Sobre o caso que empurrou Torre de Dona Chama para as bocas do lado mais ocidental da Península nem tudo foi dito. Não se falou, por exemplo, do mau gosto dos blogues, geridos por pessoas jovens, citadinas, modernas, viajadas, de leituras, tolerantes e até «feministas», que recorreram sem pestanejar ao expediente fácil, de um voyeurismo camuflado, confrangedor e um bocado bimbo, traduzido na ilustração galhofeira dos seus posts sobre o tema com fotografias da professora Bruna em pose erótica retro-kitsch à anos 70. Era mesmo preciso?
Tiananmen em versão não-oficial
Na China de hoje, Zhao Ziyang é uma pessoa que não existe. Foi primeiro-ministro desde 1980 até 1987, quando o secretário-geral do Partido Comunista era Hu Yaobang, tendo-o substituído no cargo entre 1987 e 1989. Hu e Zhao partilharam, sob a tutela de Deng Xiaoping, a direcção do processo de liberalização económica, de reforma do Estado e de abertura ao exterior vivida nos anos de transição da era pós-Mao. Mas ambos foram abandonados pelo seu protector quando começaram a considerar a possibilidade de separar o Partido do Estado e de permitir uma maior liberdade de opinião. No caso de Zhao, a queda foi precipitada pela forma como, em Abril e Maio de 1989, lidou com os protestos estudantis da Praça Tiananmen, que a ala mais conservadora, chefiada por Li Peng, entendeu dever ser tratada com punho de ferro. Zhao recusou assumir essa responsabilidade, tendo então sido afastado do poder e colocado sob prisão domiciliária até à morte, ocorrida em 2005. Prisioneiro de Estado apresenta parte substancial de um registo, gravado sob cativeiro em 30 cassetes de baixa qualidade preservadas por terem sido escondidas entre os brinquedos dos netos, no qual aborda a sua versão dos acontecimentos e faz um balanço dos anos na gestão do Estado.
A sequência escolhida pelos editores – um deles, Bao Pu, é filho do secretário pessoal de Zhao – não é a das gravações, procurando antes atribuir uma ordem temática a declarações que muitas vezes misturavam assuntos. A parte mais intensa é a primeira, na qual se relatam os acontecimentos de Tiananmen e o combate então travado dentro dos órgãos directivos do Partido. Trata-se de um relato diferente do oficial, que penaliza a intervenção do sector conservador mas nem por isso é completo, uma vez que não considera as reivindicações daqueles que realmente fizeram no movimento de rua. Segue-se uma descrição, detalhada, por vezes um pouco enfadonha mas historicamente interessante por constituir também uma versão alternativa da consagrada oficialmente, da luta de Zhao Ziyang para aplicar as reformas políticas e económicas que propunha. Ao longo de todas estas páginas, porém, surge clara a forma como a sua posição jamais beliscou os fundamentos do regime, apenas tendo sido tornada inconveniente devido à inflexibilidade da ala que se opunha ao enfraquecimento da centralidade do Partido e do controlo estatal do sistema produtivo, apenas deixando uma maior margem de manobra para as modificações do mercado.
«Um olhar íntimo sobre um dos regimes mais compactos do mundo», escreve-se na badana. O principal interesse deste livro é realmente permitir-nos observar, a partir de dentro, a permanente luta de facções, de interesses e de vaidades que se esconde por detrás do aparente monolitismo do Partido e do regime. Nele não está, aliás, incluído o desenvolvimento protagonizado por Zhao nos últimos anos de vida, quando chegou à conclusão de que, para progredir, a China viveria melhor sob um sistema parlamentar capaz de impedir a concentração excessiva do poder e o consequente imobilismo. Afinal, quem fala aqui é ainda o comunista tranquilo e sorridente, o «Gorbatchev chinês» que a História derrotou.
Publicado na revista LER de Abril
Prisioneiro de Estado. O Diário Secreto de Zhao Ziyang. Ed. por Bao Pu, Renee Chiang e Adi Ignatius. Trad. de Ana Glória Lucas. Casa das Letras, 364 págs.
