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Contra o abuso do «voto útil»

Em tempo de campanha para as eleições legislativas, escutamos de novo apelos ao «voto útil», normalmente realizados pelos partidos que sabem poder vir a governar e entendem que precisam de uma maioria exclusiva para o poderem fazer. Na verdade, este apelo, assente na lógica do «mal menor», desfigura a democracia, tendendo a enfraquecer os restantes partidos, no nosso sistema eleitoral já muitíssimo prejudicados pela inexistência de um círculo nacional a juntar aos demais. Sem este, aliás, ocorre sempre uma perda muito significativa de votos de eleitores, deste modo não representados no parlamento.

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    Uma lição da história

    A capitulação formal da Alemanha no final da Segunda Guerra Mundial ocorreu a 8 de maio de 1945. Há precisamente oitenta anos. Foi conseguida nas complexas circunstâncias e com os elevadíssimos custos que se conhecem, mas nunca será excessivo lembrar que tal só foi possível devido à colaboração de todas as diferentes (e necessariamente contraditórias) forças antifascistas. Talvez seja uma boa lição para os dias de hoje.

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      Combate cultural contra o novo fascismo

      O fascismo original, a par das sua articulação com o mal mais absoluto, apoiava-se numa proposta filosófica, alimentava uma visão do mundo, idealizava um projeto de sociedade. Daí a importância que atribuía à ideologia e à cultura – fosse a das elites ou a que definia como «popular» – ancoradas num saber clássico e manipuladas em função desses objetivos. Muitos artistas e numerosos intelectuais ajudaram a alimentar esse processo. Daí também o papel que os fascismos conferiam à leitura, ao cinema, ao teatro, às artes, ao pensamento, à arquitetura, à especulação política como experiências coletivas. O contemporâneo abomina e combate tudo isto, pois funda-se apenas na ignorância, no ódio, no egoísmo e na ausência de perspetiva, projetadas pelo poder dos média, pelas redes sociais e pela condescendência das democracias. Por isso, contra ele, contra eles, o combate a travar precisa ser também cultural, não apenas político.

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        A liberdade não tem dono

        Mais em umas que em outras, mas em diferentes manifestações de rua do 25 de Abril foi visível a tentativa, por parte de uma força política, de se tentar apropriar dos desfiles, das suas palavras de ordem, das suas canções, até da sua organização, desdobrando-se por lugares vários e diferentes entidades nos desfiles. Também tem procurado apropriar-se da sua história e da sua memória, que muitas vezes se esforça até por reescrever. Acontece há décadas, mas quanto mais essa força se torna realmente mais frágil e perde expressão eleitoral – infelizmente, a meu ver, mas sobretudo por culpa própria -.mais a tendência se acentua. Porém, a liberdade, no seu sentido amplo e plural, não tem dono, é de todos e de todas, salvo dos fascistas, seus inimigos jurados. Por isso, nela cabem também os que continuam a insistir nesse triste papel. Que desaparecerá de cena um dia que há-de chegar.

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          Neste tempo que vivemos

          Ao longo de mais de duzentos anos, as consignas da Revolução Francesa no seu combate contra o Antigo Regime, traduzidas na afirmação gradual dos grandes princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade, materializaram, apesar das suas limitações e contradições, apesar também da sabotagem dos seus agressivos inimigos, um horizonte de felicidade terrena para o qual todas as propostas progressistas deveriam apontar. Como aconteceu com as ideias de verdade, de justiça, de compaixão, de honestidade, de confiança, de equilíbrio, de ética ou de paz. Todas de igual modo discutíveis e contraditórias, mas todas identicamente inscritas numa ideia de humanidade tendencialmente voltada para um futuro melhor. Vivemos agora o tempo da sua negação, e nele, salvo para os indiferentes e os tolos, as manhãs são sem sol e de pesadelo. É preciso, todavia, reconstruir a esperança para não regressarmos ao negro estado de barbárie e de opressão. E, a cada dia, para o conseguirmos, importa bater a realidade para reunir forças. 

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            Um 1º de abril que «já era»

            Bem sabemos que a mentira, o erro e a deturpação sempre existiram. Pelo menos desde a invenção da escrita, provavelmente até antes dela. Mas atualmente alguns orgãos de comunicação sedentos de atenção, associados à realidade selvagem das redes sociais, estão de tal forma cheios deles que a própria ideia de verdade foi banalizada. Tudo pode ser «verdade», como tudo pode ser «mentira», sejam elas com ou sem aspas. Neste contexto, as patranhas do 1º de abril deixaram de o ser, pois parte da piada consistia em encontrar uma mentira de certo modo única. Não uma «inverdade» entre milhares.

