Morenas de Angola

Riquita 1971
clique na imagem para seguir a história

Outros (e outras) poderão ter vivido semelhante experiência noutros lugares, quem sabe se até à porta de casa, mas nunca me cruzei com tantas mulheres tão perturbadoramente belas como naquele ano em Angola. Bonitas sem limite, de todas as cores, de todos os aromas, com corpos esplêndidos e um porte único. Capazes de «faire tourner la tête» e de deixar um sujeito parado na contramão atrapalhando o trânsito. Nos anos derradeiros do regime velho, aliás, certas beldades afro-portuguesas eram como um emblema usado para proclamar a dimensão planetária da pátria, disputando a glória e os favores públicos aos jogadores de futebol, aos fadistas, às estrelas do teatro revisteiro, aos ídolos do nacional-cançonetismo destacados na rádio, tv e disco (não havia ainda cassete pirata). Jornais e magazines de atualidades, os editados nas colónias mas também os da metrópole, transmutavam a mulher africana, e mais anda aquela cuja compleição resultava de uma mistura genética incutida pela mestiçagem, fosse ela negra assimilada, mulata, cafuza ou branca com sabor tropical, em ícone de um Portugal tórrido e multirracial, vestindo maillot, que começava na foz do Minho e seguia por aí afora, manejando as ancas num desfile que só deveria terminar nas praias de Timor.

Os concursos de misses eram, na época, momentos centrais desse esforço de transformação de forças da natureza em emanações morfológicas da identidade pátria que o regime inventara. Algumas fizeram até carreira na metrópole, onde, apesar do clima menos propício ao desabrochar dos corpos, as possibilidades profissionais eram maiores e mais aliciantes. Ainda assim, muitos viam já nesses concursos, para além de instantes de uma cultura predominantemente masculina que reconduzia a mulher ao papel de suave e subalterno adorno, a intervenção censurável da propaganda do regime na construção de um ideal de perfeição que tapava a realidade mais escura, nada bonita, nada dengosa, da situação da mulher sob o Estado Novo e o jugo do colonialismo. Custa por isso ver como, logo após as independências, os certames destinados a designar as misses isto-ou-aquilo se mantiveram como ocasiões de entretenimento das massas e de encenação da grandeza putativa – ditosa pátria que tais filhas gera! – de novos regimes mais ou menos despóticos. A recente aparição de Leila Lopes, a angolana consagrada Miss Universo 2011 em São Paulo, e sobretudo o estardalhaço feito em seu redor pelos propagandistas de Luanda, representam mais um momento dessa transformação da beleza feminina numa encenação buffa, e neocolonial, de um orgulho degradado.

    Atualidade, Memória, Olhares

    Edith 63

    Edith

    De repente, ao acaso de um post do Facebook, sobrevém uma das minhas reminiscências mais antigas e ao mesmo tempo mais cintilantes e imperecíveis. Associada a um sentimento de pena verdadeira pela perda de alguém que jamais conhecera. Na tarde do dia 10 de outubro de 1963, seguia por uma estrada secundária do norte geográfico no banco de trás do Carocha familiar quando o locutor de serviço da Emissora Nacional interrompeu a emissão para anunciar a morte de Edith Piaf. Passou de seguida «Non, je ne regrette rien» e eu, sem idade sequer para ter um passado e poder recusar o quer que seja, defrontei mudo a emoção instantânea, profunda e completa que consigo agora rememorar.

      Apontamentos, Memória, Olhares

      Próxima estação: Portugal?

      Greece

      Um fragmento da crónica de Clara Ferreira Alves – «Agora, estamos a enlouquecer» – saída hoje no suplemento Única do semanário Expresso. Não sei se o mail do amigo grego que cita é verdadeiro ou um mero artifício de cronista. Não importa, pois num caso ou no outro ele é demasiado real, confrontando-nos com um clima geral de desesperança, depressão e raiva que não augura nada de bom. Principalmente se as tentativas para encontrar uma saída continuarem a ser conjunturais, sem tino e sem norte. Desculpem se vos estrago o sábado.

