Author Archives: Rui Bebiano

Gina, a Lollo

Nascida em Subiaco, uma aldeia perdida do Lázio interior, e filha de um pacato carpinteiro local, Gina Lollobrigida teve uma vida mais luminosa e movimentada que a das suas amigas de infância. Em 1947, com 19 anos, foi dama de honor, ao mesmo tempo que Gianna Maria Canale, num extraordinário concurso de Miss Itália ganho por Lucia Bosé. Um busto «generoso», como era modelar na época, uma voz aveludada, associados a algum talento para representar, iriam guardar-lhe um lugar, cativo e universal, nos devaneios nocturnos de muitos machos de diferentes gerações. A Lollo apoderou-se rapidamente da imagem de Gina, ao ponto de a maioria dos cerca de 70 filmes que interpretou terem sido realizados à sua medida. Foi também rainha dos calendários para motoristas de longo curso, a pin-up possível das páginas do Século Ilustrado, modelo subliminar dos desenhos do humorista José Vilhena, madrinha putativa de uma conhecida revista erótica «para homens». E inspirou até, por aquela «ser um navio muito bonito designadamente na convergência das linhas de proa e do convés», a alcunha da antiga fragata Pero Escobar, com direito a fotografia autografada na Câmara de Oficiais, pendurada ao lado do retrato do Presidente da República. Gina, a Lollo, faz hoje 80 anos, e convém agradecer-lhe.

    Apontamentos, Cinema, Etc.

    Sem vergonha

    Num passado ainda recente, na prática dos grandes partidos institucionais, certas coisas pensavam-se e faziam-se, mas não se diziam. Existia, ao nível do menor denominador comum da opinião pública, uma ética que descriminava quem verbalizava ideias, quem propunha atitudes, que contrariavam os fundamentos da vida democrática. Esses tempos passaram, e, como todos eles, foram substituídos por outros, nos quais a gente que ainda há algum tempo estava caladinha e quietinha perante o perfil ético e o passado de muitos dos quadros presentes na política activa, tomou o poder e só não perdeu a vergonha porque, de facto, jamais a teve.

    Pelas 12 horas e 50 minutos de hoje, ouvi no Rádio Clube de Coimbra (delegação do Rádio Clube Português), o président directeur général da Comissão Distrital do Partido Socialista e actual deputado Vítor Baptista, afirmar, num tom muito exaltado, que cargos como os de directores de hospitais e centros de saúde, ou de chefia de direcções-regionais, devem ser da confiança política do governo e cessar funções sempre que o partido de governo muda. E dizer que estes jamais deverão admitir que os seus subordinados exprimam internamente posições críticas do governo que lhes paga. Sabendo que a figura em causa é um dos mais consabidos exemplos do estado a que chegou o actual partido do poder, e da indigência política (e cultural, já agora) de uma grande parte dos seus apparatchiks, a desfaçatez não admira. Algo ingenuamente, confesso, pensava porém que estas pessoas ainda cuidavam minimamente das aparências. Pelo que oiço, já perceberam que não precisam de o fazer.

      Atualidade, Opinião

      Demofobia

      Através do João Tunes, cheguei a este texto do Marcelo Ribeiro. Uma espécie de carta-aberta, e um testemunho muito pessoal, exprimindo uma indignação e uma preocupação que democraticamente partilho. Embora ainda considere mais indigna, e mais preocupante, a sórdida legitimação da «bufaria», por parte de diversos responsáveis do partido do governo, que a repetição deste tipo de actos tem vindo a configurar. E muitos outros permanecem ainda fora do conhecimento público, como muito bem sabe quem anda de olhos abertos pela «vida real» de diversos organismos dependentes do Estado. Um sinal dos tempos que não pode ser tolerado. Seja qual for o percurso de quem o alimenta ou, pela via do silêncio, com ele pactua.

        Atualidade, Opinião

        Caramel, bonbon et chocolat

        O Eduardo Pitta desafiou-me para esta espécie de corrente em formato de book crossing. Cinco livros recomendáveis para ler agora, o mais tardar para a semana.

