Arquivo de Categorias: Leituras

Escrever é difícil, a vida também

Imagem Lloyd Hughes

Há algumas semanas, quando consultava uma pasta de folhas datilografadas contendo dezenas de comunicações apresentadas em Maio de 1975 ao I Congresso dos Escritores Portugueses, surpreendeu-me – embora já para tal estivesse avisado – a multiplicidade de opiniões sobre a arte de escrever emergentes num tempo, o da nossa revolução democrática, do qual se possui por vezes uma visão demasiado simplificada. É verdade que nos debates então travados entre gente que dela fazia a sua profissão ou o seu destino surgiram juízos e propostas em apertada consonância com alguns dos fortes imperativos políticos da época. O escritor neorrealista Faure da Rosa não parecia ter dúvidas sobre o caminho que julgava dever ser percorrido: «Nada tendo de deuses, trabalhadores como os outros, a função do escritor de hoje é a de escrever para as massas.» Muitos dos presentes, embora de forma não tão simplificada, seguiram de facto o princípio de acordo com o qual a arte de pensar e de escrever deveria corresponder em larga medida à celebração de um compromisso social e político. (mais…)

    Apontamentos, Atualidade, Leituras, Opinião

    O Muro como metáfora

    Imagem de Aprilspit
    Imagem de Aprilspit

    Terá sido entre as proclamações dos ativistas do Black Power e os graffiti do Maio de 68 que a ideia de que «a revolução não será televisionada» irrompeu de modo programático. Sugeria aquilo que, na época, para muitos parecia óbvio: que o fim do capitalismo e a sua substituição por um sistema reorganizado e perfeito deveria ganhar corpo no calor do combate político, na luta de ideias, na ação direta se necessário, mas jamais ser mediado pela televisão. No ano de 1989, porém, Berlim, Varsóvia, Praga ou Bucareste deram a ver ao mundo a «primeira revolução televisionada», a acontecer em simultâneo nos lares dos pacatos cidadãos. O seu episódio nuclear, pelo efeito produzido e pela dimensão simbólica, ocorreu na memorável noite de 9 de Novembro desse ano. Quem recorda o derrube do Muro seguido em direto pelo aparelho doméstico de televisão, rememora a perceção de algo até ali inconcebível: o fim de um mundo considerado sólido revelado em toda a crueza, como na sequência capital de um filme-catástrofe (mais…)

      Atualidade, História, Leituras, Memória, Olhares

      Shakespeare e a tábua das emoções

      shakespeare2

      A contemporaneidade de William Shakespeare tem sido particularmente destacada na altura em que se evoca o 450º aniversário do seu nascimento. No início deste ano, em Berlim, um colóquio promovido pelo British Council que envolveu diversos especialistas teve justamente como pressuposto que dentro e fora do universo académico o seu legado «se mantém vivo sob múltiplos aspetos». Todavia a ideia não é nova, pois já em 1961 o encenador Jan Kott publicara em Varsóvia um livro, rapidamente traduzido em diversas línguas, sobre a força dessa ligação. Kott traçava ali uma série de analogias entre as situações dramáticas criadas pelo mais conhecido dos naturais de Stratford-upon-Avon e as cambiantes infernais da vida pública, duplamente subjugada ao impacto do nazismo e do estalinismo, presentes na Polónia do seu tempo. (mais…)

        Ensaio, História, Leituras, Olhares

        O não-ficcionista

        Em «Dificultad de la Ficción», um artigo publicado há alguns meses no diário El País, Antonio Muñoz Molina, andaluz de Jaén e autor de romances notáveis como O Inverno em Lisboa, Beltenebros e A Noite dos Tempos, também ensaísta de mérito e cronista obstinado, lembrou a dada altura, ao falar do exercício da sua principal arte, aquilo que poderá parecer óbvio: «O romancista é livre: ele próprio determina a mistura de ingredientes reais e inventados que dão corpo à sua matéria narrativa. Mentir é a sua forma de chegar a uma certa verdade.» (mais…)

