Se tivesse permanecido entre nós, Félix Nadar (1820-1910) – o valente figurão, o fotógrafo de Baudelaire, de Courbet, de Delacroix, de Verne, de Dumas, de Bernhardt, de Clemenceau, de Doré, de Nerval, de Liszt, de Sand, de Gautier, de Thiers – completaria hoje a bonita idade de 191 anos. Sem ele a memória visual da cultura europeia de Oitocentos teria sido outra. Bem mais pobre e cega, sem dúvida.
Ai Weiwei, o mestre-escultor das sementes de girassol em porcelana que é possível esmagar com os pés, o importante artista, filósofo e activista dos direitos humanos, foi preso este fim-de-semana em Pequim quando se preparava para viajar até Hong-Kong. Na mesma altura foram também detidos diversos colaboradores seus. Neste momento as autoridades da República Popular da China mantêm Weiwei incontactável.
Vivemos tempos difíceis para a esquerda. Na realidade eles jamais foram fáceis, uma vez que o seu trajecto aponta desde a origem para a construção de uma sociedade solidária e igualitária, e esta é, em qualquer tempo ou lugar, uma tarefa difícil, morosa e armadilhada. Se a este objectivo primordial juntarmos a defesa da liberdade e valorização da democracia, então o preenchimento das agendas da esquerda torna-se ainda mais complicado. Por isso tantos preferem pluralizar o conceito: «esquerdas» parece, de facto, mais realista do que «esquerda», uma vez que a diferença é a regra, muitas vezes o obstáculo, e só no plano dos fundamentos se admite um caminho partilhado. Em Portugal, esta separação das águas foi reforçada, na comparação com experiências geograficamente próximas, pelo facto de ser praticamente inexistente, no mínimo desde o final da Segunda Guerra Mundial e dos tempos do MUD, o simples vislumbre de um projecto comum. De um calendário capaz de congregar diferentes sectores em torno de objectivos partilhados, voltados para a edificação objectivável de um outro país.
Mas se a dificuldade de encontrar à esquerda um caminho de aproximação não é de hoje, ela tornou-se agora particularmente penosa e incapacitante. Para uma consciência de esquerda que coloca os interesses colectivos acima dos objectivos circunstanciais deste ou daquele agrupamento, é particularmente difícil olhar o modo como a direita se encontra isolada na defesa de um modelo de sociedade selvagem e injusto sem que isso a distancie do acesso ao poder pela via do voto popular. Pelo contrário, ela mantém-se até pronta a assumir a governação e só a «esquerda de retórica», que esquecida dos seus princípios fundadores lhe imita os passos, parece em condições de lhe fazer frente nas urnas. Por outras palavras e dando o nome aos bois: enquanto o PSD e o CDS se preparam para gerir os destinos da nação, o PS, ou a linha de conciliação com a direita e o capitalismo que hoje o domina, limita-se a confrontá-los prometendo a mesma coisa mas de uma forma mais branda, moderna e simpática. Uns e outros projectando os seus programas sobre esse cenário de proclamada inevitabilidade que tem a destruição da dimensão social do estado como ponto assente e indiscutível. (mais…)
Cada Primeiro de Abril parecia um dia único. E não só para as crianças. A expectativa era grande, maior até, provavelmente, do que a das vésperas do Natal. A jornada começava cedo, vasculhando nos títulos dos jornais, nos noticiários da rádio ou da televisão, na conversa do vizinho, a mentira pela qual tanto se aguardara. O embuste fazia parte do jogo e era mais saboroso se parecesse verosímil, ou pelo menos incerto, podendo ser mantido até à manhã seguinte sem que alguém tivesse a coragem de o desmentir. Mas será mesmo que…? A 2 lá vinha então o anúncio, também esperado, revelando a extensão da burla e confirmando, quase sempre com um certo pudor, que quem por ela se deixara envolver o não tinha feito por ignorância ou burrice, mas por cumplicidade ou distracção.