        1. Um pequeno ensaio de George Steiner, O Silêncio dos Livros, publicado originalmente na Esprit, que a Gradiva acaba de editar acompanhado do comentário Esse Vício Ainda Impune (a frase faz lembrar outra coisa, eu sei), de Michel Crépu. Sobre a ligação entre o anunciado fim do livro e a fragilidade, incontornável e eterna, da escrita.

        2. A recente edição portuguesa, feita pela Antígona, da História das Utopias, escrita em 1922 por Lewis Mumford. Porque permite recordar que o seu horizonte não se limita à paisagem insuportável das sociedades harmoniosas. E porque nos sugere, ainda e outra vez, que «a nossa mais importante tarefa, no presente, é construir castelos no ar».

        3. As Notas de Andar e Ver. Viagens, gentes, países, uma colectânea de artigos e intervenções escritos entre 1904 e 1937 por José Ortega y Gasset, lançada agora pela Fim de Século. Um livro que funciona como uma poderosa chamada de atenção para a viagem atenta enquanto «metáfora substancial da vida inteira».

        4. Teenage. The Creation of Youth. 1875-1945, de Jon Savage (conhecido por uma história dos Sex Pistols e do movimento punk), publicado pela Chatto & Windus. A «condição juvenil» entre a literatura, a rua e a caserna, antes ainda dos anos cinquenta. Segundo a Rolling Stone, «the definitive history of youth in revolt, from the gaslight age to the dawn of rock».

        5. Um relato familiar, em forma de álbum de fotografias, da autoria de Daniel Blaufuks. Sob Céus Estranhos, uma história de exílio é uma «meditação evocativa e poética sobre a experiência dos refugiados da Europa Central e sobre um sentimento de dispersão em trânsito na cidade de Lisboa e nos seus arredores». Da Tinta da China.

        Chamo, mesmo sabendo que alguns não gostam muito de cadeias, a Ana de Amsterdam, o Eduardo Brito, o Luís Januário, o Lutz Brückelmann e, internacionalizando a coisa, o Marcos A. Felipe. Escuto.

          Etc., Olhares

          A praga

          A praga das televendas e afins acaba de ultrapassar a última barreira do inacreditável. Recebi há minutos, em casa, provinda de um número telefónico não identificado, uma insistente proposta – «mas se o senhor não pode agora, qual a melhor hora para podermos conversar?» – para me tornar sócio… da DECO!!! Sim, estou a falar do «Instituto Português para a Defesa do Consumidor». E agora a quem me poderei queixar?

          Aproveito para relembrar este post, escrito há cerca de um ano, e que na altura passou quase despercebido.

            Apontamentos, Atualidade

            Certa gente não entende

            smoke plus

            Este post insiste num tema aqui recorrentemente abordado. Trata-se apenas de (mais) um acto de legítima defesa.

            Faço parte de uma minoria. Aquela que hoje é composta, pelo menos na metade ocidental do hemisfério de cima, pelas pessoas que têm o hábito de fumar. Mas dentro dessa minoria, pertenço ainda a uma outra. Uma subminoria, chamemos-lhe assim. Ela integra os que fumam sem ser por vício – queimo cinco ou seis cigarros por dia, mas sou perfeitamente capaz de passar dias sem fumar – e apenas o fazem por prazer ou por um hábito cultural. Sei que somos cada vez menos e não vejo mal algum nisso: ainda bem também há cada vez menos pessoas a fumar. Mas não posso deixar de lamentar a legislação pesada e autoritária (e um tanto fascistóide) que hoje mesmo a Assembleia da República vai aprovar. Porque ela implica com a minha identidade cultural e uma dimensão de liberdade individual que agora vejo coactada. Ainda que, naturalmente, aceite restrições razoáveis que favoreçam os não-fumadores (há uns bons dez anos, por exemplo, que deixei completamente de fumar em aulas e reuniões).