      «O que está a matar a Grécia é a incerteza, com a incerteza ninguém põe aqui um tostão. Querem que privatizemos mas quando privatizamos quem é que vai investir num país que é considerado, diariamente, perdido? As notícias sobre a Grécia matam a Grécia, os alemães ajudaram a matar a Grécia. Como querem que um devedor pague a dívida depois de estar morto? Quando nos emprestaram dinheiro ninguém quis saber se o íamos pagar. Ninguém. Toda a gente fingiu que não viu o que se estava a passar, a corrupção, os partidos a contratar as clientelas, as contas aldrabadas. Vir dizer que foram apanhados de surpresa, os devedores, é uma colossal mentira. Os gregos sabiam, os bancos sabiam, toda a gente sabia, e toda a gente ganhava dinheiro à custa disso. Esperar que um povo se reforme de um dia para o outro é um erro. Tempo é do que precisamos mais, e ninguém nos dá». E o pior de tudo? O que é que a crise faz às pessoas? «O pior é a tristeza. Depois da indignação e da raiva desce a tristeza. Em Atenas a tristeza é uma coisa espessa, uma escuridão que não levanta. As famílias zangam-se, os casais separam-se, os amigos desconversam, a existência torna-se impossível quando nada funciona, quando não há dinheiro. Atenas vive em estado de terror e protesto. Era uma cidade alegre, é uma cidade desavinda. É como se a vida tivesse sido sugada das ruas e as ruas servem para a batalha campal. Pessoas que viviam bem agora contam os tostões para comer amanhã. As pessoas estão a perder as casas, a comida, as escolas dos filhos. Nem a emigração nos ajuda, porque ser-se grego nos tempos que correm é uma maldição. O grego tornou-se a escória da humanidade, o símbolo de tudo o que está errado como mundo financeiro e a Europa. Ninguém nos quer, só querem as nossas ilhas e a posição no Mediterrâneo. E cresce o sentimento antialemão. Coisas do tempo da guerra vêm ao de cima, rancores, ódios, vinganças. Nunca mais vamos recuperar dos danos morais desta crise. Nunca. Uma parte de nós já morreu. Estamos num comboio descontrolado. A Grécia era a última estação. Já passámos».

        Apontamentos, Democracia, Olhares

        Tabaco da ilha

        Charutos Churchill

        Já aqui deixei há dias algumas notas sobre as razões que levarão Alberto João Jardim a ganhar de novo, eventualmente com maioria absoluta, as eleições para a Assembleia Regional que estão a decorrer. Nada tenho a acrescentar ao triste rol. Existe, todavia, um comentário adicional que importa fazer, tendo em consideração as sondagens que confirmam a tendência e a reação de muitos populares madeirenses a inquéritos de rua nos quais lhes perguntam o que acham das contas da região: os dados esmagadores que têm sido divulgados por entidades insuspeitas sobre a ocultação da dívida (não o excesso, pois esse não é exclusivo local, mas a ocultação) e o desvio sistemático de verbas das rubricas para as quais estavam previstas, aplicado ao longo de vários anos, muitas das vezes com a complacência medrosa do governo da República, não perturbam a esmagadora maioria dos eleitores de Jardim.

        Lá como cá, a ausência em muitas cabeças de um sentido claro e solidário de cidadania, o desinteresse pelos conceitos de honradez e credibilidade na coisa pública, impõem que a malfeitoria, desde que usada em proveito próprio, seja transformada em gesto admirável, em prova de esperteza, e o malfeitor seja convertido em paladino dos beneficiados. De onde vem o dinheiro e por que processos foi obtido, ou de que forma e por quem vai ele ser devolvido com os respetivos juros, tal não importa desde que nos alarguem a estrada, nos componham o coreto, nos dêem um autocarro novo para levar os miúdos, nos arranjem uma ocupação remunerada para a prima ou para o cunhado. Quem sofre com isto é obviamente a democracia representativa tal como a concebemos. Sim, esse péssimo sistema do qual dizia o outro senhor, que também fumava charuto e governava uma ilha, ser ainda assim o menos mau dos sistemas. O mais negativo da ideia está porém em pensar que não pode haver melhor. E se calhar pode.