Assim foi durante bastante tempo, não se sabe até quando. É provável que tudo tenha começado a mudar algures nos anos oitenta. E na década seguinte já o Dia das Mentiras tinha deixado de ser aquilo que fora. Não por se perder a magia do engano, mas por este se haver vulgarizado, deixando de corresponder a um estado de excepção. A velocidade e a imprevisibilidade da mudança, a generalização do boato e da imprecisão, o uso jornalístico da possibilidade com um tratamento análogo àquele conferido ao facto, a criação da «inverdade», a manipulação dos acontecimentos pelas manchetes, banalizaram a boa e calorosa trapaça. Por isso o Primeiro de Abril não será mais o que foi: um dia diferente em que a mentira participava, a mentirola divertia, a mentirinha não aborrecia e o engano acendia a imaginação.
Não acredito na absolutização da ideia mil vezes proclamada como grandiosa de «escrever para a gaveta». Mesmo o escritor não publicado – ou aquele que sabe ter escassas ou nulas hipóteses de vir a sê-lo – escreve sempre para outro alguém. Será, se para mais ninguém for, para a/o amante, para um amigo cúmplice ou para o leitor ideal que um dia cairá do céu. Em contrapartida, não têm conta os escritores condicionados pela censura ou pelo medo do julgamento público impiedoso que escreveram a maior parte da obra, se não toda ela, sem a perspectiva de que esta pudesse vir a ser editada. Em «Amar Dostoievski», um artigo de Susan Sontag integrado na compilação póstuma Ao Mesmo Tempo, evoca-se o caso peculiar de Leonid Tsípkin (1926-1982).
Este médico russo de origem judaica viu a família ser repetidamente atingida pela repressão estalinista, e a ele próprio debaixo de constante suspeita, tendo por isso resolvido escrever apenas para os mais chegados. Recusando-se até, com medo de problemas insolúveis com o KGB, a deixar que os seus originais circulassem clandestinamente. Da sua perseverança contida diz a dado passo Sontag: «Escrever sem esperança ou perspectiva de ser publicado – que reserva de fé na literatura isso não implica?». Acabaria no entanto por aceder a publicar no estrangeiro Verão em Baden-Baden, romance construído em volta de um episódio da vida de Fiódor Dostoievski. A 13 de Março de 1982, um semanário nova-iorquino começou a publicá-lo sob a forma de folhetim. A 15 de Março, uma segunda-feira, Tsípkin foi despedido do instituto médico moscovita onde trabalhara a maior parte da vida. A 20 de Março sentiu-se mal quando estava em casa a traduzir um artigo; deitou-se, chamou pela mulher e morreu. Mas durante sete dias foi «autor publicado».
Queridisimos intelectuales (del placer y el dolor) é um documentário que obviamente não vi, estreado ontem no Festival de Cinema de Málaga no qual certamente não estive. Dele retenho, por isso, apenas os ténues ecos, frases soltas, que chegam com as leituras em roda livre das três da madrugada. Eles contam que o filme cola intervenções avulsas, aparentemente incoerentes, de intelectuais espanhóis contemporâneos. Guardo duas. A primeira é de Carlos Moya, não o ex-tenista de sucesso mas o sociólogo emérito, que declara ter sido o haxixe, durante os anos sessenta, «a quinta coluna do Islão» no Ocidente. Fica a boutade, para reflexão eventual e memória futura da mesma. A segunda intervenção que retenho é a de Santiago Carrillo, e nela o velho resistente, o antigo secretário-geral do PCE, afirma que durante a Guerra Civil espanhola teve lugar «uma explosão de liberdade sexual».
