Author Archives: Rui Bebiano

O tal canal

Um bom exemplo do regionalismo no seu pior é-nos dado todos os dias por uma estação de televisão por cabo chamada Porto Canal. Ao acaso do zapping pós-prandial, tenho deparado ali com programas que, com raríssimas excepções, são de uma qualidade realmente deplorável (um bom exemplo é «Por um Canudo», provavelmente o pior programa de apanhados do hemisfério norte). Quase todos eles se esforçam por alimentar o penoso sentimento de inferioridade que muitos cidadãos do Porto experimentam em relação a Lisboa. Há dias, por exemplo, um debate entre quatro comentadores residentes com acentuado sotaque da Cedofeita tentava descodificar, com aparência de seriedade, a razão pela qual «as pessoas de Lisboa chamam habitualmente galegos» aos naturais da cidade (tratamento do qual, devo confessar, jamais tinha ouvido falar até esse momento). Num outro procurava provar-se que sendo «a percentagem» (sic) do rendimento per capita do Porto «metade da de Lisboa» (sic), deveria ser o Estado a restabelecer o equilíbrio. Ora tive hoje outro extraordinário exemplo daquele padrão de provincianismo: apesar de considerar diversas capitais europeias, o boletim meteorológico do Porto Canal apenas fornece previsões de temperatura e de pluviosidade relativos às cidades portuguesas que vão de Viana do Castelo a Aveiro.

Antes que alguém se impaciente desnecessariamente com este post, declaro desde já que gosto muito do Porto, onde aliás já morei por dois períodos. E que vivo numa cidade – que eu considerava do centro do país mas que afinal parece ser do sul – na qual a relação entre media e provincianismo é igualmente forte.

    Apontamentos, Olhares

    Perder a razão

    Sempre insinuada nestas alturas, parece-me obtusa e petulante a fantasia de que quanto pior correrem as coisas à selecção portuguesa de futebol tanto melhor a nossa vida colectiva progredirá. Menos distraídos, passaremos então a interessar-nos pelos temas que realmente importam, como a leitura, a política, a produção de couve-lombarda e a ginástica rítmica. Mas não é por não colaborar nesse pranto inútil que diluo, em centenas horas de sofá a ver a Sport-TV, o sentido crítico que me esforço por manter.

    A verdade é que, como muitos outros compatriotas, gosto tanto de futebol quanto sinto uma profunda aversão pelo meio em si. E também me aflige a obsessão mediática pela unha encravada do Cristiano, pela flatulência do Deco, pela Playsation do filho do Simão ou pela simpática e trabalhadeira prometida do jovem Rui Patrício. Incomodam-me, realmente, os «egrégios avós» berrados por pessoas que não sabem o que possa ser tal coisa. Mas não é por isso que deixo de saborear a arte em si, e que me recusarei a vibrar, espero, com as vitórias alpinas da nossa selecção. Ou deixarei de ficar bastante deprimido com uma eliminação precoce. Como o amor e o ódio, o gosto pelo futebol exige de nós a melhor dose possível de irracionalidade. E é aí que está o gozo todo.

      Apontamentos, Atualidade

      «Ce n’est qu’un début!»

      Apontamentos do Maio – 16

      Neste Maio que se completa deixei por aqui algumas notas sobre esse outro Maio evocado. É provável que elas tenham projectado – foi essa, pelo menos, uma das intenções – uma certa recusa da perspectiva nostálgica e melancólica que a chamada periódica da data sempre comporta. Ainda assim, não terá sido possível evitar, neste meio e neste tempo que instigam a leitura apressada e oblíqua, a ideia de que se tratavam apenas de umas quantas efabulações de soixante-huitiard reincidente. Mas contra isso, batatas.