Vermelho Rouge
Bem sei que serei um pouco suspeito para falar de O Essencial sobre a Esquerda Radical, de Miguel Cardina, pois sou amigo e companheiro de blogue do autor, orientador da sua tese de doutoramento sobre o maoismo em Portugal e coordenador da colecção na qual o livro foi publicado. Além disso, fiz parte do enredo deste. Mas uma vez confessada a parcialidade fico à vontade para recomendar este pequeno volume como uma eficaz síntese sobre a intervenção cívica, durante os derradeiros anos do Estado Novo, de um sector da oposição que até agora tem sido referido num registo meramente memorialista e autocomplacente, ou ao nível da boutade sobre o «tenebroso» passado político de Fulano, Sicrano ou Beltrano.
De forma sumária, pode dizer-se que da sua leitura resulta claro: 1) que nenhum dos numerosos grupos inventariados procurava transformar o regime, melhorá-lo, «democratizá-lo», e todos associavam a sua queda à queda do capitalismo e a uma Revolução redentora cujos contornos eram incapazes de precisar; 2) que todos eles condicionavam a ambicionada política de alianças à «direcção da classe operária» e à intervenção da violência revolucionária como «parteira da História»; 3) que a par da luta contra o regime e contra o sistema capitalista, o combate contra o PCP, acusado de «reformista», «revisionista» ou «burocrático», foi uma constante e um factor de mobilização; 4) que neste ambiente pairava omnipresente a marca de um internacionalismo veemente e de um antinacionalismo visceral, acusando-se também o PCP de transigir nesses domínios; 5) que surgia como indispensável o alargamento do político ao domínio do privado, procurando combater-se a alienação económica, psicológica, sexual, cultural e ideológica «imposta pela burguesia»; 6) que era perceptível neste sector uma sobrevalorização do papel transformador da juventude e do carácter avançado do movimento estudantil, de onde provinha a maior parte dos seus membros; 7) que, apesar do escasso número de militantes, o seu extremo activismo, a importância prioritária que davam à luta anticolonial e a defesa de que só a ruptura era possível, conferiram a estes grupos, no seu todo, um apoio razoável entre a juventude e um papel muito importante, em particular durante o período marcelista, na preparação das condições subjectivas para a queda do regime. Através deste Esquerda Radical fica ainda a perceber-se um pouco melhor o porquê de, com todas as suas forças, fraquezas e numerosas contradições, eles terem desempenhado um papel saliente no combate político e social travado durante o «biénio revolucionário». [Miguel Cardina, O Essencial sobre a Esquerda Radical. Angelus Novus, 120 págs.]
Publicado também no Vias de Facto
O PCP e a deserção
Por causa da escusada tirada de Manuel Alegre sobre a sua honradez militar, voltou a discutir-se o papel da deserção e dos desertores na resistência ao regime salazar-marcelista e à Guerra Colonial. A posição da chamada esquerda radical é conhecida e, com ténues variantes, traduziu-se na recusa completa ao embarque para África. Já a do Partido Comunista Português foi menos linear. Politicamente coerente com a linha unitária do partido, em última instância ela remetia – e há notícias de que tal realmente aconteceu – para situações pessoais muito complexas. Compreender-se-á o que quero dizer pela leitura deste post. Fica aqui um fragmento da minha intervenção sobre o tema («As esquerdas e a oposição à Guerra Colonial») no II Congresso sobre a Guerra Colonial que decorreu em 2001 no Seixal, com organização da Universidade Aberta. Tem pois cerca de dez anos e já foi completado por investigação posterior, mas no essencial mantém-se actual. Retirei as notas e cortei partes que aqui são menos relevantes. O post é longo e num registo algo académico inabitual neste meio, mas vale a pena evocar estes episódios para diluir mal-entendidos.