Esta «liberdade sexual» nas diversas frentes de combate deve ser relativizada mas foi real. Ela serviu à propaganda do franquismo, aliás, para mostrar a «imoralidade» dos republicanos, apresentados por vezes como vivendo em permanência entre Sodoma e Gomorra. Veja-se, como exemplo, a descrição dos republicanos «bolcheviques e jacobinos» traçada no conhecido filme de propaganda L’assedio del’Alcazar, rodado em 1940 por Augusto Genina. Sem querer ser simplista, julgo no entanto poder dizer, em abono da frase de Carrillo, que uma moral sexual mais rígida, fundada na condenação de ligações múltiplas, descomprometidas e fora do casamento, foi sinal, apenas sentido a partir dos anos quarenta, de uma regressão do franquismo em relação a práticas anteriores, historicamente comprováveis, que admitiam realmente uma menor rigidez no campo da sexualidade. Algo de semelhante se passou aliás em Portugal, com o recuo imposto durante o salazarismo de uma vivência social, sob este aspecto razoavelmente aberta, que havia sido posta em prática em determinados ambientes durante a Primeira República.
Por outro lado, e esta é uma constante intemporal, a guerra intensa, e a guerra civil é uma guerra de elevadíssima intensidade, funciona sempre – como sabe quem alguma vez a viveu e os livros nos contam vezes infinitas – como um poderoso afrodisíaco. Debaixo da sua influência, os «factos da vida» acontecem então por si, mais naturalmente, por vezes violentamente, quase sempre com urgência. E nem entre os franquistas ela esteve ausente, como o comprovam diferentes testemunhos. Por isso a frase de Carrillo só pode admirar quem ande um tanto distraído ou esteja, com falta de tempo, à procura de um título para uma breve nota de reportagem. Provavelmente foi isto que aconteceu. Com êxito, pois foi ela que me chamou a atenção durante a leitura-relâmpago desta noite.
Há cerca de uma semana passei uma tarde a arrumar livros que tinham ficado para trás, na casa onde nasci, onde me criaram e onde não voltarei a dormir. A casa está agora desabitada. Está muda, vazia. Imagino que à noite se oiça, ainda mais, a chuva sobre o velho telhado, o vento empurrando os ramos da laranjeira contra a janela do meu quarto, o ruído dos motores acelerando estrada fora até se calarem ao longe. Mas só o posso imaginar, pois já lá não estou. Do que ali vivi sobra apenas a memória. Algumas fotografias também. E sobretudo os livros que li no tempo em que lá dormia, quando ali morava a minha segura retaguarda. Foram eles, os livros, os sinais que fui deixando ficar, como aviso de que não havia partido para sempre. Agora que tudo acabou, trouxe-os comigo. Os últimos, que não couberam na mala do carro, virão na próxima jornada. São um elo, são muito do que fui, são um pouco do que sou, deixei de ser ou jamais serei. Percebo-o agora quando regresso, com ou sem surpresa, aos sublinhados obstinados, seguros, ingénuos ou dementes.
Lenine, Como iludir o povo com os slogans de igualdade e de liberdade [Centelha, 1974]
Lido em algum momento durante os meses do PREC, provavelmente ainda em 74. Uma obra de referência na reconhecível escrita martelada de Lenine, que o rasto da Revolução de Outubro transformaria em template universal e intemporal. Na época, como mais de cinquenta anos antes na Rússia soviética – fora originalmente um discurso pronunciado em Maio de 1919, nitidamente decalcado de O Estado e a Revolução – este texto simplificava o complexo para dissipar a dúvida das almas bolcheviques menos firmes na recusa da democracia parlamentar.
«Quando só houver no mundo trabalhadores e as pessoas se esquecerem de pensar em como era possível ser um membro da sociedade e não um trabalhador – isto não acontecerá tão cedo, e a culpa é dos cavalheiros burgueses, assim como dos cavalheiros intelectuais burgueses – então seremos pela liberdade de reunião para todos, mas hoje a liberdade de reunião para todos, mas hoje a liberdade de reunião significa liberdade de reunião dos capitalistas, dos contra-revolucionários. Lutamos contra eles, e havemos de abolir essa liberdade.
Estamos numa batalha – é este o significado da ditadura do proletariado. Passaram os dias do socialismo ingénuo, utópico, fantasista, mecânico e intelectual, quando se pensava que bastava convencer a maioria das pessoas e pintar um belo quadro da sociedade socialista (…).