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              A ameaça do Bloco Central

              Por certo muitos amigos terão reparado já nesta tendência, enquanto outros, mais distraídos ou desinteressados, não se terão apercebido. Está em pleno curso, em alguns jornais e televisões, a divulgação de opiniões, emitidas por vozes situadas na ala mais conservadora do Partido Socialista, no sentido de, em nome de uma vaga e sacralizada noção de «estabilidade» – e, sejamos claros, também de um desejo de partilha de influência -, sugerirem a realização pós-legislativas de um acordo legislativo e de governo entre o PS e o PSD.

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                Redes sociais, imagens e ignorância

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                  Dúvida

                  Face ao ataque cerrado, feroz e sem precedentes a tudo o que sejam fatores de justiça social e igualdade, paz e entendimento na arena internacional, equilíbrio ambiental, defesa dos direitos humanos ou liberdade de expressão e até de circulação, a que assistimos todos os dias, algumas vezes multiplicado numa só jornada desde que a 20 de janeiro Donald Trump tomou posse como 47º presidente dos Estados Unidos da América, será que quem andava por aí a dizer que a governança republicana e as últimas democratas em pouco ou nada se distinguiam, referindo-se a Obama e a Biden apenas negativamente, ainda continua a dizer a mesma coisa? Conhecendo algumas dessas pessoas, e a sua enorme capacidade para contrariar a realidade diante das convicções, ou sequer para identificar o adversário mais perigoso, temo que sim. Se perante este banho constante de realidade catastrófica algumas reconhecerem o seu erro, já não será mau.

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                    Entretanto, na Gronelândia

                    A visita, programada para a próxima sexta-feira, de uma delegação governamental norte-americana à Gronelândia, não solicitada por Nuuk ou por Copenhaga, nem pedida por Washington, é chefiada pelo vice-presidente J.D. Vance e integra Mike Waltz, conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, e Chris Wright, secretário de Estado da Energia. Fazendo tábua rasa das mais elementares regras da diplomacia, pela qualidade dos membros e pela oportunidade que estes escolheram trata-se de um gesto ameaçador de óbvia provocação imperial. Algo que não tem precedentes nas relações internacionais pós-Segunda Guerra Mundial. Precisamos habituar-nos a estas exibições de apetite e a estes gestos de agressão sem máscara, preparando e levando a cabo as respostas adequadas, necessariamente fortes e que doam aos prevaricadores.

                    P.S. – Perante os veementes protestos das autoridades locais e da Dinamarca, foi agora anunciado que a delegação se limitará a visitar Pituffik, uma base espacial militar dos EUA. Seja como for, a intolerável pressão mantém-se.

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                      As legislativas de Maio e a Europa

                      Escreve a dado passo da sua crónica deste domingo, saída no diário Público, a jornalista Teresa de Sousa:

                      «(…) Em dois meses, a Europa viu desfazerem-se diante dos seus olhos as condições geopolíticas que lhe permitiram viver e prosperar em paz e alargar a democracia em direcção às fronteiras do continente, caminhando paulatinamente para uma união cada vez mais integrada. Está a viver hoje a maior crise existencial desde a sua fundação. O que é mais extraordinário é que conseguiu afastar o cenário provável da fragmentação e da autodestruição, antecipado em Washington e em Moscovo. Dois meses depois, perdeu todas as ilusões sobre a possibilidade de reparação da aliança transatlântica, colocou a sua própria defesa no topo da agenda política, abriu-se a novos aliados, manteve-se no apoio à Ucrânia em caso do abandono americano (“26 mais um não são uma divisão”, como disse António Costa). O pânico inicial transformou-se em maior claridade política. Descobriu que era mais forte do que se habituara a pensar. (…)»

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                        Ucrânia: afinal quais os partidos proibidos?

                        Um dos argumentos usados entre nós pelo PCP e setores próximos para se proclamarem contra o regime democrático vigente na Ucrânia – com os limites naturais de um país invadido e em guerra, tendo as eleições, neste contexto, de se encontrar suspensas – é que o parlamento de Kiev tem deputados «de um só partido». Uma mentira pegada, que só não vê quem não quer ver. Deu-me algum trabalho, mas fiz uma pequena investigação para escrever este apontamento. Atualmente estão ali representados os seguintes: Servir o Povo (centro, o partido de Zelensky), Plataforma de Oposição (centro-esquerda, o 2º mais representado), Solidariedade Europeia, Pátria (o mais à direita), Pelo Futuro, Voz e Confiança. Existe ainda uma ínfima minoria de deputados que pertenceu a partidos efetivamente proibidos, mas que mantiveram o seu lugar como independentes.