          Apontamentos, Atualidade, Olhares

          O romance (e a realidade) do retorno

          De regresso à perceção partilhada por muitos, menos pelos mais austeros taxionomistas do género literário, de que todo o romance é autobiográfico. Mas sem querer desviar a conversa, talvez se possa dizer também que todo processo de leitura de um romance confronta aqui ou além a biografia de quem com cuidado o vai lendo. Uma vez mais, é isto que acontece com O Retorno, o grande romance de Dulce Maria Cardoso (n. 1964) que a Tinta-da-China acaba de publicar. E o que se passa também com a forma como o fui seguindo. Vamos por partes.

          Dulce Maria CardosoA autora foi, é, e já vai sendo tempo de não ter medo de usar a palavra que ainda há menos de vinte anos era uma mancha infamante para quem a arrastava, uma retornada de Angola. Fala bastante neste seu quarto romance dessa experiência, difícil e dolorosa nem será preciso dizê-lo – ou talvez seja –, como deixa claro na longa entrevista que deu à revista LER de Outubro. Conta também aí, sem rodeios, como esse lado da vida pessoal confluiu abertamente com o processo de inventiva e de escrita do livro agora publicado. Rui, o narrador, é a outra face, masculina por artifício, da escritora. Se todo o trabalho de escrita romanesca supõe, como é sabido, estudo, caminhada e engenho criativo, encontra-se aqui também, visivelmente, um trabalho tenaz de rememoração. Da vida africana que ficou para trás, sem dúvida, mas principalmente do trajeto longo, incompreendido, guetizado, daqueles que regressaram – muitos sem jamais terem saído de África antes da ponte aérea – para longos anos de silêncio, apagamento, humilhação, pesadelos e luta pela vida. A saga africana e lusíada dos seiscentos milhares de retornados, iniciada nos anos passados no outro hemisfério, não pode ser mantida na penumbra, os seus protagonistas não podem riscar o passado de lá e de cá, e livros como este de Dulce Maria Cardoso ajudam-nos a cumprir a tarefa ingente e urgente da reexposição à luz. Pois só quando esta estiver concluída, os naturais de Portugal, e os dos estados africanos com quem Portugal partilhou parte substancial da sua história, poderão viver sem o peso da incompreensão, do remorso e, o mais difícil de perder, do ressentimento.

          O RetornoE agora a parte do leitor que se sentiu um pouco biografado. Saibam que nestas linhas estou aparentemente do lado dos maus: «Os soldados portugueses já quase não passam por aqui e os poucos que vemos têm os cabelos compridos e as fardas desleixadas, os botões das camisas desapertados e os atacadores das botas por atar. Derrapam os jipes nas curvas e bebem Cucas como se estivessem de férias. Para o pai os soldados portugueses são uns traidores reles (…).» Percorri a alta velocidade a Luanda sobreaquecida de 75, acompanhando como militar a transferência de poder e a partida desordenada de muitos colonos brancos, em parte empurrados pelo medo e pelo desentendimento da mudança, em parte pelo que pensavam ser (ou era de facto) a ausência de alternativas para a fantasiada utopia na qual habitavam. Vistoriei-lhes as malas, os contentores, levei crianças de colo ao avião, passei-lhes pelas casas abandonadas com camas, toalhas e fotografias de família devassadas, fumei sentado nos seus sofás, servi-me sem medo dos seus automóveis deixados ao abandono. Depois, na metrópole, fui ainda dos muitos portugueses – tantos deles anticolonialistas de última hora – para quem aquelas pessoas não passavam de figuras um tanto exóticas, difíceis de entender, e que era melhor não olhar de frente. Com quem era até preferível não conversar porque tresandavam a antigamente e falavam do que não importava falar. Gente cujo passado colonial deveria ser depurado de um crime indizível que de tão escabroso e indesculpável não merecia ser sequer apreciado. E cujos traços, marcas, experiências, deveriam ser definitivamente apagados. Mas não o foram e agora estão aqui, num rumor, pendurados nas nossas mãos. Contrariando os versos da cubana Dulce María Loynaz que esta outra Dulce Maria destaca na página final: «Las cosas que se mueren/no se deben tocar».