A Humanidade só pode atingir o Socialismo através da Ditadura do Proletariado. Ditadura é uma palavra crua, séria, sangrenta e terrível, e tais palavras não devem ser atiradas levianamente. Se os Socialistas lançaram um tal slogan é porque sabem que a classe dos exploradores só cederá em resultado duma luta desesperada e sem piedade e tentará disfarçar o seu domínio por meio das mais variadas palavras agradáveis.»
Desnecessárias e até um tanto grotescas para a maioria dos cidadãos, que as observam como a um evitável render da guarda, estão a chegar as eleições antecipadas, projectadas pela Grande Crise sobre um cenário de descrença. Face a elas, a esquerda à esquerda de Sócrates vê-se perdida num labirinto de possibilidades atravessadas por duas grandes incapacidades. A de construir um modelo que refunde e adapte ao século XXI a definição programática de socialismo, e a de propor linhas credíveis para uma «governabilidade à esquerda». Nestas condições, os partidos do centro-direita – o tal «arco da governação» rotativista que vai do actual PS ao CDS – vivem uma situação paradoxal: não têm a confiança da maioria dos cidadãos, cada vez mais alheados da política institucional, mas sabem que, ainda assim, só entre eles o poder será partilhado. Principalmente porque à esquerda dos socialistas não existe alternativa de governo e o voto dos cidadãos a ela destinados representará apenas, como tem acontecido nestes quase quarenta anos de democracia, um voto de resistência ou de protesto.
Muitas pessoas se aperceberam deste drama e algumas tentam mesmo, mais ou menos em desespero, uma solução de circunstância. Na Internet, alguns bloggers falam de «unidade» e circula até um abaixo-assinado «por uma alternativa de esquerda» que tenta encontrar uma forma de resolver o problema. Mas quem tem tomado estas iniciativas fá-lo geralmente da pior maneira, procurando desencadear e fechar em semanas um processo que deveria ter sido iniciado há pelo menos vinte anos, com muita pedra partida pelo caminho. Buscam uma convergência espúria onde reina a desconfiança e pouco existe de aglutinador para além da resistência comum aos sucessivos PEC, a ideia de que é necessário «defender os trabalhadores» e os primeiros acordes da Internacional. Pois como é possível desenhar uma linha de unidade, tendo em vista a governação, com base numa aproximação que inclua o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista, a CGTP, os «movimentos sociais progressistas» e até «os partidos extra-parlamentares»? Só falta juntar à solução os Homens da Luta e os membros menos arrebatados do blogue Cinco Dias (onde teria, ainda assim, de ocorrer primeiro uma trágica cisão). (mais…)
Ser optimista é difícil, já que não se encontra à vista uma alternativa para a gestão da realidade que exclua a aflição prometida pelo centro rosa-laranja. Continuar a trilhar a linha contínua da desesperança. Na banda da direita, o CDS apenas lhe acrescenta a nostalgia de uma sociedade desigual, o princípio da moral e da autoridade como template, a verborreia populista para seduzir campónios e varinas. À esquerda a desolação de um horizonte incorpóreo, a invisibilidade de uma intervenção que não seja apenas a do grito, a do protesto – necessária, sem dúvida, mas muito insuficiente –, ou a da margem. A falta de projecto para um futuro verosímil, para uma «política de esquerda» que se entenda, para uma alternativa real de vida e governação, que jamais se esforçou por construir. Sem medo de poder ser poder. De construir, não apenas de imaginar, outro mundo possível.
Escrevo enquanto a maioria desespera. A esta hora ninguém sabe muito bem aquilo que vai acontecer, mas parece certo que o governo caiará. Ou talvez não, talvez não seja já. Mas será em breve. Ganha forma o espectro da incerteza, pairando sobre um cenário de pré-catástrofe. Ninguém se atreve a arriscar previsões que não tragam consigo nuvens negras. Só os lerdos e os ignorantes podem pensar de forma diferente. E o pior é que a alternativa não é alternativa. A queda de um governo incapaz de produzir futuro trará outro, que gerirá a catástrofe prometendo-nos o Éden para dentro de trinta anos. Ambos, os que estão de saída ou aqueles que irão chegar, irão falar-nos de inevitabilidade, da impossibilidade das coisas poderem ser de outro modo. A nossa vida, projectada sobre um mundo devastado, empurrará a esperança para o tempo dos nossos netos.