O meu Facebook tem a mania
Admito que a minha vida no Facebook está a ser um pouco difícil de gerir. Primeiro inscrevi-me por motivos profissionais, trocando raras mensagens com três ou quatro pessoas. Depois chegaram os amigos próximos e distantes. E os familiares directos ou afastados. Lá fomos convivendo todos naquele barco azul, num clima simples e descontraído. De seguida as pessoas a quem (presumo) de vez em quando interessa o que eu possa dizer. E aquelas pelas quais eu me interesso. De quem gosto ou de quem penso poder vir a gostar. Até aqui, tudo bem também: fui mandando uns bitaites num ambiente informal, trocando umas ideias, partilhando prazeres moderados e pequenos ódios, vendo e dando a ver. Sem problemas, num registo por vezes intimista, algumas vezes delirante. Mas nas últimas semanas estão a chegar às dezenas pessoas que não conheço, que não são amigas dos amigos, de quem nada parece aproximar-me – certas vezes, olhando o seu perfil, antes pelo contrário – pelo que a algumas destas, lamento, declino o pedido de «amizade». Quero continuar a passar por ali um pedaço giro do dia e da noite. Ou a queixar-me sem pensar se o devo ou não fazer. Não a aborrecer-me ou a ter de fazer de conta. Se fosse político profissional, pop star, vendedor da televisão por cabo ou o arcebispo de Cantuária, lá teria mesmo de falar com toda a gente, beijar criancinhas com xixi, convencer as sombras do meu perfil fidedigno, evitar «expor-me» em demasia, fazer «amigos» e conhecer pessoas aos magotes. Como não sou, em casos pontuais terei de reservar o direito de admissão. Claro que assim jamais chegarei a Presidente da Junta, mas a liberdade paga-se.
Meu querido fumo azul
E pronto, morreu um pouco mais da França que amei. No princípio da semana, repeti o hábito pendular de há uns vinte anos: saí de manhã, bem cedo, e fui à tabacaria comprar o meu pacote de dez maços de Gitanes. Fumo sem vício e pouco, mas por isso mesmo gosto de fumar bem, tabaco que se sente, forte e com personalidade, que arde devagar e se cheira à distância. Abalancei-me por algum tempo ao Celtiques – julgo que por causa de uma canção de Léo Ferré –, mas como amargava e me amarelava os dedos, retornei às caixinhas azuis com a cigana dançarina em silhueta.
Na loja, a empregada perturbou-me quando disse que entretanto tinham deixado de receber a marca. Como percebeu logo que eu tinha ficado aflito, sugeriu que passasse a comprar Ducados, ou talvez Gauloises, pois fora isso «que os outros clientes fizeram». Ainda pensei que se tratasse de um equívoco, de incompetência ou de maldade, motivados por razões obscuras que não tentei averiguar. Não era o caso, infelizmente: fui a outra tabacaria, e depois a outra, e a outra ainda, e depois a um armazém de distribuição, mas todos disseram o mesmo: «sabe, lamentamos mas essa marca deixou de ser distribuída», procurando logo esclarecer-me sobre aquilo «que os outros clientes fizeram».
A ver a vida a andar para trás, fui a correr ao Google. E sim, lá encontrei a notícia, pelas barbas cheias de nicotina de todos os grandes fumadores:
«Production in France recently halted, with one factory remaining operational in the Netherlands. This is mainly due to the rise on tobacco levies imposed by the French government in the wake of health advice, which has forced the price of French cigarettes up to the level of those from the USA, with the more aggressively promoted brands such as Marlboro now taking the majority market share.»
Quer isto dizer que não só uma das imagens de marca (literalmente) da França contemporânea vai desaparecer – logo ela, que até serviu de capa ao belo elogio do cigarro como experiência estética que é Cigarettes are Sublime, o livro de Richard Klein onde se explica que o maço de Gitanes funciona com «um emblema de beleza» e de «poderoso charme» –, como tal se deve à irracionalidade do fundamentalismo antitabagista europeu e à ginástica dos bosses da indústria americana do tabaco, que assim vêem chegar uma nova clientela.
Morrem assim de novo, agora provavelmente de vez, Serge Gainsbourg e Jacques Brel (cada um consumia sem pestanejar cinco caixinhas azuis de tabaco enrolado por dia), Jacques Prévert, Jean Gabin, Albert Camus, Luis Buñuel, John Lennon e Jim Morrison. E a bem dizer também eu morri um pouco. Pois, como o Gainsbourg, «sans elles [les gitanes] je suis malheureux».
Dança das Cadeiras
É bastante expressivo o encolher de ombros da opinião pública – perceptível nos blogues, nos jornais ou nas declarações públicas de alguns políticos, para não falar das conversas de café, mais ocupadas com a visita papal ou as escolhas de Carlos Queirós – a propósito da ocupação do nº 10 de Downing Street pela família de David Cameron e da chegada ao poder da coligação entre tories e liberais. Mesmo entre a esquerda que supostamente lhe estaria próxima, não se vislumbra o mais pequeno esgar de contrariedade pela retirada de cena de Brown e do Labour. Um bom indicador de como, neste momento, poucos acreditam em políticas determinadas por projectos claros e distintos, com carácter, nos quais se vota por convicção e mediante expectativas. Tudo se assemelha, cada vez mais, à estrita gestão dos espaços numa infinita dança das cadeiras. Isto é mau, muito mau.