            Por tudo isto me incomoda particularmente uma posição como aquela expressa por um articulista que o Público coloca hoje ao mesmo nível de Vasco Pulido Valente (partindo embora de um ponto de vista radicalmente oposto). Declara ele a dado passo que nada custará a um fumador prescindir do seu cigarro nos escassos 15 minutos em que possa parar algures para tomar um café. Para mim, porém, é mesmo aí que bate o ponto: acontece que existem pessoas que não «passam» apenas uns minutos por um café, entre duas tarefas de um quotidiano de permanente stress, mas que «vivem» horas em cafés. Para conviver, trabalhar ou, simplesmente, para olhar para anteontem, opção que me parece democraticamente aceitável e que os desempregados conhecem muito bem. Trata-se de uma marca cultural que o ocidente foi construindo pelos menos desde os inícios do século XVIII e que, em outras partes do planeta, mantém ainda alguma pujança civilizacional. Mas isto, certa gente, perdida nos seus intermináveis projectos e balancetes entremeados por «um cafezinho», simplesmente não entende.

              Apontamentos, Atualidade

              Socialismo pelo esgoto abaixo

              Há alguns meses atrás, da actividade de uma outra (ou seria a mesma?) comissão patrocinada pelo governo e financiada com dinheiros públicos, tinha transpirado a recomendação peregrina de fazer aumentar em flecha os descontos dos trabalhadores para a segurança social, diminuindo imenso os salários reais. Agora, a Comissão para o Livro Branco das Relações Laborais, ao fim de dois anos de reuniões devidamente remuneradas, concluiu «cientificamente» que a solução para o saneamento do mundo do trabalho se encontra em medidas como a redução das férias de 25 para 23 dias úteis, a simplificação dos despedimentos, o fim das diuturnidades e a transferência para os privados da responsabilidade pelas reformas dos trabalhadores. Não me espantará que o próximo passo seja sugerir que os funcionários que não recebam a classificação de «excelente» vejam reduzido o horário do almoço, usem um indicativo visual e/ou passem a auferir de metade do vencimento. Quanto aos deveres dos «empregadores», claro, nem uma palavra. Toda esta conversa de defensores da destruição selvagem do welfare state é patrocinada por um governo que nas últimas eleições ainda se declarou «socialista». Tudo isto com o silêncio dos defensores dessa sacrossanta «modernização» (tendência «Joe Berardo», presumo) que vale por si mesma, esmagando as pessoas que deveria servir. Será que esta gente quer mesmo recuperar a luta de classes dos confins da nossa história recente?

              Adenda – Este post não é alarmista. Sei perfeitamente que governo não irá avançar, pelo menos nos tempos mais próximos, com medidas legislativas que possam dar seguimento a todas estas propostas. Mas o simples facto delas existirem, de serem produzidas no contexto da actividade de uma comissão de iniciativa governamental, e de, lamentavelmente, o Partido Socialista não ter aberto a boca sobre o assunto, parece-me muito preocupante.

                Atualidade, Opinião

                Oskar


                Werner em 1966 com Julie Christie, «a mulher que tinha uma sósia em Lisboa»

                Revi ontem Oskar Werner na RTP2. Como Fiedler, o judeu agente da STASI, ao mesmo tempo repugnante e idealista, que em O Espião Que Veio do Frio, o filme de Martin Ritt baseado no primeiro romance mundialmente conhecido de John Le Carré, tenta contrariar as manobras ardilosas de George Smiley e do MI6. É estranho como a presença cinematográfica deste austríaco, desaparecido em 1984, sempre me pareceu um tanto perturbante, provocatória mesmo. Tinha tudo para me desagradar: o olhar vítreo, a voz nasalada e metálica, um inglês incomodativo com uma vaga acentuação germânica, um aspecto de roedor que me provocava pele de galinha. E, no entanto, algo deste actor, hoje semi-esquecido, perdura como único na memória que preservo do cinema do século passado.