          Dulce Maria Cardoso, O Retorno. Tinta-da-China. 272 págs.

            História, Memória, Olhares

            O rapaz da maçã

            Steve Jobs

            Steve Paul Jobs (1955-2011). Para o bem (e para o mal, como sempre), deixou uma marca profunda, com toda a certeza duradoura, nas nossas vidas partilhadas. «Ser o homem mais rico do cemitério não me interessa», disse certa vez, «ir para a cama à noite a pensar ‘hoje fizemos algo de maravilhoso’ é que é importante para mim.» Foram poucos aqueles que puderam gabar-se de o terem feito tantas vezes antes de gastarem o seu crédito de vida.

              Apontamentos, Etc.

              Um Deus consentido

              L'homme

              No primeiro de novembro de 1954, Camus escreveu no seu caderno diário: «Leio frequentes vezes que sou ateu, oiço falar muito do meu ateísmo. Ora essas palavras nada me dizem, não têm qualquer sentido para mim. Não acredito em Deus e não sou ateu.» Uma forma íntima, e suficientemente simples, de insistir na abordagem de Deus, traduzida na decisão de não considerar o problema da sua existência como tema que mereça sequer grande atenção. Em A Peste, quando é perguntado ao Dr. Bernard Rieux se acredita em Deus, este responde com outra pergunta: «Não. Mas o que é que isso quer dizer?». Dito de outra maneira: a resposta a essa dúvida interessará a alguém? A aproximação mais completa ao tema surge, no entanto, em O Homem Revoltado. Aqui o sujeito em estado de revolta não põe necessariamente em causa a existência de um qualquer ser supremo, mas contesta a sua autoridade, que pensa dever ser aceite apenas com o consentimento unânime dos humanos. Uma religião consentida, um Deus democraticamente adotado, que não seja todo-poderoso, temível e castigador, eis a única medida aceitável do divino.

                Olhares

                Um humanista no verão

                Claudio Magris

                Os cinquenta artigos que compõem a coletânea A História Não Acabou foram quase todos publicados por Claudio Magris no Corriere della Sera entre 1999 e 2006. Ao lembrá-lo quase no final, o escritor sublinha a importância do meio utilizado para a forma tomada pela mensagem, declarando o jornal «um grande ginásio de luta kafkiana com a realidade e um laboratório de linguagem para a contar». Por isso todos esses textos, apesar de curtos e circunstanciais, travam um diálogo permanente, aberto ao leitor comum mas sempre exigente na forma, que materializa a aproximação criteriosa do autor com os acontecimentos que o vão confrontando. Só que, para este, o vínculo não impõe concessões ao fácil ou ao superficial, seja ao nível dos conceitos ou no campo da linguagem, tão comuns, como é sabido, entre os intelectuais que procuram a todo o custo o sucesso mediático. É pois um caminho árduo, mas por isso mesmo imprevisível e enriquecedor, o escolhido aqui para falar de muitas das feridas do presente e das opções que este nos vai fatalmente impondo. ler mais deste artigo