O desertor
A divulgação, por parte do cidadão Manuel Alegre de Melo Duarte, dos dados constantes do seu registo militar, tem contornos deploráveis que não podem ser ocultos do exame público. Essa publicitação, feita no site www.manualalegre.com, destina-se a demonstrar que o candidato presidencial «não tem nada a esconder, ao contrário dos cobardes que espalham calúnias a coberto do anonimato e contra os quais não deixará de agir judicialmente» e a provar que «cumpriu o serviço militar, nomeadamente em África e em situações de combate». Mas contém implícito um julgamento da maior gravidade em termos históricos e democráticos: a «acusação» que corre é a de que Alegre terá sido desertor do exército português, variando os boatos apenas ao colocarem o momento da deserção antes da mobilização para África ou já no teatro de guerra angolano. Trata-se de uma questão tornada agora sensível mas que não deveria sê-lo, e é estranho ser um candidato da esquerda, e um resistente ao regime derrotado no 25 de Abril de 1974, a abordá-la desta forma.
O número de desertores e de refractários foi sempre muito grande durante a Guerra Colonial, crescendo de forma constante ao longo dos treze anos do conflito, como o revelam os dados divulgados em 1988 pelo próprio Estado-Maior Exército: em 1961 a percentagem de faltosos foi de 11,6%, em 62 subira já para 12,8%, em 1963 atingia os 15,6%, em 1964 subia para 16,5%, entre 1965 e 1968 rondaria os 19%, e entre 70 e 72 andou sempre muito perto dos 21%. Naturalmente, a motivação para «fugir à guerra» ou para abandoná-la a determinado momento, foi sempre diversa. Mas tenha sido ela concretizada por motivos abertamente políticos, por condicionantes de natureza económica ou por actos do domínio da objecção de consciência, tratou-se sempre de uma escolha determinada por uma guerra injusta, como tal legitimadora das mais diversas formas de resistência. De entre elas, a deserção.
Para além disso, a chamada «deserção política», aquela da qual Alegre tem sido acusado e da qual se serve periodicamente a direita para tecer insinuações de «cobardia», representou para muitos milhares de jovens um acto de bravura, uma vez que os condenou ao duro exílio, à prisão, ou, por vezes, à clandestinidade. Em qualquer dos casos a uma existência muito difícil, que sabiam ser inevitável em função do seu gesto arriscado e definitivo. Desertar era resistir, tal como, de forma diferenciada mas constante, defendia publicamente a larga maioria da oposição ao Estado Novo, da qual Alegre fez parte e foi importante símbolo. Declarações desta natureza, no mínimo ambíguas, deixam no ar uma desconsideração da coragem de desertar da Guerra Colonial que pode trazer uns quantos votos do eleitorado «viril» mas é pouco digna de um resistente. São inaceitáveis e ofensivas para muitos portugueses vivos ou mortos. E nada têm a ver com o respeito devido à larga maioria daqueles que fizeram a difícil guerra por escolha ou incapacidade para a recusarem.
Uma declaração de interesses necessária: fui desertor do exército colonial por razões políticas – forçado a algum tempo de clandestinidade, mas reintegrado nas fileiras em Dezembro de 1974 – e, se não se multiplicarem circunstâncias que me levem a mudar de azimute, conto votar em Manuel Alegre na próxima eleição presidencial.
Adenda: um post lateral
Publicado também no Vias de Facto
Papa Tours
Considero a visita do papa Ratzinger como a do Dalai Lama: ambos têm todo o direito a fazer turismo religioso, a encontrarem-se com os seus à sombra de uma azinheira, a pregarem a fé que move as suas vidas e lhes faculta o ganha-pão. O servilismo do Estado é que me dá cabo da paciência, sobretudo quando vejo os responsáveis por uma republica laica, muitos deles declaradamente não-católicos, a persignarem-se e a fazerem a genuflexão com a maior desfaçatez. Fica-lhes bem mostrarem-se corteses para com as visitas, beberem com elas um cálice de Porto, oferecerem-lhes até um CD da Kátia Guerreiro ou do padre Borga. Já lhes fica muito mal mostrarem-se tão servis, exibindo sem pudor essa ausência florentina de convicções que é própria da realpolitik à maneira do século XXI.