          Apontamentos, Leituras, Olhares

          Nos cem anos da Primeira Guerra Mundial

          À medida que nos fomos aproximando do centenário da Primeira Guerra Mundial, desdobraram-se as tentativas para explicar as suas circunstâncias à luz do presente. Todas têm coincidido em aspetos que a historiografia sempre deu como certos e incontroversos. Ninguém contesta, por exemplo, que ela começou quando poucos esperavam que pudesse ocorrer, que ganhou um extensão temporal e geográfica distante das expectativas de um confronto que se presumira curto e regional, e, acima de tudo, que introduziu um novo equilíbrio nas relações entre os Estados, perturbador da ordem internacional vigente e criador das condições para a eclosão, duas décadas depois, de um confronto ainda mais brutal. Existem, todavia, características que foi a última década de desenvolvimento do conhecimento histórico a reconhecer e destacar. Três delas justificam uma atenção especial: a guerra não opôs no terreno, pelo menos no seu início, modelos de Estado e de sociedade diametralmente opostos; desenvolveu-se num ambiente marcado por uma violência indiscriminada e sem precedentes; e emergiu no contexto de um conflito latente, aparentemente invisível, cuja gravidade não terá sido devidamente avaliada por aqueles que estavam no centro da decisão política. (mais…)

            História, Leituras, Memória

            A leitura e o futuro

            Imagem de Andrew Hefter
            Imagem de Andrew Hefter

            «Enquanto houver livros para ler sei que não terei um momento aborrecido na vida. Só isto basta para lhes dever muito.» Com esta frase, com a qual rematou uma crónica recente sobre livros e livrarias, José Pacheco Pereira lembrou uma atitude que, apesar de viver uma fase de recuo, continua a marcar profundamente a experiência coletiva e a de muitos de nós. Refiro-me à prática da leitura como momento de enriquecimento pessoal, enquanto fator de conhecimento e de prazer, mas também ao seu uso como instrumento de liberdade, devido à capacidade que oferece para treinar a imaginação, abrir possibilidades e ajudar a construir uma consciência crítica do mundo. (mais…)

              Apontamentos, Leituras, Olhares, Opinião

              Pina político

              No prefácio a Por Outras Palavras, a segunda das três antologias que foram reunindo muitas das crónicas escritas por Manuel António Pina (MAP) para jornais e revistas, Sousa Dias lembra dois fatores decisivos, apesar de contraditórios na aparência, para obter uma leitura justa daqueles textos. O primeiro considera o caráter sempre efémero de toda a prosa do género – «o cronista é filho de Cronos, o tempo que passa», lembrava o próprio Pina – e remete a sua completa decifração para as circunstâncias nas quais foi produzida. O segundo fator, aplicado mais explicitamente ao registo de MAP, remete para uma identidade conceptual advinda do facto dos seus textos cronísticos serem, cada um deles e o seu conjunto, trabalho de um grande escritor, o que lhes prolonga o prazo de validade. Partem do episódico, do instante, para chegarem àquilo que permanece e o transcende. Há naquelas peças quase diárias, bem acima do que pode ter sido incidental, «um sopro literário, por vezes mesmo poético», que é «imediatamente sensível» e lhes amplia a projeção. Esta é, aliás, uma característica partilhada pela multíplice obra escrita de Pina (na poesia, no teatro, na literatura infanto-juvenil, na reportagem), mas também no seu modo de viver a vida (nisso insistem os amigos, os colegas, os entrevistadores, os leitores que lhe cruzaram os passos). Em ambas, obra e vida, uma constante marca de poeticidade. (mais…)

                Biografias, Leituras, Olhares

                Abysmo (ainda sobre o Acordo)

                «Na palavra lagryma, (…) a forma da y é lacrymal; estabelece (…) a harmonia entre a sua expressão graphica ou plastica e a sua expressão psychologica; substituindo-lhe o y pelo i é offender as regras da Esthetica. Na palavra abysmo, é a forma do y que lhe dá profundidade, escuridão, mysterio… Escrevel-a com i latino é fechar a boca do abysmo, é transformal-o numa superficie banal.» Estas linhas de Teixeira de Pascoaes foram vertidas na revista A Águia como manifestação de repulsa pelas normas da Reforma Ortográfica de 1911. Uma rejeição menos sonora do que aquela que tem vindo a rodear o atual Acordo, pois os meios de circulação da opinião eram outros e o número de escreventes bem menor. Mas a polémica foi então forte e feia, colocando de um lado os que defendiam regras que buscavam adaptar a escrita à fala, e do outro aqueles que abominavam qualquer mudança capaz de mexer com os seus hábitos. (mais…)