                  Olhares

                  Tintim no Congo e a dentada na maçã

                  Tintim no Congo

                  Discordo em absoluto da tentativa de proibição a decorrer na Bélgica de Tintim no Congo, o segundo livro de banda desenhada de Hergé. O motivo invocado é a perspetiva, próxima dos estereótipos eurocêntricos e racistas da África e dos seus naturais não-caucasianos, que em 1931, quando o álbum foi editado pela primeira vez, dominava a maior parte do hemisfério norte. Sob este aspeto, o livro incomoda, sem dúvida, mas não menos que milhares de outros, fáceis de encontrar em bibliotecas e livrarias, contendo representações e ideias que podemos abominar mas não devemos apagar, pois fazem parte do património coletivo e servem até para mostrar, por oposição, aquilo que consideramos detestável e merece, muitas vezes, ser conhecido para ser lido criticamente. Neste caso, aliás, o próprio Hergé (1907-1983) veio a reconhecer que na altura da criação da aventura congolesa do jovem repórter belga, tal como acontecera com o também polémico Tintim no País dos Sovietes, vivia num ambiente no qual o preconceito e a recusa da diferença eram a norma: «Era 1930. Conhecia desse país apenas o que as pessoas contavam na época: ‘os negros são grandes crianças, felizmente estamos lá!’, etc. E desenhei os africanos de acordo com esses critérios, de puro espírito paternalista, que era o da época na Bélgica». ler mais deste artigo

                    Democracia, Memória

                    Na ponta da língua

                    língua

                    Quase a consumarem-se cinco semanas (e meia) passadas sobre a adoção por este blogue do último Acordo Ortográfico da portuguesa língua. Agora por mim usado também na escrita praticada lá fora. Hesitei um pedaço antes de me decidir, condicionado por algumas dúvidas e atavismos. Forcei-me de certo modo a fazê-lo, empurrado em parte por determinados deveres. A verdade é essa e na altura tudo ficou explicado. O que posso dizer agora, após este tempo de ginástica e aprendizagem, é que me custou muito menos dar o salto do que inicialmente supunha. De facto (sim, com c), até me tem dado algum prazer renovar a escrita e perceber, e sentir, e fruir, o modo como a distância entre ela e a fala se encurtou e tornou até mais natural. Só me custa ainda, e provavelmente continuará a custar um tanto, escrever com minúscula o nome dos meses e das estações do ano. Coisa pouca, afinal. Menos que apanhar uma vacina.

                      Apontamentos, Etc., Oficina

                      Os caminhos do extermínio

                      Daniel J. Goldhagen

                      O título do livro explica-se de forma simples, embora brutal: estima-se que ao longo dos últimos cem anos cerca de 150 milhões de pessoas foram vítimas de iniciativas persistentes de extermínio, responsáveis, no seu conjunto, pela duplicação do número de mortos em combate contabilizados em todas as guerras que tiveram lugar no mesmo período. A tese central de Daniel J. Goldhagen apoia-se nesta contabilidade avassaladora para mostrar que ela não dependeu de acasos, de circunstâncias, ou da iniciativa isolada de dirigentes transfigurados em serial killers, mas antes de escolhas políticas apoiadas num razoável ou mesmo num amplo consenso social. A ideia já se encontrava, aliás, presente numa obra anterior deste cientista político americano, motivo pelo qual foi objeto de feroz crítica: em Hitler’s Willing Executioners, saída em 1996, considerava que a busca da Solução Final determinada pelos nazis apenas fora possível com a cumplicidade, ou pelo menos a complacência, das pessoas comuns, alemães e aliados de outras nacionalidades, sem os quais os burocratas e os destacamentos especiais do Terceiro Reich não poderiam ter levado a cabo de modo tão eficaz o seu trabalho sujo. A obra foi, aliás, criticada por historiadores como Norman Finkelstein, que acusou o seu autor – sendo ambos, acusador e acusado, filhos de sobreviventes do Holocausto – de justificar com a sua explicação a criação de uma «indústria do Holocausto» de orientação sionista. ler mais deste artigo