A Confederação Nacional das Associações de Família, com a argúcia e a presciência que se lhe reconhecem, diz que há um «risco de conflito geracional» pelo facto de haver «jovens frustrados» que «poderão sentir-se impelidos a pedir contas a toda uma geração que lhes deixa um legado de dívidas, de falta de oportunidades, de retrocesso nas liberdades». Se bem interpreto esta preocupação, as famílias deverão então efectuar sessões de autocrítica – ou de auto-análise, para os familiares mais instruídos – nas quais os mais velhos se deverão penitenciar por um dia terem acreditado que viviam num mundo que tendia a ser melhor do que aquele que lhes havia sido legado pelos seus pais. E assim sucessivamente, regredindo na história da responsabilidade geracional, na medida do possível, até ao instante da Criação. Perceber-se-á então que o culpado de tudo foi quem começou o movimento, ou seja, Deus. Parece-me que a Confederação Nacional das Associações de Família está a meter-se numa grande embrulhada.
Há uns meses fui desafiado pela Plataforma Anti Praxe Académica, de Coimbra, a escrever um texto para editar no seu P.A.P.A.zine. Saiu aquilo que abaixo se transcreve. Sei que não é fruta da época – já passou a Latada e ainda não chegou a Queima, datas-magnas da vida estudantil para grande número de universitários – mas talvez por isso mesmo, porque seja tempo de menos adrenalina movida a superbock, seja também a altura de o divulgar aqui. Didactismo e panfletarismo qb, que há gostos para tudo.
Para a maioria dos estudantes que nas décadas de 1960-1970 frequentaram a Universidade de Coimbra – nas outras o problema nem se punha –, a praxe académica não tinha grande peso. Simplesmente porque estava a desaparecer. Antes do «luto académico», decretado em 1969 para responder à repressão dos estudantes, já a maioria destes pouco se preocupava com esse tipo de prática simbólica. O desenvolvimento do associativismo estudantil e o alastrar de uma concepção tendencialmente democrática e igualitária da sociedade, a recusa de um certo «espírito de rebanho» que as autoridades apreciavam, iam transformando a praxe, como rotina de base corporativa e elitista, em algo de suficientemente anacrónico para ser ignorado por um número crescente de alunos. Até mesmo o uso do traje académico vivia uma fase de claro recuo, embora alguns ainda dele se servissem casualmente. Ao fechamento da batina, imposto pela decisão colectiva do «luto», seguiu-se por isso, em poucos meses, o seu quase completo desaparecimento.
O que aconteceu nessa altura foi assim a confirmação de uma transformação de facto: não se fez desaparecer a praxe do dia-a-dia estudantil, pois aí ela já quase não existia, mas acabou-se com a festa académica tradicional e com a ostentação pública da imagem elitista do aluno universitário. Esta mudança serviu para unir os estudantes contra o governo da altura, aproximando-os do cidadão comum e mostrando que consideravam existirem situações muito mais importantes do que a ocasional exibição do destaque social e da capacidade para consumir álcool. A presença de um número cada vez maior de mulheres na academia acentuaria aliás a metamorfose, limitando o «prestígio» da boémia masculina e da «autoridade da moca» na qual se fundava parte da velha ordem estudantil. Os estudantes não se viram assim «privados da praxe», como li há meses num artigo de jornal: a larga maioria deles descartou-a porque já não a sentia como sua, servindo-se do que dela restava apenas para a sua luta anti-regime e anti-sistema. Por isso durante mais de dez anos, e com a Revolução de Abril pelo meio, ninguém mais pensou no assunto. Ele simplesmente parecia morto e enterrado. (mais…)
Talvez existam tantas explicações para a opção do escritor pela escrita quanto a soma dos que a seguiram. Ou mesmo mais, pois existe ainda um certo número, com toda a segurança bastante superior, de pessoas que a procuraram mas desistiram e seguiram outra vida. Gosto da justificação que Roberto Bolaño deixou durante uma entrevista conduzida por Carmen Boullosa e publicada na revista nova-iorquina Bomb no final de 2002, cerca de meio ano antes da sua morte. O que nela me atrai é justamente a imponderabilidade, deixando no ar aquela que é, afinal, a única afirmação possível: escritor algum o é fora de um conjunto infinitamente variável de acasos, de escolhas e de desistências.