                  Apontamentos, Atualidade, Leituras, Olhares

                  O «lado de lá» da Cortina de Ferro

                  Anne Applebaum

                  Não existe história imaculada de ideologia. A par da efetiva impossibilidade de um reencontro total com o passado, ou da recuperação do que aconteceu sem a interferência dos padrões de perversão da memória, este é um dos motivos que torna irrealizável um conhecimento histórico completamente objetivo. Todavia, tal não implica uma subjetividade total: existem processos de aferição e de comparabilidade que separam o historiador, sempre em demanda de indícios materiais ou imateriais que sustentem a sua observação, do mero charlatão ou do vendedor de passados. Por este motivo, para que possa ser aceite e reconhecido pelo trabalho que desenvolve, as marcas de subjetividade do historiador devem encontrar-se menos na manipulação da informação do que no silenciamento de determinados aspetos. Ele não pode pôr-se a inventar, embora possa sempre desviar o olhar daquilo que menos lhe agrada. Foi o que fez, em particular na última obra – A Cortina de Ferro. O fim da Europa de Leste*, saída no início do ano passado e agora traduzida pela Civilização –, Anne Applebaum, a antiga jornalista polaco-americana, hoje reorientada para a história e a ciência política, autora do aclamado Gulag: Uma História, saído em 2003. (mais…)

                    Ensaio, História, Leituras, Memória

                    O ovo da serpente

                    Lê-se num instante O Eterno Retorno do Fascismo, um pequeno grande livro do filósofo e ensaísta holandês Rob Riemen, traduzido há perto de dois anos pela editora Bizâncio. No curso das suas 80 páginas passamos em revista, de uma forma clara e bastante esclarecedora, como num manual de instruções, o modo insidioso como um novo fascismo se tem vindo a instalar nas nossas consciências narcotizadas com o patrocínio da maioria dos meios de comunicação de massa. Toma de hoje em dia outros nomes, enverga outras máscaras, é até capaz de invocar a liberdade política, a igualdade de oportunidades e o respeito pela democracia formal para conquistar adeptos, preparando assim o terreno para novas formas de submissão. Mais traiçoeiras, menos espetaculares, aparentemente indolores ou até sedutoras, mas não menos escravizantes e violentas do que aquelas que no século passado foram aplicadas em parte do mundo, e em Portugal também, a partir dos modelos autoritários e profundamente agressivos que um dia se apoderaram da Itália de Mussolini e da Alemanha de Hitler. (mais…)

                      Democracia, Leituras, Olhares

                      O som do silêncio

                      Numa crónica publicada em 2003, Manuel António Pina recordava aquela que era, para Walt Withman, a estreita relação entre o autor e quem o lê: «O leitor sabe que, quando é de noite, estamos ambos sós.» Depois de lembrar a afirmação do poeta nova-iorquino, Pina continuava com as próprias palavras: «Só nos livros são possíveis ainda a noite e a solidão, em tempos de holofotes por todos os lados. E quanto os homens precisam de solidão, de se escutar a si mesmos na numerosa voz dos livros! E, em tempos como estes, barulhentos e estridentes, de silêncio!» Pouco mais de uma década depois disto ter sido escrito, o ruído não cessou de aumentar e são cada vez menos os que compreendem a necessidade da leitura imersiva e solitária que nos faça pairar por instantes na cápsula do tempo. Permitindo, como no intervalo de uma competição desportiva ou de uma tarefa difícil, que ganhemos força para prosseguir a jornada. Para não perdermos o norte enquanto tudo em redor acelera. Para não nos deixarmos cegar frente ao excesso de luz. Para que a razão não soçobre perante a estridência, deixando à solta o pior de nós.

                        Apontamentos, Atualidade, Leituras, Olhares

                        Uma clarividência inaceitável

                        Um artigo de Antonio Muñoz Molina publicado no Babelia – El País de 12 de Novembro de 2013. A propósito das apropriações redutoras de Albert Camus, levadas a cabo no ano do seu centenário, e da resistência que as suas palavras levantam a esse processo.