      Reconheço, porém, a validade dessa outra nostalgia, positiva e construtora, da qual fala Svetlana Boym. Aquela que busca no passado um sopro, uma inspiração, um balanço para a interferência emocional do passado no presente. Uma capacidade exemplar, capaz, em circunstâncias completamente diversas, de invocar pelo exemplo o génio da mudança e da insubmissão. Ela fica por aqui, na companhia das canções de Dominique Grange, a soixante-huitiard (ela sim) assumida, acompanhadas do traço militante de Tardi, que a Casterman editou há pouco tempo. Chama-se o álbum 1968-2008… N’effacez Pas Nos Traces! «Não apaguem as nossas pegadas!» Pode lá haver melhor forma de fechar este balanço!?

      Dominique GrangeLes Nouveaux Partisans
      PLAY

        Atualidade, História, Memória

        Boomerang

        Apontamentos do Maio – 15

        De vez em quando colhemos frases. Muitas delas riscadas na areia, durando apenas o tempo de uma emoção, de um desejo ou de uma pequena rajada de vento. Outras parecem-nos escritas sobre a pedra: aparentemente únicas, esplêndidas, imperecíveis. Usei há muitos anos um pequeno caderno de capa de oleado negro para guardar algumas, que acreditava perpétuas e depois se mostraram desleais, fugidias. Ou insensatas. Agora acredito sobretudo em frases-boomerang. Que passam por nós, e se vão, e depois podem voltar. Únicas e incólumes, irrompendo de novo nas nossas vidas distraídas. Como esta, proclamada por Raoul Vaneigem, que retiro do Aviso aos alunos do básico e do secundário: «Não queremos ser os melhores, queremos que nos caiba o melhor da vida, segundo o princípio da inacessível perfeição que revoga a insatisfação em nome do insaciável.»

          Atualidade, Memória, Recortes

          Resistir

          Entra-me pela mailbox adentro um anúncio de um espectáculo que recomenda, subvertendo a velha frase, «Relax, don’t have a cigar». Acreditem os seus autores que produziu o efeito inverso. Uma bandeira da resistência ao higienismo dominante esvoaça desde há meses na janela do meu gabinete de trabalho. Sem a hipótese de ser trocada pelas ordens verde-rubras de mister Scolari ou do professor Marcelo. Ao menos aqui deixem-me em paz.

            Atualidade, Devaneios, Olhares

            Sem ícones

            Apontamentos do Maio – 14

            Vi hoje à hora de almoço, por um acaso, a maior parte do documentário televisivo 1968. O Mundo em Revolta, de Michèle Dominici. Nada de particularmente novo, para além de mais uma revisitação à memória do tempo por parte de alguns dos seus mais conhecidos actores de ambos os lados do Atlântico (Cohn-Bendit, Robin Morgan, Tommie Smith, Felix Dennis, Alain Krivine, o argelino Nadir Boumaza e o irmão mais velho do estudante checo suicida Jan Palach). Todos eles, exceptuando naturalmente o último, pessoas que permanecem activas e que não entendem a sua experiência militante como simples desvario de uma juventude consumida em gestos equívocos (como o fazem alguns dos nossos ex-maoístas, por exemplo, que insistem em falar do seu próprio passado como de uma velha medalha oxidada).

            Particularmente interessante, porque mais prospectivo, o testemunho de Krivine, na época figura central da Juventude Comunista Revolucionária, de orientação trotskista, e hoje dirigente da LCR. A um dado momento, refere um pormenor ao qual acaba por dar relevância: para ele, o Maio de 68 terá representado, talvez, um dos derradeiros momentos nos quais, no interior das democracias parlamentares do ocidente, se utilizaram fotografias de figuras associadas ao conceito de revolução socialista (Marx, Engels, Lenine, Rosa Luxemburgo, Trotsky, Mao, Ho Chi Minh, Fidel, o Che, e outras) como ícones de um movimento de massas. De todas elas, apenas o Che permanece visível, e ainda assim, como se sabe, mais como uma insígnia do que como representação de um «guia para acção». Krivine conclui esta constatação conferindo-lhe uma dimensão positiva: olhando este desaparecimento como sinal contemporâneo de uma certa dessacralização da mitografia marxista e de um tempo de procura de uma nova ideia de transformação, capaz de dispensar a imagem ou mesmo a presença simbólica de guias admiráveis e inspiradores. Não deixa de ser uma percepção que vale a pena recolher.

