O inadiável confronta o improvável

A minha formação cristã já decorreu há muito tempo. Mas não o tempo suficiente para que eu já confunda a quadra do arrependimento e da expiação do pecado pela via dolorosa da penitência, que decorre na Quaresma, com as esperanças serenas e indulgentes que o Natal supostamente transporta consigo. Todavia, como o suceder do tempo acelera cada vez mais, existem erros e dislates cometidos pela esquerda portuguesa que quanto mais tarde começarem a ser expiados – no sentido da emenda, não da fustigação dos seus executantes – tanto mais longa será a via-sacra de penitência que irão impor.

Há que designar as realidades pelos nomes, sem qualquer intenção de abater este ou aquele mas também sem fazer de conta que está tudo bem. Ou mais ou menos bem. A desgraça pública patrocinada pelo governo da direita tem, de facto, o seu reverso na responsabilidade da esquerda pela situação criada e pela ausência de uma saída. Nesta imputação de culpa existem duas asneiras com ecos brutais na nossa vida que convém dissecar na perspetiva da reparação. Primeira asneira: ter-se considerado o PS de Sócrates, ou qualquer outro, como «rigorosamente igual» ao PSD de Coelho. Está visto que não era e, como muitas pessoas que votaram à esquerda dos socialistas logo preveniram, vê-se agora como esse erro de perspetiva nos empurrou para a queda abissal no pântano do capitalismo mais primário e bestial. Segunda asneira, consequência da primeira: que a insistência na moção de censura responsável pelo derrube do governo PS tornou essa queda inevitável.

Tudo isto se relaciona com uma imposição da realidade que sei levantar muitos problemas à «esquerda da esquerda» mas que se mostra incontornável. Sem hipóteses de uma alternativa autónoma, eventualmente mais profunda e radical, nesta fase, que possa transformar-se em projeto de poder, só um grande (grande mesmo) arco de unidade pode ultrapassar a lógica exclusiva do mero protesto e lançar as dinâmicas que conduzam ao derrube da direita. E este, por muito que doa a quem tenha a memória fresca – e a mim dói, acreditem – tem de incluir os socialistas. Ou melhor, não é palavrão, o Partido Socialista. Com cedências de todas as partes, claro. Procurando uma base mínima que, nesta fase, se dedique à tarefa ultra-urgente de combater o pior inimigo: o revanchismo insano da direita e a falta de visão e de coragem para defender o país e os seus por parte de quem, circunstancialmente mas com condições para determinar décadas do nosso futuro coletivo, está agora no governo. Quando o inadiável está na preservação «da paz, do pão, saúde, habitação», de que serve e a quem serve passar o tempo a projetar panoramas improváveis com rubras bandeiras a adejar?

    Atualidade, Olhares, Opinião

    Sem dedos e sem anéis

    emigrar

    O desnorte da governança do país, exclusivamente imersa nas soluções de curtíssimo prazo e no revanchismo de direita em detrimento da busca de um caminho e de uma esperança para o país e para os portugueses, está a atingir níveis que estão para lá da compreensão de todo o cidadão habituado, para o mal ou para o bem, a projetar a intervenção dos partidos de governo e dos seus líderes como subordinada a uma estratégia minimamente coerente. A proposta da emigração de professores e de outros quadros como solução para a situação crítica das finanças públicas e da economia do país, que de hipótese ou escolha individual passou a bandeira do governo CDS-PSD, é de uma irracionalidade e de uma ausência de perspetiva colossal. Esta apenas se tornou possível graças à chegada ao eixo do poder de uma geração de quadros partidários treinada no arrivismo e na gestão do imediato. Gente pequena, sem horizonte, com escassa ou nula experiência profissional e claramente pouco inteligente – o seu léxico e a sua retórica demonstram-no cabalmente aos mais atentos – que mostra uma espantosa incapacidade para definir um desígnio razoável para a coisa pública e para o infeliz país que lhe foi parar às mãos.