                        Una claridad inaceptable

                        Antonio Muñoz Molina

                        Canonizar a Camus en la ocasión oficiosa de su centenario es seguir empeñándose en lo que ni sus peores enemigos lograron cuando estaba vivo: domesticarlo, o en su defecto sepultarlo en la irrelevancia, o peor todavía, en el malentendido. Más de medio siglo después de su muerte, cuando las causas que más le importaron —la guerra de la independencia de Argelia, la revolución antisoviética en Hungría— ya están olvidadas, cuesta poco seleccionar unas cuantas frases suyas que suenen bien y ponerlas al pie de una de sus fotografías en blanco y negro para lograr un Camus confortable, que nos venga bien para legitimar nuestras posiciones o nuestros prejuicios. Seguro en su lugar del pasado, inmóvil en sus imágenes como un santo en una hornacina, leído por encima o citado de oídas, y desde luego desprendido de las controversias feroces que lo angustiaban y lo estimulaban, Camus queda solemne, indiscutible, irrelevante en el fondo, un escritor con madera de galán del tiempo en que los intelectuales salían en las fotos con un cigarrillo en la boca, fotogénico, eso sí, más fotogénico que ningún otro, ideal para pósters de librerías y portadas de suplementos literarios. (mais…)

                          Ensaio, Heterodoxias, Leituras, Recortes

                          Heróis, precisam-se

                          Fot. Luis Cardia

                          Condenado à morte por haver conspirado contra o czar, e após ter visto a pena ser comutada para prisão e degredo quando já se encontrava perante o pelotão de fuzilamento, Dostoievski acabaria por ser deportado para a Sibéria, onde seria mantido em regime de trabalhos forçados entre 1849 e 1854. Como se tal não tivesse bastado, avaliações posteriores iriam, na terra que fora a sua, condená-lo a um novo exílio. Assim, até 1953 os manuais de história e de literatura em vigor na União Soviética repudiaram a sua obra como «expressão da ideologia reacionária burguesa individualista». O fundamento desta acusação e da condenação liminar dos seus romances não se encontrava tanto nos enredos ou na evocação neles contida de valores considerados caducos, próprios de um tempo que a revolução de Outubro pretendera vencer, mas na tipologia dos seus heróis, preocupados acima de tudo com a fidelidade aos princípios e aos objetivos morais, mesmo quando, momentaneamente, as circunstâncias («o social», como alguns diriam) os podiam, ou deveriam, fazer vacilar. (mais…)

                            Biografias, Democracia, Leituras, Olhares

                            Odessa, cidade-escrita

                            Todas as cidades, em particular aquelas que têm uma longa história e por isso uma forte capacidade magnética, integram uma tensão entre a vida vivida e as representações que delas os livros vão guardando. Baudelaire, Kafka e Pessoa construíram «cidades literárias» que não se confundem com as descrições prosaicas dos que habitaram as ruas e casas de Paris, Praga ou Lisboa. Odessa, a cidade-porto ucraniana do Mar Negro, é todavia um caso singular, dado o seu percurso, composto de reminiscências nostálgicas e futuros plausíveis, ter sido em larga medida ficcionado através da escrita. Tanya Richardson, que a tem visitado inúmeras vezes, lembra, em Kaleidoscopic Odessa (2008), o seu caráter intenso e singular advindo de uma cultura complexa, de uma história sinuosa, de um cosmopolitismo que alimentou um forte sentimento de pertença e até de missão. (mais…)

                              Cidades, Leituras, Memória, Olhares

                              O leste selvagem de Hitler

                              Mais de três décadas após o suicídio de Adolf Hitler no seu bunker berlinense, uma perspetiva bastante redutora da fulgurante ascensão do nacional-socialismo alemão era ainda dominante entre os historiadores. De facto, o nazismo era visto como resultado exclusivo de uma combinação letal de maldade alucinada, protagonizada por uns quantos dirigentes e ativistas, com as circunstâncias de uma época perturbada e propensa a acreditar nas propriedades redentoras da experiência totalitária. Somente para o final do século se começou a compreender e a dar como adquirida a intervenção de outros aspetos até então relevados, como o aplauso ou o silêncio cúmplice de um grande número de alemães, ou a ingénua cegueira de muitos dos responsáveis políticos europeus da altura. Em O Império de Hitler, o britânico Mark Mazower expõe uma outra forma de entender o que aconteceu, não totalmente ignorada por outros historiadores do nazismo mas raramente considerada com o merecido destaque. (mais…)