Ser escritor é agradável – não, agradável não é o termo –, é uma actividade que tem a sua quota-parte de momentos divertidos, mas sei doutras coisas que são ainda mais divertidas, tão divertidas como para mim a literatura. Assaltar bancos, por exemplo. Ou realizar filmes. Ou ser chulo. Ou voltar a ser criança e jogar numa equipa de futebol mais ou menos apocalíptica. Infelizmente, a criança cresce, o assaltante de bancos é morto, o realizador fica sem dinheiro, o chulo adoece e depois não há outra opção que não seja escrever. Para mim a palavra «escrita» é exactamente o oposto da palavra «espera». Em vez de esperar, há escrever. Bem, provavelmente não tenho razão – é possível que escrever seja outra forma de esperar, ou de adiar coisas. Gostava de pensar doutra maneira.
Em Roberto Bolaño: Últimas entrevistas. Introdução de Marcela Valdes. Trad de José António Freitas e Silva. Quetzal. 122 págs.
Custa pouco mais do que um maço de cigarros o livro de Stéphane Hessel, best-seller em França, que chegou agora às nossas livrarias. Indignai-vos! é a declaração de um imperativo, escrita por alguém que tem suficiente autoridade moral para o fazer: aos 93, herói da Resistência francesa, sobrevivente dos campos de concentração nazis e um dos redactores da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o autor continua lúcido e tão atento aos motivos para a indignação do nosso tempo quanto aos dos anos durante os quais, em vez de se calar, de pactuar, de desistir, arriscou a vida por causas imprescindíveis.
Alguns destes motivos são colocados pela necessidade de resistência à barragem de informação que se tem esforçado por fazer-nos acreditar não existirem alternativas ao mundo no qual vivemos: «Ousam dizer-nos que o Estado já não consegue suportar os custos das medidas sociais. Mas como é possível que actualmente não tenha verbas para manter e prolongar estas conquistas, quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente desde a Libertação, quando a Europa estava arruinada?» Tal é possível, conclui, «apenas porque o poder do capital nunca foi tão grande, insolente, egoísta, com servidores próprios até nas mais altas esferas do Estado.» E continua: «Os bancos, agora privatizados, preocupam-se principalmente com os seus dividendos e com os elevadíssimos salários dos seus administradores, e não com o interesse geral. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande, a competição nunca foi tão incentivada.»
A fantasia segundo a qual não é possível actuar contra esta situação de desigualdade tem no entanto os seus agentes, responsáveis directos pelo disseminar de uma convicção de que as coisas «são como são» e de que o que há a fazer é cada um tentar arranjar maneira de passar à frente dos outros. O antigo resistente propõe então «uma verdadeira insurreição pacífica contra os meios de comunicação de massas que só apresentam como horizonte à nossa juventude uma sociedade de consumo, o desprezo pelos mais fracos e pela cultura, a amnésia generalizada e a competição renhida de todos contra todos.» Por isso, mesmo no coração das democracias – onde não é preciso atirar pedras ou pegar em armas para fruir do direito à palavra – indignar-se é preciso. Desde logo contra esta ditadura da inevitabilidade, responsável pela disseminação sedativa do princípio da desigualdade «natural». Foi isto que, ao aproximar-se do final da vida, Hessel sentiu que ainda era importante dizer. «A todos aqueles e aquelas que irão fazer o século XXI.»
Stéphane Hessel, Indignai-vos! Objectiva. Prefácio de Mário Soares. Trad. Paula Centeno. 52 págs.