A força da memória
De acordo com um inquérito divulgado pelo diário online Público.es, três em cada cinco cidadãos espanhóis querem que os crimes do franquismo sejam investigados e não fiquem impunes. Uma boa resposta à perseguição judicial revanchista movida contra o juiz Baltasar Garzón. A notícia pode ser lida aqui.
Esta noite sonhei com Fidel
Esta noite sonhei com Fidel. Com um Fidel jovem que me interpelava num passeio e me perguntava simpaticamente se queria tomar com ele o café da manhã. Durante o sonho, a minha reacção foi de surpresa, mas quando acordei achei natural a aparição nocturna, uma vez que a figura do terceiro filho do Senhor Ángel Castro y Argiz, o imigrante galego, permanece, como um espinho, cravada nesse ethos da minha consciência de esquerda que é absolutamente incapaz de separar a ideia de justiça social de uma liberdade sem adjectivos. Por causa desta extravagância pessoal e da sombra deixada pelo sonho nocturno, decidi-me a ler um artigo da revista Books que tinha na pilha das leituras programadas para aquele futuro que jamais se sabe quando chegará. O autor de «La splendide illusion cubaine» é José Manuel Prieto, romancista, ensaísta e professor nascido em La Habana, que publicou em alemão um livro cujo título traduzido enche logo a boca de água: A Revolução Cubana Explicada aos Motoristas de Táxi (atenção, caros editores, a edição original é da Suhrkamp). Prieto é um emigrado – viveu muitos anos no México e ensina actualmente em Nova Iorque – mas não é um gusano cego pela raiva anticastrista. Procura compreender a revolução cubana e o estado a que esta chegou, sem por isso prever um futuro para o regime que não seja o da sua preservação – para além do inevitável desaparecimento físico dos Castros – por ainda uns quantos anos.
A sua convicção acerca da possibilidade de manutenção da Cuba «socialista» (as aspas são minhas) depende de dois factores que condicionam uma certa aceitação interna do governo e o ainda razoável prestígio internacional do regime. Um é a conservação da relação conflituosa com a América como a principal razão de ser da independência cubana ao longo de todos estes anos: sem a emanação de uma ideia de enfrentamento corajoso das iniquidades, reais ou fictícias, made in USA, há já muito tempo que Cuba se teria afundado na banalidade da pobreza generalizada (que no contexto actual é apresentada como honrada) e do bloqueio das liberdades (justificado todos os dias por uma necessidade de autodefesa). O outro factor, associado naturalmente ao primeiro, prende-se com a manutenção, devidamente apoiada numa cuidada rede de propaganda mediática de dimensões internacionais, da projecção heróica da saga cubana como um movimento de características insurrectas sem precedentes: «uma ode rebelde contra os adultos» nos anos sessenta, hoje «um país cercado» cuja dignidade não tem preço e legitima as medidas mais extremas. É isto que faz com que um abaixo-assinado há algum tempo promovido por dissidentes e que reuniu dez mil assinaturas tenha, num país com onze milhões de habitantes, sido considerado pelos círculos de oposição como uma «grande vitória». Segundo Prieto, a maioria da população permanece muito sensível à propaganda antiamericana e à retórica da valentia diante do cerco, o que se traduz na aceitação tácita de uma tirania que muitos cubanos ainda olham como uma infeliz necessidade. Mais próxima do pesadelo do que do sonho, mas por enquanto incontornável.