                        Atualidade, História, Olhares

                        Os prémios e os melhores

                        A caminhoA decisão de anular, numa altura em que estavam já marcadas e anunciadas, as entregas dos prémios de 500 euros destinados aos dois melhores alunos de cada escola secundária pública, é, obviamente, uma vergonha e um ato de maldade pura. Atirou para o lixo as expectativas dos jovens premiados, muitos deles com dificuldades económicas, e deu-lhes um mau sinal sobre a forma como o Estado deve ser (ou não deve ser) considerado «pessoa de bem». Ensina-se assim o cidadão de amanhã a não confiar em ninguém. Desde logo, e em primeiro lugar, em quem dirige a coisa pública. Algumas das escolas, tentando minorar a deceção dos seus alunos mais esforçados, estão agora à procura de entidades privadas que possam, a troco de alguma publicidade, ajudar a reduzir um pouco os danos.

                        O caso vem trazer para primeiro plano um problema, periodicamente debatido, sobre o qual existem posições divergentes, transversais até na relação com o mapa político e partidário. A saber: justifica-se ou não a existência de prémios destinados a laurear os melhores alunos? Algum pensamento devoto do ensino «centrado no aluno» – já malevolamente cunhado de «eduquês» – considera que não, entendendo ser apenas necessário criar condições para que todos se sintam motivados. No dia ideal em que tal acontecer, só não terá boas notas quem não quiser ou for mesmo burrinho. Numa área à gauche, mais voltada para a «criação das condições objetivas», pensa-se que a atribuição de prémios contraria o igualitarismo, amplia os contrastes sociais e coloca sobre os ombros dos jovens uma responsabilidade que deve caber ao Estado. À direita, os prémios são muitas vezes defendidos, mas como instrumento de gradual composição de um escol, de uma meritocracia, que assenta na definição de uma elite de futuros «mandantes» com lugar de destaque numa sociedade devidamente ordenada. Na qual é suposto mandar quem sabe (e pode) e obedecer quem deve. ler mais deste artigo

                          Atualidade, Olhares, Opinião

                          Snobismo (ou Aimez-vous a Nona Sinfonia?)

                          Slavoj Žižek

                          Se não fosse o facto de ser uma citação de outrem, o parágrafo que vou transcrever poderia deixar no ar uma falsa (mas justificada) sensação de lamentável arrogância. Não que, contrariando a proclamação de Boris Vian, tenha alguma coisa contra a nobre arte do snobismo, mas nem sempre é prático dizermos de forma clara e um tanto ostensiva aquilo que realmente pensamos. Copio então um passo de Viver no Fim dos Tempos, de Slavoj Žižek (ed. Relógio d’Água).

                          A única prova do gosto está no facto de uma pessoa saber como apreciar ocasionalmente coisas que não correspondem aos critérios do bom gosto – em contrapartida, quem segue demasiado estritamente os critérios de bom gosto, limita-se a exibir a sua completa falta de gosto. (Analogamente, alguém que exprime a sua admiração pela Nona Sinfonia de Beethoven ou outra obra-prima da civilização ocidental denuncia no mesmo momento a sua ausência de gosto – o verdadeiro gosto exibe-se elogiando uma peça menor de Beethoven como superior aos seus «maiores êxitos».)

                          A aceitação universal deste princípio impõe todavia algumas ressalvas. Assim, o estilhaçamento do cânone ocidental em plena modernidade líquida, levando a uma reavaliação do que em tempos foi entendido como secundário, menor, descartável, permite reconsiderar a noção de bom gosto, ou de gosto original, aplicada a uma obra ou a um objeto. Retomando o exemplo do músico alemão nascido em Bona: num grupo de cem pessoas incapazes de reconhecerem os cinco primeiros compassos da sua Quinta Sinfonia – e, acreditem, atualmente não é difícil encontrá-las – a simples enunciação da peça perde o efeito kitsch que lhe é associado em alguns meios, podendo a sua reprodução tornar-se até um momento de deleite e de treino… do gosto. Aliás, a requalificação do próprio kitsch permite tomá-lo com um prazer legítimo e, em algumas circunstâncias, «bom» até. Provavelmente, o melhor será então não sermos preconceituosos e aceitarmos a relatividade das noções e das formas de gostar de alguma coisa. Provavelmente. Mas por vezes é um tanto difícil consegui-lo. Maldito snobismo.