Mais de 300.000 saíram ontem às ruas em Lisboa, no Porto e em outras cidades do país. Elas transformaram o protesto da «geração à rasca» num conjunto de demonstrações que envolveu pessoas de todas as idades e de muitas origens, unidas, de uma forma estranha apenas na aparência, justamente pela diversidade dos rostos, das reivindicações, dos gestos e das palavras de ordem.
Pessoas de idades muito diferentes porque as que estão entre os 18 e os 35, das mais directamente afectadas pela precariedade do trabalho, pela falta de dinheiro e pela ausência de perspectivas, têm pais, irmãos e amigos que se preocupam com elas e quiseram partilhar a expressão pública das suas angústias e da sua revolta. Mas também porque existem muitos mais, de outras gerações, a viver no limite, temendo diariamente pelo futuro e com vontade, mas até agora sem oportunidade, de irem para a rua gritar o desespero. Desesperados ou solidários, novos e velhos, com mais ou menos estudos, aspecto casual chic ou bem humilde, com ou sem conta no Facebook. As manifestações foram, por isso, uma importante expressão de solidariedade entre sectores sociais muito diversos, pessoas que no dia-a-dia se cruzavam sem se olharem, como opiniões desiguais, com ou sem partido, mas unidas agora por um complexo dramático de carências, de inquietações e de reivindicações que lhes são comuns. (mais…)
A defesa da justiça começa pela voz dos injustiçados. Só pode ter medo deste acto colectivo de indignação – entendendo em primeiro lugar que «prejudica o país» ou que apenas «inquieta os mercados» – quem já tenha perdido de todo, algures entre a digestão de um jantar e a previsão de um cargo, a noção da dimensão solidária da política e do papel democrático do protesto de rua. Para mais justíssimo e necessário, como este. Vão lá e confiem, que não irá chover. [info]
Este é já o meu quarto post sobre a Líbia. Mas sucedem-se as urgências, e com elas as razões fortes para voltar ao assunto.
Olho uma sequência de fotografias de rebeldes líbios levantados em armas contra Kadhafi e sou obrigado a juntar-lhes uma nota pessoal. Fui militar durante três anos e estive envolvido em situações de guerra. Outra guerra, diferente, é verdade, mas nem por isso menos guerra, naquilo que esta tem de constante e universal. Por isso, posso dizer que não a conheço apenas dos livros, dos jornais ou dos documentários: tenho uma memória viva de ver matar e de ver morrer, participei em acções de combate, e, antes disso, treinei muitos, largas centenas, talvez alguns milhares de homens, para as enfrentarem. Acreditem que não é fácil conviver com esta memória, que jamais se é capaz de brincar com ela, que nos fica para sempre uma espécie de cumplicidade para com aqueles que, à distância, observamos em idêntico cenário. Banal? Talvez sim, mas verdadeiro.
Por isso não me é possível ver sem um estremecimento, sobre a paisagem líbia, bandos de pessoas mal armadas, sem uma disciplina rudimentar, sem instrução básica de tiro, defesa e progressão no terreno, a enfrentarem tropas bem equipadas e altamente disciplinadas. Sei que é belo, provavelmente comovente, ver todos aqueles jovens e menos jovens «fardados» muito livremente, de acordo com uma espécie de código baseado num imaginário revolucionário global, a lutarem por uma ideia de liberdade que têm até dificuldade em definir. Não podemos deixar de admirar a sua coragem insana, à beira da imolação, projectada numa luta sem quartel e claramente desigual. Mas desde o primeiro momento esperei que fosse acontecer aquilo que agora está a acontecer e os repórteres de guerra relatam: civis armados que disparam à toa, desperdiçando munições, sem um alvo definido, sem um plano, morrendo em glória mas sem qualquer utilidade debaixo dos disparos dos caças, dos helicópteros e da artilharia pesada, com as câmaras das televisões ou o silêncio por testemunhas. A sua bravura suicida não nos deixa indiferentes. (mais…)