Nazismo, pilhagem e bem-estar
Continua a imperar a interpretação da ascensão e da apoteose do nacional-socialismo como resultado da iniciativa tenaz e carismática de Adolf Hitler, combinada com a actividade de alguns companheiros de missão que o secundaram na direcção infalível de uma política externa belicista e de uma actuação interna ultra-autoritária. Outras explicações associam também a ascensão do nazismo e a afirmação do seu lado mais odioso a uma política de anti-semitismo sistemático que conduziu à Solução Final e à consumação do Holocausto. Pode por isso dizer-se que a historiografia do nazismo e da Segunda Guerra Mundial tendeu a produzir interpretações que de alguma forma foram reduzindo a responsabilidade colectiva da maioria do povo alemão, muitas das vezes apresentado como vítima de um logro arquitectado por uma minoria de delirantes inflexíveis. Aliás, terá sido este princípio, rapidamente fixado após o final da guerra, que fez com que um grande número de responsáveis do aparelho nazi ou seus colaboradores pudesse ter ficado isento de qualquer processo formal de culpabilização, vivendo o resto dos seus dias como respeitáveis e intocáveis cidadãos do regime democrático.
Foi o facto desta leitura dominante ter sido questionada pelo historiador e jornalista alemão Götz Aly que de imediato transformou O Estado Popular de Hitler, quando da sua saída na Alemanha, em objecto de comoção pública e de intensa polémica. Desde logo, porque Aly se esforça por provar que foi uma articulação entre os interesses materiais da maioria dos alemães e as políticas agressivas do regime que permitiu a este erguer-se e afirmar-se. Mas também porque, de um modo algo paradoxal, esta atitude pôde desenvolver-se mais em função da aplicação da vertente «socialista» do Nacional-Socialismo do que do seu programa «nacionalista», aparentemente mais visível. Apoiado em fontes procedentes de organismos estatais de gestão económica e militar, este estudo detalha o modo como o governo nazi instaurou uma relação de cumplicidade entre a promoção dos interesses materiais da maioria dos alemães e a aceitação, por parte destes, da política antijudaica (os bens nacionalizados ou pilhados dos judeus financiaram em larga medida o esforço militar germânico), da agressão contra outros países (transformados em áreas de colheita de bens roubados ou produzidos a baixo custo) e do ataque sistemático contra as populações conquistadas (em larga medida transformadas em mão-de-obra barata destinada a alimentar as necessidades do alemão comum). Neste sentido, Aly cria uma nova associação entre nazismo e práticas sistemáticas de pilhagem. E mostra também de que modo o povo alemão retribuiu, com o seu entusiasmo pelo projecto hitleriano e um elevado empenho no esforço de guerra, o estado de prosperidade que lhe foi oferecido de mão-beijada.
Publicado na revista LER de Abril
Götz Aly, O Estado Popular de Hitler. Roubo, Guerra Racial e Nacional-Socialismo. Trad. de Ana Schneeberger. Texto, 464 págs.
Petição Cidadãos pela Laicidade
«Porque nos contamos entre esses cidadãos que entendem que a laicidade da política é condição fundamental das liberdades e direitos democráticos.» Aqui mesmo.
Do estado a que isto chegou
Fui dos que trautearam, cantarolaram, tamborilaram, os álbuns do GAC (Grupo de Acção Cultural). Em 1975-1976, na época da primitiva edição dos dois primeiros álbuns, com José Mário Branco a adestrar os arranjos – e já como GAC-Vozes na Luta –, a sua música manteve-se como uma excepção de elevada qualidade no que respeitava às harmonias, à escolha das vozes e dos músicos, ao trabalho de estúdio, sobretudo se comparada com uma «canção de intervenção» que quase sempre privilegiava a «mensagem» e a redução jdanovista do gosto do público destinatário ao menor denominador comum. Foi popular, sim, mas sem se tornar populista ou armar-se em popularucha. Os dois últimos álbuns perderam alguma da frescura inicial, mas guardaram ainda boa parte do cuidado com o feitio e com a intenção militante. A reedição em CD da discografia do grupo, que acaba de acontecer, vem comprovar essa originalidade e essa pujança. Significativo também é que as letras – laboriosamente panfletárias e inequivocamente anticapitalistas – pouco envelheceram. O que é um bom indicador do estado a que isto chegou. E de que a cantiga ainda pode ser uma arma.