                            Apontamentos

                            Cascais’71

                            Cascais 71

                            Em novembro de 1971, o primeiro Festival de Jazz de Cascais («Newport na Europa») reuniu num programa excecional a nata da cena jazística mundial. Se for apreciador do género, para o confirmar basta que leia com atenção todas as linhas do cartaz acima reproduzido. No qual faltam aliás nomes também presentes mas que começavam apenas a carreira e por isso não eram destacados, como o contrabaixista Charlie Haden, a acompanhar então Ornette Coleman, e o pianista (na época apenas elétrico) Keith Jarrett, que tocava com um bastante irascível Miles Davis. Estive por lá, sim, comendo o pó de cimento de um pavilhão ainda em obras e bebendo cervejas estupidamente chocas. Mas, acima de tudo, encaixando momentos de beleza e exaltação cujos ecos continuam, garanto, a reverberar.

                            Obrigado à A.S. por se ter lembrado de me avivar a memória quando deu de caras com isto.

                              Etc., Memória, Música

                              Syd (e os outros Floyd)

                              Syd Barrett

                              Tentando contrariar um injusto apagamento. A propósito da recente edição remasterizada da discografia dos Pink Floyd, revistas e suplementos alinham sínteses do trajeto de uma das bandas da música popular anglo-saxónica que mais venderam (e vendem), e que maior capacidade tiveram de conservar uma admiração que atravessa gerações. É fácil hoje encontrar homens de sessenta anos, trintões desgastados ou putos de doze que gostam dos Floyd, conhecem de memória uns quantos temas, e um dia tiveram, contra a vontade das mães, um poster deles numa parede do quarto. Em particular entre os que recordam a fase inaugurada com Dark Side of The Moon (1973), mais melódica e com maior impacto comercial, que é também a menos interessante. Os artigos da imprensa têm pois alinhado fotografias de Waters, Gilmour, Mason e Wright, não se esquecendo de evocar a dimensão dos megaconcertos e de contabilizar a magnitude das vendas. Só que tem sido praticamente ignorado o rico período criativo de 1964 a 1968, claramente menos previsível e dominado pela presença inovadora do guitarrista, vocalista e compositor Syd Barrett.

                              Foram dele, de facto, os dois primeiros álbuns dos Floyd (The Piper At The Gates of Dawn e A Saucerful of Secrets), e foi ainda debaixo da influência psicadélica e ácida da sua música que foram compostos, já em 1969, os seguintes More e Ummagumma. Todavia, no ano anterior, enquanto a banda se tornava cada vez mais popular, a vida de estrada, o consumo de LSD e a propensão para a depressão tinham transtornado rapidamente o comportamento de Barrett, cada vez mais estranho e incapaz de comunicar com os companheiros e com o público que se juntava para os ouvir. Os restantes membros da banda decidiram então não levar mais Syd consigo para os concertos, substituindo-o por David Gilmour, principal responsável pela sonoridade açucarada de lead guitar que os Pink Floyd adotaram a partir dessa altura e que para as multidões se tornou aquela que reconhecem. Quanto a Syd, ainda editará em 1970 dois interessantes álbuns a solo (The Madcap Laughs e Barrett), afundando-se depois, apesar de pontualmente recordado por alguns dos sobreviventes da época, numa vida de apagamento, reclusão e doença. Morreu em Julho de 2006. Poucas semanas antes fora visto a deambular sozinho pelas ruas próximas da sua casa em Cambridge.

