, sem dúvida – que, fora daquelas «utopias materializadas», ia definindo uma outro realidade no domínio dos padrões de vida, do gosto e do conforto.

                            Na antiga República Democrática Alemã, esta fórmula de isolamento viu-se ainda integrada na tradição germânica do popularmente chamado «forte e feio». Uma tendência de origem prussiana, acentuada sob o nazismo e que ainda se não encontra totalmente apagada, como o comprova a observação atenta das prateleiras dos hipermercados Lidl ou de um par de sandálias Dr. Scholz. Objectos construídos para funcionarem, mas também para durarem, sem gastos supérfluos nem pormenores «desnecessários», no interior de um universo que, ao mesmo tempo, se presumia exemplar e, pela intervenção de acções sistemáticas de «vigilância revolucionária», isento de qualquer influência provinda do mundo capitalista. Pequenas peças do quotidiano de uma sociedade e de um regime aplicados a combaterem, como havia anunciado Walter Ulbricht em 1950, o chamado «formalismo» (que, nos tempos de Estaline, Andrei Jdanov igualmente procurara extirpar da União Soviética). Em seu lugar – e também ao nível do design introduzido nos cenários de cada dia – a valorização das artes tradicionais e regionais, a fuga insistente a uma visualidade que pudesse anunciar qualquer alternativa aos padrões locais do realismo socialista e de uma suposta «frugalidade proletária», a total exclusão de formas de inovação estética consideradas anormais, substituídas por uma orgia de fealdade e de kitsch. Esse universo doméstico de cartão do qual é possível recolher uma sombra na revisão de Adeus Lenine, de Wolfgang Becker. E que se encontra agora acessível através de DDR Design, um pequeno álbum-choque da Taschen.

                              Olhares

                              Lobos e cordeiros

                              Sugeri aqui, há alguns posts atrás, a leitura de As Identidades Assassinas, do cristão-laico libanês Amin Maalouf. Livro que deveria iluminar, se é que ainda permanece iluminável, a consciência crítica de alguns militantes da esquerda ocidental, capazes de continuarem a considerar o Outro islâmico – provindo de um Islão peculiar, maioritariamente violento e intolerante nas actuais circunstâncias históricas – como integrando uma espécie de comunidade angélica à qual todos os «pecadilhos» devem ser perdoados. Do lado oposto, apenas seres dotados de chifres e patas de bode – os israelitas, claro, todos eles – comandados à distância por um senhor sinistro de barbicha, chapéu alto e sobrecasaca azul. Regresso ao livro para sublinhar, a propósito, uma frase de Maalouf: «Quando atribuímos o papel de cordeiro a uma determinada comunidade e o de lobo a outra, o que fazemos, da nossa parte, é conceder adiantadamente a impunidade aos crimes de uma delas». Visão simplista, unilateral, que será sempre sinal de uma perigosa cegueira. Sobretudo quando, confundidos o rebanho e a alcateia, se torna difícil distinguir as espécies.

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