              Atualidade, História, Olhares

              O milagre de Lisboa

              O noticiário da SIC acaba de adiantar como título de notícia, pela boca de Rodrigo Guedes de Carvalho, que «a chuva parou em Lisboa durante a procissão do Corpo de Deus». Ao mesmo tempo, as imagens mostravam o Cardeal-Patriarca, ataviado com vestes sumptuárias apropriadas ao momento, espalhando incenso ao desbarato – um produto, recorde-se, que provoca danos na saúde de quem o absorve – pelas ruas de uma urbe supostamente em festa. Como se esperava, ninguém deu vivas a Afonso Costa.

              (Em Espanha o espectáculo não difere muito.)

                Atualidade, Devaneios, Etc.

                Sayed

                Sayed Perwiz Kambakhsh, jornalista, 23 anos, vai ser executado por «blasfémia» no Afeganistão. E que podemos nós fazer senão esperar sentados? Pela morte de todos esses «muçulmanos moderados» dos quais tanto falamos e que não reconhecemos senão quando os ouvimos a partir do exílio, os vemos em fuga de rosto tapado, ou lhe reconhecemos o olhar pouco antes de morrerem enforcados, degolados ou esmigalhados pelo sopro e os estilhaços de uma bomba. Um drama do nosso tempo diante do qual não basta encolher os ombros e esperar que as coisas mudem. Assim mudarão, de facto. Mas para pior.

                  Apontamentos, Atualidade

                  O epílogo de Paris


                  «Afinal, o que querem eles realmente…?»

                  Apontamentos do Maio – 13

                  O escritor barcelonês Eduardo Mendoza publicou no último Babelia um artigo de página inteira («El mayo de nuestra juventud») que insiste a maior parte do tempo em muito daquilo que tem sido dito e redito sobre o Maio de 68. Reconhece sobretudo que não se tratou de um movimento revolucionário, mas sim «de um colocar em cena de diversas tendências». E sublinha a sua condição de primeira ocorrência retransmitida pelas televisões de quase todo o mundo, inaugurando de certa maneira uma era renovada da informação. A parte mais interessante ficou para o final, resumindo numa curta frase a dimensão de epílogo de um tempo, mais do que de madrugada de um mundo novo, que o terramoto de Paris lhe parece conter. Considera assim que ele «marcou sem sabê-lo o fim das grandes ideologias, especialmente do marxismo, que já não voltou a levantar a cabeça, e marcou também o fim de Paris como capital intelectual do mundo, título que havia adquirido na época do Iluminismo mas que agora cedia, sem reagir, a Londres e a Nova Iorque.» Dois aspectos que têm passado algo ao lado da actual vaga comemorativista.

                    Apontamentos, Atualidade, História

                    Da moral e das playmates

                    Chega-me a informação de que a Biblioteca Municipal de Faro bloqueou o acesso ao blogue Quase em Português, da autoria do arquitecto alemão-português (ou o contrário?) Lutz Brückelmann. Apesar da intermitência dos últimos tempos, um dos melhores blogues nacionais, diga-se. Parece que tem a ver com a colecção de playmates que o Lutz tem vindo a mostrar. Vamos esperar que não aconteça o mesmo à Terceira Noite.

                      Etc., Oficina

                      Sexo, mentiras e futebol

                      Gostaria de conhecer os critérios (por exemplo: se se refere a homens e a mulheres ou apenas a um dos grupos, qual a dimensão do universo que foi objecto do inquérito, qual a sua localização geográfica, qual o nível escolar dos inquiridos, qual a sua idade, o nível dos rendimentos, etc.) que nortearam este estudo. Sem esses dados, comentário algum pode passar do nível da simples impressão. Mas como também tenho direito a uma, aqui vai ela:

                      Se bem conheço o meu povo, o referido estudo não revela que a larga maioria dos portugueses gosta mais de sexo que de futebol, e que, neste particular, se encontra acima da média europeia. Mostra apenas que entre nós existe um grande número de mentirosos e que os espanhóis são bastante mais sinceros e desinibidos.