                              [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=LNbcbh2JH_I[/youtube]
                                Apontamentos, Biografias, Memória, Música

                                Lembrando Kurt

                                Kurt Sanderling

                                Sei que não saiu nas primeiras páginas nem se falou nos telejornais da morte a 18 de setembro, um dia antes de completar os 99, do maestro Kurt Sanderling (1912-2011). Alemão, nascido em Arys, hoje uma cidade polaca, judeu filho de judeus, fugiu dos nazis em 1936 e viveu cerca de trinta anos na União Soviética, onde após um estágio profissional em Novosibirsk, na Sibéria, veio a dirigir a Orquestra Sinfónica da Rádio Moscovo e a Filarmónica de Leninegrado. De regresso à Alemanha no início dos anos sessenta, foi maestro principal na Sinfónica de Berlim (a arquirrival da ocidental Filarmónica, de Karajan) e na Dresden Staatskapelle, mudando-se depois para Londres onde durante muitos anos dirigiu a Orchestra Philarmonia. Trabalhou também, mais episodicamente, nos Estados Unidos, no Japão, em Espanha e noutros países europeus, abandonando a profissão apenas aos 90 anos. Do património sonoro que nos deixou, um destaque para grandes interpretações de Beethoven, Brahms, Schumann, Mahler, Bruckner, Sibelius e Chostakovitch, tendo aliás sido amigo e confidente deste. Foi justamente graças a Sanderling que aprendi a gostar dos dois últimos, os grandes compositores do século XX que me ajudaram a olhar o Grande Norte e a Rússia soviética de uma maneira talvez menos incompleta. Terá sem dúvida sido por isso – e porque guardo ainda algumas gravações históricas – que a curta notícia do seu passamento não me passou despercebida. Nem me foi indiferente.

                                Vídeo: 3º Andamento da Sinfonia No. 5 de Jean Sibelius. Com a Orquestra Sinfónica de Berlim em 1976.

                                [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=fmEc8KL59FI[/youtube]
                                  Apontamentos, Artes, Biografias, Música

                                  Viagens perfeitas

                                  No comboio

                                  Ainda sobre a beleza dos comboios e da corrente de vida, de ar e de calor que a partir deles é possível desfrutar, recorto um fragmento da crónica de Antonio Muñoz Molina («Apunte de Alemania») publicada no suplemento Babelia deste sábado. Traduzido livremente.

                                  Há lugares perfeitos. Há via­gens perfeitas. A viagem de comboio numa manhã de domingo entre Hanôver e Munique, por exemplo. Es­tá nublado e ténues grinaldas de nevoeiro flutuam sobre os prados ou sobre as encostas com grandes bosques de coníferas. O único defeito que encontro na maior parte das viagens de comboio nestes tempos é que duram muito pouco. O comboio de Hanôver para Munique é bastante bom, é ótimo, confortável e rápi­do, silencioso também, e mais ainda nesta manhã na qual por ser dia de festa há menos viajantes. Não é um comboio de alta velocidade, sem dúvida, nem faz falta alguma que o seja. É um comboio perfeito. A luz do dia nublado torna ainda mais acolhedor o interior das carruagens. Quase todos os passageiros vão a ler os seus pesados jornais de domingo. Um dos muitos inconvenientes de não saber alemão é não poder desfrutar gulosamente dessas páginas tão amplas mas para as quais, ao mesmo tempo, tanto parece importar a palavra escrita. O rumor das páginas dos jornais vai dando ao silêncio do interior do comboio uma qualidade de atmosfera de biblioteca. O movimento é tão regular que me permite tirar tranquilamente apontamentos num caderno. Demasiadas tentações que é preciso desfrutar de maneira simultânea, para não prescindir de nenhuma: observar os prados e os bosques, os rios de curso opulento e tão calmo que refletem nitidamente na sua superfície as árvores das margens e as nuvens passageiras, as aldeias de telhados angulosos muitas vezes cobertos de painéis solares, as agulhas de ardósia das igrejas, as fábricas que imagino de produtos supertecnologicos mas que não ofendem a paisagem. E ainda a leitura, sem tirar os olhos do livro que me tem acompanhado nestas idas e vindas desde que saí de Madrid.

                                    Apontamentos, Olhares, Recortes