                  Cinema, Olhares

                  Hiper-realismo gatofedorentista

                  Os quatro cidadãos acusados de ter agredido Francisco Assis, o ex-presidente da distrital do Porto do PS, em Maio de 2003, declararam hoje no Tribunal de Felgueiras a sua inocência. De acordo com a Lusa, os arguidos Casimiro Sousa, alfaiate, Joaquim José Rodrigues, sapateiro, Agostinho Gonçalves Sousa, empregado de balcão, e Manuel Pereira de Sousa, vigilante, disseram ter sido mal compreendidos, uma vez que as suas poses de braço no ar ou punho cerrado junto ao agredido ficaram a dever-se «ao facto de terem sido empurrados e de se terem levantado com o braço estendido ou de estarem a tentar agarrar pessoas que se encontravam à sua volta». Afinal, coitados, eles «apenas queriam ver Francisco Assis» – como se sabe, praticamente todos os portugueses ainda hoje o desejam – e «queriam mesmo ajudá-lo a sair do meio da multidão».

                    Apontamentos

                    O S. João e a broa de Avintes

                    Lamento Tiago (Barbosa Ribeiro), mas nunca percebi, e continuo sem perceber, o que de especial, ou de particularmente democrático, tem a «folia» sanjoanina do Porto. Apesar de já a ter experimentado algumas vezes, chegando a madrugar sujo, suado e namorado em Matosinhos. Sempre a achei uma festa desenxabida e popularucha, com toda a gente a noite inteira a caminho de lado algum, a fazer de contas que está muito feliz e assaz contente. Por isso mesmo o Estado Novo a tolerava sem problemas. E agora, como dizia uma festeira raçuda entrevistada pela televisão, «divertimo-nos muito, senhor: damos umas marteladas e comemos sardinhas». A comparação com o Santo António lisboeta é inevitável: este é também um vestígio de um passado pouco edificante, ainda muito marcado pela intervenção folclorista do SPN/SNI, que de positivo tem apenas o facto de não ser apresentado, como acontece com o S. João no Porto, como «a festa de toda uma cidade». Quando vejo os assomos de «pimbalhismo» e de afirmação provinciana e palonça de uma dada identidade em que se transformaram estas paródias – aproveitadas, além do mais, pela pior demagogia eleiçoeira –, recordo sempre uma frase que ouvi há alguns anos numa estação regional de rádio: «Dizem que em Avintes só há broa, mas há mais, há muito mais do que isso: também há broa com chouriço».

                      Apontamentos, Devaneios

                      Livro de memórias pouco comum

                      Boy & Girl

                      Enquanto lia as 598 páginas e as 2.296 notas em letra pequeníssima de Pessoa Comum no seu Tempo, o livro de memórias de João Freire que a Afrontamento acaba de editar, percebi que partilhava com ele, sendo dez anos mais novo, muitas das referências da infância e da pré-adolescência. O conhecimento directo ou indirecto de muitas das figuras mencionadas, as primeiras e as segundas leituras, os hábitos comuns, determinadas imagens, valores ou maneiras de dizer, provam que, no Portugal das últimas décadas da vida biológica de Salazar, quase tudo permanecia imutável. Recordei também que, tal como o autor embora mais brevemente, passei pela experiência do serviço militar, da deserção, do trabalho operário, da militância na esquerda radical e da vida universitária. Só não estive exilado porque, in extremis, o 25 de Abril me poupou esse incómodo, quando a mala já se encontrava feita e alguns contactos estabelecidos. Estes factores determinaram, assim, uma abordagem do livro que jamais poderia ser «distanciada». Tentarei ser apenas justo.