                                História, Leituras

                                Impropriamente vida

                                A 19 de outubro completou-se um ano sobre a morte de Manuel António Pina. O poeta, escritor de prosas várias, o cronista obstinado, o homem dos jornais, dos seus amigos e da vida dele. Na vaga quase unânime de elogios e recordações que inundou diários e semanários, rádios e televisões, blogues e redes sociais, duas facetas suas emergiram mais vincadamente. A primeira recordava «o Pina», assim lhe chamavam sempre os seus próximos, os seus amigos, como alguém que era rigorosamente aquilo que parecia; a segunda insistia na falta que nos faz por ter interpretado um papel público único, que mais ninguém parece estar em condições de preencher. (mais…)

                                  Democracia, Etc., Leituras, Memória, Olhares

                                  Um eterno Oliveira (de Figueira)

                                  O nosso Oliveira de Figueira, de Hergé, pela mão de Manuel António Pina. Extraído de uma crónica de Pina («Louvação de Oliveira de Figueira») publicada em Julho de 1988 no Jornal de Notícias. Da antologia Crónica, Saudade da Literatura. 1984-2012, acabada de editar pela Assírio & Alvim.

                                  Mesmo quando já partiu, e mesmo que já tenha partido há muitos séculos, Oliveira de Figueira deixou um rasto de simpatia e de História que protege o viajante que o segue como o escudo invisível do dentífrico. Uma vez, em Nagasaki, entrei numa loja de louça para comprar uma garrafa de saké e um serviço de louça em que o ministrar mais tarde, em casa, com a exigível propriedade, às visitas mais requintadas. O lojista não tinha que ser especialmente perspicaz para descobrir que eu não era japonês; só teve que ser um pouco curioso para me perguntar, num inglês ainda pior do que o meu, donde era eu from. Quando soube que eu era from Portugal, os seus olhos e as suas palavras ficaram subitamente em festa: falou-me, então, da chegada dos portugueses àquelas costas muitos séculos atrás, em estranhos barcos à vela, da forma como por lá se foram ficando e de como venderam às gentes da terra – o famoso bazar de Oliveira de Figueira! – coisas dispersas e ideias tão singulares como fabricar pão, espingardas, vitrais coloridos ou fazer chá. E, num arroubo de reconhecimento e cordialidade (nunca um português lhe tinha entrado pela loja, e até a família fora chamar lá dentro para me ver!) ofereceu-me tudo o que eu lhe queria comprar e embrulhou-mo num chamejante papel de seda amarelo.
                                  Mas o episódio não acaba aqui. Quando, no hotel, contei o sucedido aos outros portugueses que comigo viajavam, a expe­dita alma comerciante de Oliveira de Figueira acordou alvoroçadamente neles, vinda do fundo dos tempos. Todos queriam ir também à loja (eu é que lhes não disse onde era!) onde os portu­gueses eram very welcome para terem saké e jarrinhas de porcelana à borla…

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                                    As diferentes vidas do comunismo

                                    Nos últimos vinte anos o interesse pela história do comunismo foi ampliado por dois fatores decisivos. O primeiro foi, naturalmente, a avalancha de mudanças propiciada pelas circunstâncias que levaram à Queda do Muro, instigando o interesse pelos fatores de transformação ocorridos em Estados que ao longo de décadas haviam sido olhados como subordinados a regimes imutáveis. A este fator de interesse foram adicionadas as estimulantes possibilidades de um alargamento do conhecimento trazidas pela abertura pública de arquivos até então inacessíveis e particularmente aproveitadas pelos historiadores. O segundo fator foi imposto pela presente reafirmação da desigualdade e da instabilidade do capitalismo, que tem proporcionado um regresso à crítica sistémica proposta por Marx e a uma reavaliação da justeza do valor utópico e emancipatório do ideal comunista. Recentemente vertida para o português, A Bandeira Vermelha, do historiador britânico David Priestland, relaciona-se com ambos os fatores, embora o faça de uma forma que permite diferenciá-la de outras obras de síntese sobre a história do comunismo que foram editadas nos últimos tempos. (mais…)

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