                        Apontamentos, Etc.

                        Sobre a Birmânia (ainda), ou por causa dela


                        A atitude diante do que se passa actualmente na Birmânia funciona como um bom exemplo do estado de objectiva crueldade a que podem chegar os sectores que em questões de política internacional colocam como prioritário, acima de quaisquer outras considerações, o combate sem cedências ao «inimigo principal». Receando fornecerem argumentos que possam servir a defesa de medidas castigadoras da atitude sanguinária dos pulhas da junta militar – como a instauração imediata de um severo bloqueio às actividades da junta no poder, ou a rápida imposição de uma intervenção humanitária –, e de com essa posição poderem aproximar-se das posições intervencionistas dos governos ocidentais, preferem calar-se, sem aparente incómodo, diante da bestialidade e do comportamento genocida. Preferem considerar o respeito elementar pela vida humana como algo que deve ser ponderado caso a caso, de acordo com determinados objectivos estratégicos. Não o fazem por cobardia: apenas faz parte da sua carga genética ideológica.

                        Enquanto termino este post, chega nova informação: os governantes birmaneses recusaram a entrada no país dos elementos da AMI que pretendiam auxiliar as vítimas do ciclone. Não, não se passa «numa galáxia muito, muito distante…».

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                          Caretice

                          O CDS-PP indigna-se porque um Dicionário de Calão integrado no «site infantil-juvenil» do Instituto da Droga e da Toxicodependência associa a palavra careta , no vocabulário próprio do meio, a qualquer indivíduo «conservador, desprezível e desinteressante» que não consuma drogas. Um tanto atemorizados, os responsáveis pelo site já retiraram essa e outras palavras. O Houaiss, porém, continua a associar careta a um sujeito «conservador, preso a convenções; quadrado, tradicional», ou «que não usa drogas». Já o Dicionário Editora da Língua Portuguesa considera careta toda a «pessoa muito presa aos padrões tradicionais; bota-de-elástico». A deputada Teresa Caeiro poderá explicar então se também pretende que se lancem para o shredder as páginas dos referidos dicionários, que muitas escolas possuem na sua biblioteca e numerosos alunos têm em suas casas. Ou se deseja antes que por decreto-lei se suprima a palavra.

                          PS – Este episódio lembra-me um outro que aconteceu quando andava na primária. Uma colega – bom, as escolas eram separadas «por sexo» (como se dizia na época), mas durante um maravilhoso mês tivemos aulas em conjunto porque a professora das meninas adoeceu – «acusou-me» à directora de ter pronunciado a palavra autoclismo. Na casa dela não havia.

                          PS2 – Já agora: o que procurámos todos nós nos nossos primeiros dicionários, meu deus, por palavras proibidas! Algumas das que não encontrávamos eram prontamente adicionadas a lápis, com aquela caligrafia redondinha que os professores nos ensinavam.

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                            Os nossos birmaneses

                            Ao procurar aplicar os regulamentos comunitários sobre higiene alimentar às instituições de solidariedade social, precisamente numa altura na qual o número de famílias carenciadas está a aumentar e os bens de consumo essenciais a encarecerem bastante, a ASAE segue o modelo birmanês do total menosprezo pelas pessoas comuns. Exigir neste momento, em Portugal, que as cozinhas dessas instituições possuam rigorosamente os mesmos requisitos que as de um restaurante, proibindo-as de aceitarem alimentos oferecidos pelas populações e obrigando-as a deitar fora toda a comida congelada em arcas normais, constitui uma grave prova de impiedade. E, uma vez mais, de cega submissão a exigências de um higienismo irrealista e inumano que nos chega do exterior e os nossos tecnocratas importam sem ponta de vergonha.

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