                      Começo por anotar dois aspectos que conferem a Pessoa Comum no seu Tempo uma marca absolutamente peculiar. Por um lado, este é um relato de uma meticulosidade, de um pormenor, evidenciando uma tal capacidade de memorização, que, se não o tornam único, pelo menos o inserem no pequeno núcleo de textos memorialistas portugueses capazes de produzirem uma abordagem efectivamente exaustiva do passado vivido pelo autor. Ao mesmo tempo, existe aqui algo de igualmente raro, traduzido numa relação de aparente disparidade entre a vida invulgar que se descreve e uma escrita que se pode qualificar como conservadora, se não mesmo anacrónica, na sua relação com o lugar geracional e o percurso específico do autor. Para além de que lhe falta também um cuidado, no domínio do trabalho literário, que todo o texto memorialista deve conter, de forma a mais facilmente partilhar com o leitor os momentos singulares e os estados de espírito. Detecta-se em muitos momentos uma discursividade enfática, por vezes convencional e socialmente situada, certas vezes quase obsequiosa, que prejudica a fluidez da escrita e lhe retira alguma capacidade para absorver o leitor. Este é, porém, um aspecto que acaba por se revelar de reduzida importância.

                      Em tudo o mais, de facto, este volume revela-se absolutamente excepcional e, como se verá adiante, de uma grande utilidade. Estrategicamente, reúno os seus seis capítulos em três blocos, cada um dos quais é desenvolvido através de processos diferenciados de codificação semântica que lhe são próprios. O primeiro deles refere-se aos antecedentes familiares, ao meio social de origem, à infância e à adolescência do autor, à sua entrada no meio militar e à sua vida como oficial da Marinha, até ao momento em que decidiu desertar do teatro de guerra em Moçambique, bem como à sua carreira desportiva (capítulos 1, 2 e 3). O segundo bloco respeita à sua intensa vida como exilado político em França e ao percurso político que o haveria de conduzir ao anarquismo (capítulos 4 e 5). O último bloco reporta o trajecto de João Freire (JF) como sociólogo e professor universitário (capítulo 6).[Continua em Passado/Presente>>]

                        História, Memória

                        Jornalismo (este e o outro)

                        A entrevista feita por Alexandra Lucas Coelho que saiu no último Ípsilon a propósito de mais um romance de Baptista-Bastos, retoma algumas questões recorrentes sempre que se fala deste (ou com este) jornalista e escritor. Começo por dizer que não sou um seu grande admirador: não aprecio particularmente o estilo da escrita (convém dizer que BB gosta muito de Agustina, Saramago e Mário Cláudio, três escritores portugueses que sinceramente dispenso dos meus planos de leitura), tal como não gosto do tom paternalista e auto-referencial da sua forma pública de falar com os outros e dos outros. Também me distancio de um certo “conservadorismo de esquerda”, marcado pelos requebros de casmurrice e de nostalgia que o caracterizam. Ao mesmo tempo, porém, concordo e simpatizo com algumas das suas posições públicas, nomeadamente com aquelas em que associa o lugar cultural do jornalista (e do jornalismo) a uma atitude de intervenção na vivência da cidadania.

                        É este aspecto que volta a ter um grande destaque nesta entrevista, ao ponto do suplemento incluir um depoimento de Miguel Sousa Tavares e um artigo de Adelino Gomes nos quais ambos, e particularmente o segundo, procuram contrariar a repugnância de Baptista-Bastos pela defesa do distanciamento e da «santa objectividade» (uma expressão utilizada positivamente por Mário Mesquita) como chaves do «bom jornalismo». Não chego ao ponto de dizer que concordo inteiramente com esta repulsa, pois reconheço que, muitas das vezes, sem um esforço de imparcialidade o jornalismo cai facilmente no panfleto ou, pior ainda do que neste, no território da asneira. Mas parece-me também que o jornalismo engagé e «de tarimba» – não apenas de escola superior, mas de formação, sensibilidade e experiência – faz muita falta para alimentar um nervo mobilizador do interesse (e da paixão) do público, ajudando este, ao mesmo tempo, a definir e a tomar posições. Preferia ler jornais onde um e outro dos estilos pudessem competir na captação de leitores e na diversificação da opinião. Não apenas o jornalismo padronizado, asséptico, «técnico», no qual já nem sequer a diferença determinada pelo estilo e pela personalidade do jornalista muitas vezes se percebe. É este jornalismo que Baptista-Bastos detesta, criticando-o em nome desse outro jornalismo do qual se sente cada vez mais a falta. Eu, pelo menos, sinto.