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                          Boicotar ou não produtos «made in USA»

                          É fácil cairmos na tentação de reagir ao que de hediondo, agressivo, contagiante e muito perigoso está a acontecer nos Estados Unidos e com a política interna e externa centrada nos corredores da Casa Branca e do Pentágono, procurando, na medida do que cada um de nós poderá isoladamente fazer, entrar pela via do boicote cego a produtos e instrumentos «made in USA». Na realidade, é tão grande a sua dimensão e influência que, se fossemos inteiramente coerentes – ou coerentes mesmo a apenas 25% –, até muitos alimentos, medicamentos, tecnologia essencial, produtos de natureza cultural, serviços de «streaming» e da Internet teríamos de abandonar e apagar das nossas vidas.

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                            Eleições, o mundo em redor e o que aí vem

                            Entramos agora num ambiente político pré-eleitoral, no qual a preparação das propostas programáticas e a escolha dos rostos que lhes irão dar corpo ocupará a generalidade dos partidos políticos. É um processo natural que as nossas práticas democráticas consagram. Todavia, desta vez existe uma conjuntura internacional muito peculiar, de uma natureza verdadeiramente dramática, que tornará a definição de atitudes em relação à autonomização da União Europeia, incluindo a sua política de defesa, a sua sobrevivência económica e o Estado social, e à atividade das potência imperiais, sobretudo dos EUA de Trump e da Rússia de Putin, um fator determinante e da maior importância. Vamos ver como as forças políticas em presença irão, a esse respeito, gerir as suas escolhas. Algumas delas, também os seus ruidosos silêncios.

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                              A quem me lê (ou quer escrever)

                              Em forma de compromisso – e talvez para me envergonhar por não o cumprir como gostaria –, já aqui falei da preparação de um conjunto de ensaios inéditos, em formato de livro, nos quais regressarei aos temas que nos últimos vinte e cinco anos mais me têm interessado e motivado. Já deveria estar pronta há mais de dois anos, embora, como acontece tantas vezes na vida de encruzilhadas que levo, o que é urgente tenha passado à frente do importante. Talvez para o final do ano possa estar pronta a ser impressa. Poderão insultar-me (moderadamente) se isso não acontecer.

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                                As eleições na Alemanha e a Europa

                                Os resultados das eleições gerais na Alemanha e do processo de composição de um governo estável que se seguirá apontam para três evidências, aplicáveis à generalidade da Europa. Primeiro, que a par das diferenças políticas por vezes substanciais, é imprescindível ampliar políticas de consenso justas e credíveis, capazes de mobilizar a maioria dos cidadão contra o confronto e o ódio propostos pela extrema-direita populista. Segundo, que esta aproximação passa pela construção de uma frente comum capaz de fazer frente à agressividade contra a Europa, o ambiente, a liberdade e a humanidade posta em prática por Donald Trump. Terceiro, que do lado leste do continente existe um inimigo jurado da democracia e da liberdade, Vladimir Putin, pronto a esmagar o continente e a partilhá-lo com o seu novo amigo americano. O que sair do processo de formação do novo governo alemão não pode deixar de considerar estes três aspetos e de ter impacto sobre eles.

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                                  O Muro de Berlim nunca caiu

                                  O título desta crónica é plagiado. Em novembro, quando do 35º aniversário do fim da barreira física e política que entre 1961 e 1989 separou rigidamente os dois lados de Berlim, foi com ele que Timothy Snyder intitulou uma reflexão que publicou no seu blogue «Thinking about…» sobre a poderosa vertente da nossa história recente que tem aquele episódio como vértice. Ali escreveu o historiador de Yale: «Sem dúvida estão a pensar: ‘ele quer dizer isto metaforicamente; quer dizer que permanece alguma barreira mental entre o Leste e o Oeste’ (…). Não, quero dizer que muito literalmente o Muro de Berlim não caiu. Não caiu hoje, ou há trinta e cinco anos. Nunca caiu. A ‘queda do Muro de Berlim’ é um artifício literário, não é um facto histórico.» 

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                                    Cartola «coimbrinha»

                                    A cartola foi um chapéu masculino de aba estreita e copa alta, usado durante décadas, na segunda metade do século XIX e inícios do seguinte, como um sinal de estatuto social e económico. Porém, cedo começou também a ser bastante caricaturada, seja pela propaganda anticapitalista, que nela via um símbolo da opressão, quer pelas formas de sátira social, que a chamavam de «chaminé» e nela viam, crescentemente, um sinal de estúpida sobranceria e uma marca de desigualdade tantas vezes de todo inadequada ao figurão, ou à figurinha, que a utilizava no parecer.

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