Um olhar participativo
Ultrapassado o tempo no qual a cultura era observada como um sistema completo e coerente de elucidação do mundo, expirada a época da separação rigorosa entre cultura popular e cultura erudita, entre uma «civilização» das elites e a «barbárie» popular, eis que mergulhámos todos numa terceira fase histórica. A cultura transformou-se agora em mundo, na cultura «do tecnocapitalismo planetário, das indústrias culturais, do consumismo total, dos media e das redes digitais». Em A Cultura-Mundo. Resposta a uma Sociedade Desorientada, Lipovetsky e Serroy observam o fim da busca do sentido último das coisas, das classificações hierarquizadas, substituídas agora pelas redes, pelos fluxos, pelo mercado sem limite ou centro de referência. Todavia, «os novos tempos hipermodernos» não são aqui enfrentados com pessimismo, sendo antes observados como um território de acção e descoberta, num mundo cuja circunferência está em toda a parte e cujo centro não se encontra em lado algum. A infindável abundância de escolhas, de possibilidades de consumo cultural, permitirá assim, a cada sujeito, a produção de um universo de opções, fazendo com que o comércio de influências convenientemente programadas possa, em determinadas circunstâncias, funcionar como um instrumento libertador. A cultura-mundo desenvolve-se agora em campo aberto, podendo «mobilizar a inteligência e a imaginação dos seres humanos» e não congregar apenas o pessimismo e o ódio dos que a observam a partir de pontos de vista que já prescreveram. É preciso participar nela desenvolvendo as suas virtualidades democráticas e emancipatórias, e não ensaiar a tarefa de a destruir na tentativa vã de ficcionar uma regressão no tempo. [Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, A Cultura-Mundo. Resposta a uma Sociedade Desorientada. Trad. de Victor Silva. Edições 70, 248 págs.]
A tradição ainda é o que era
1º de Maio | May Day
Públicas virtudes
Em Figures des Femmes Criminelles, uma obra colectiva sobre mulheres criminosas publicada há meses pelas veneráveis Publications de la Sorbonne, aparece um artigo bastante curioso sobre crimes praticados por monjas entre os séculos XIII e XV, da autoria da historiadora Élisabeth Lusset. O tema em si não terá nada de assombroso: afinal, por que motivo não poderiam as numerosas comunidades monásticas femininas ser habitadas por uma certa quantidade de ladras, homicidas, incendiárias, falsárias, agressoras, difamadoras, receptadoras, violadoras das regras de castidade ou simples rufias? Aquilo que aqui se pode afigurar particularmente interessante não é pois a longa relação de práticas susceptíveis de culpa e a existência de uma punição aplicável às santas criaturas que a dado momento resolveram passar das marcas, mas sim a caracterização do próprio castigo: por regra, este era muito moderado, traduzido numa simples admoestação da criminosa ou na sua transferência para um convento razoavelmente distante.
Esta regra apenas era violada quando o crime tivesse sido tornado público. De facto, a preocupação maior das autoridades religiosas que superintendiam os processos manteve-se sempre ligada à necessidade absoluta de que nada do que ocorrera pudesse transpirar para fora das paredes do mosteiro. Se o secretismo do acto fosse mantido, a pena era quase sempre ligeira. Em 1492, uma tal Petrina de Bosser, monja de uma comunidade nos arredores de Milão, confessou ter dado à luz uma criança, que depois de baptizar matou e enterrou. Descoberto o crime e solicitado ao papa um perdão, este chegou acompanhado de uma esclarecedora precisão: como «o delito permaneceu secreto e a fim de evitar o escândalo», estipulava-se apenas que a referida Petrina fosse confiada «a um padre de reconhecida probidade», cuja função seria a de a reintroduzir no «bom caminho» pela via da intercessão espiritual. Os pecados ocultos, conhecidos apenas da criminosa e dos seus confessores, eram pois sistematicamente perdoados. Praticados por mulieres sanctae, que não podiam deixar de o ser, eles deveriam, acima de tudo, ser silenciados e esquecidos, de modo a não afectarem a respeitabilidade da própria Igreja.
O futuro é redondo
Uma agência de rating como a Standard & Poor’s, «com escritórios em 23 países e uma história de quase 150 anos», bem pode andar a tentar tramar-nos, procurando mostrar ao mundo inteiro que estamos no ponto para seguir o desgraçado exemplo grego. A verdade, porém, é que estamos em 3º lugar no ranking da FIFA – logo a seguir ao Brasil e à Espanha, bem acima da vil Alemanha, a muitas milhas dos checos – e por isso as coisas não estarão assim tão mal quanto essa gente maldosa pretende fazer crer. Apertaremos o cinto até ao último furo, mas com um sorriso nos lábios e a bandeira nacional pendurada na varanda.