                          Opinião

                          Perigo polaco

                          Os mesmo responsáveis polacos que querem fazer com que os outros países europeus paguem pelo facto da Segunda Grande Guerra os ter impedido de terem hoje o dobro da população e de serem uma potência de primeira grandeza na União Europeia (mais habitantes igual a maior força negocial), querem agora colocar 20.000 prisioneiros a trabalharem – presumo que não em regime de voluntariado – na construção de novos estádios, hotéis e acessos rodoviários para o Europeu de futebol que em 2012 a Polónia organizará em conjunto com a Ucrânia. E parece que não percebem a incoerência e a monstruosidade da proposta.

                            Apontamentos, Atualidade

                            Sansão pode dormir descansado

                            Não tenho na certeza de ser dos carecas «que elas gostam mais», como afirmava uma popular marchinha do Carnaval carioca. Ou, pelo contrário, de acordo com o velho anúncio de um restaurador capilar, se afinal já não é deles «que elas gostam mais». Ou mesmo se «elas» serão «eles», ou se «eles» serão «elas». Sabe-se hoje que a calvície de padrão masculino afecta cerca da metade da população dos homens maduros, e, para além disso, que determinadas máquinas eléctricas muito fáceis de utilizar e de manter podem agora transformar qualquer cabeça numa versão hermafrodita de Yul Brynner, o actor conhecido por, entre as décadas de 1950 e 1970, encarnar personagens cujo exotismo requeria uma cabeça inteiramente calva. Assim aparece Brynner numa fotografia, por sua vez retirada do filme homónimo, reproduzida na capa da edição que tenho de Tarass Bulba, a história ficcionada do herói dos cossacos do Don, que Nokolai Gogol escreveu, Mário Braga traduziu e a Portugália editou no distante ano de 1964.

                            A ausência de cabelo já não pode agora ser associada à perda de poder e à submissão, ocorridas com os idosos, os prisioneiros e os soldados. Pode até ser instrumento de afirmação de um erotismo raro e energético. O novo Sansão deve temer a sua Dalila por outro motivo que não o inesperado corte cerce da sua indispensável guedelha. Mais do que nunca, o uso notório de cabeleira postiça passa por factor anti-higiénico de incómodo e de mau-gosto, que ridiculariza e marginaliza quem dele se serve. Inexplicavelmente, porém, um grande número de humanos continua a utilizá-las como recurso para esconder uma calvície que imagina incompatível com a imagem de eterna juventude ou de suposta virilidade que deseja preservar. Hoje, no ecrã de LED que preenchia quase por inteiro uma das paredes do restaurante onde almoçava sozinho, fez-me pena ver o aspecto patético de Burt Reynolds – já sem o vigor dos tempos em que era Caine no filme Shark!, de Sam Fuller – exibindo em público um capachinho feiíssimo e, como todos eles, completamente fora do tempo.

                              Apontamentos, Olhares

                              Sobre os monumentos (6)

                              Stalin na Estonia
                              Cartaz estónio pré-1953

                              Svetlana Boym tem estudado a dimensão energética da nostalgia, ajudando-nos a entender melhor os processos de manipulação política da arte monumental. Em The Future of Nostalgia, distingue claramente a forma como o senso-comum encara aquela que chama de «nostalgia passiva» – marcada pela melancolia, observando o presente pela negativa e o passado como uma dimensão na qual é possível encontrar os melhores modelos – de uma «nostalgia dinâmica», capaz de olhar este mesmo passado «em tensão» e servindo-se dele para carregar sinais que alimentam as representações e as causas do presente. Num tempo em que o conhecimento histórico tem vindo a recuar ao mesmo tempo que cresce o interesse pelo passado, é cada vez mais fácil detectar momentos nos quais esta dimensão dinâmica da nostalgia emerge, armando muitos movimentos e correntes de opinião interessados em manipularem o passado para alcançarem alguns dos seus objectivos programáticos. E reparar na forma como uma parte importante da comunicação social morde o isco sem grandes problemas de consciência.

                                História, Olhares