    Podem enumerar-se algumas razões para abominar esta hipótese da sangria de quadros, em cuja formação Portugal foi investindo ao longo de quase quatro décadas, como forma de «despachar» uma parte do problema do desemprego. Elas têm sido referidas por muitos comentadores e não vale a pena repeti-las. Limito-me a constatar o absurdo que é afugentar justamente as pessoas que, enquadradas por políticas coerentes e positivas, estão em condições de recolocar Portugal no caminho do desenvolvimento humano e tecnológico como via para recuperar a economia e a qualidade de vida. Como pode conceber-se que será apenas com cidadãos próximos da idade da reforma, já sem condições para emigrarem e recomeçarem o seu trajeto, ou então com trabalhadores menos qualificados, que, mesmo na ótica do capitalismo selvagem, podemos inverter a queda em espiral na qual mergulhámos? Mas há pior: esta proposta, a materializar-se, imporá uma condenação ao exílio perpétuo de um número imenso de jovens. Sem que isso traga outro benefício para o governo que não seja retirá-los das ruas, nas quais podem engrossar o descontentamento e a contestação. É que, pessoas com essa formação, no mundo de cultura global no qual habitamos – que já não é o do emigrante de valise en carton, futuro torna-viagem, com as suas «remessas» de divisas –, transferirão os seus horizontes de vida e de trabalho para os países de acolhimento e, com toda a certeza, não mais regressarão. Esquecendo obrigatoriamente o passado, os lugares da infância, talvez a língua, enquanto se esforçam por ir construindo, a milhares de quilómetros da aldeia dos seus avós, novas «zonas de conforto». E nós por cá ficaremos sem dedos e sem anéis. Mais pobres ainda e sem meios humanos para podermos sair da pobreza.

      Atualidade, Olhares, Opinião

      O riso de Václav Hável

      Václav HávelNo início dos anos oitenta conheci alguns estudantes universitários de Praga integrados numa trupe de teatro em visita semioficial a Portugal. O contacto foi breve mas o suficiente para deixar uma impressão indesmentível: pelo menos na aparência todos eles eram anti-regime, «decadentes» filhos de Woodstock de cabelos desgrenhados e fanáticos do rock’n’roll, e, sem contradizerem o resto, seres humanos desdenhosamente anticapitalistas. Quer isto dizer, tão libertários e antiautoritários quanto se podia ser num país como o seu, ainda a esforçar-se por sobreviver debaixo da bota impiedosa do Pacto de Varsóvia. Mesmo que lá pelo meio viesse com toda a probabilidade algum inevitável agente da StB, a pouco amável polícia de Segurança do Estado, e aquela fosse gente «especial», como o é invariavelmente a que se movimenta nos meios das artes, a sua atitude constituía um sintoma. O contacto com aquelas pessoas revelava também, aos olhos de quem estivesse atento, aquilo que a rua checa havia mostrado já quando da Primavera de Praga e do seu violento epílogo marcado pela repressão e pela raiva impotente: que ali se tinha desenvolvido uma apreciável e dinâmica corrente social, para a qual a prepotência do Estado e a imposição do pensamento único se haviam tornado insuportáveis, produzindo uma forte e obsessiva vontade de os ver desaparecer do seu horizonte.

      Essas foram as circunstâncias da afirmação como ativista e voz escutada de Václav Hável (1936-2011), o dramaturgo, poeta, ensaísta, amante de jazz, de rock e de Frank Zappa, ex-dissidente e político checo falecido na manhã deste último domingo. Conhecemos o seu percurso contado pelos amigos, anotado em referências autobiográficas e entrevistas, pelas páginas dos artigos e livros que escreveu, pelas fotografias noturnas tiradas em noites de boémia num país no qual estas eram um grave sinal de devassidão moral, de subversão e de «decadência capitalista». A participação na Carta 77, abrindo o processo de contestação do regime de partido único que haveria de culminar na «Revolução de Veludo», iria acabar por conduzi-lo a responsabilidades às quais, como repetidamente disse, jamais tivera a intenção de chegar. Estas metamorfosearam-no de «burguês reaccionário» em homme d’État, com dimensão simbólica e exigências diárias que acabaram por condicinar a sua evolução como artista. Coagindo-o até a tomadas de posição que noutras circunstâncias, provavelmente, teria assumido de outra forma. Mas esse foi o preço a pagar por quem, num dado momento, decidiu optar pelo enorme risco de passar das conjeturas filosóficas e das digressões literárias à gestão diária da política do factível. Nem todos temos a coragem, ou a vocação, de assumir tal escolha e de pagar por ela, oferecendo um pouco da nossa própria liberdade pela liberdade dos outros. Mas Václav Hável teve-a, tentando fazê-lo sem pôr em cheque o belo juízo que um dia anotara como seu: «Todo aquele que se leva demasiado a sério corre o risco de parecer ridículo; um risco que não corre quem desenvolva de forma consistente o hábito de rir de si próprio.» Os que o conheceram recordam como gostava imenso de o fazer.

        Atualidade, Biografias, História, Memória

        Abogi, Abogi! (Adeus Querido Líder!)

        A morte de Kim Jong-il está a servir ao governo norte-coreano para intensificar uma das características mais brutais do seu «socialismo dinástico»: o drama da escravidão dos corpos e das consciências imposto à generalidade dos cidadãos, sob o efeito da repressão, do treino, da propaganda, do preconceito e da ignorância de realidades alternativas. Do livro de Barbara Demick, A Longa Noite de um Povo (ed. Temas e Debates), que venceu em 2010 o Prémio Samuel Johnson e compila diversos testemunhos de cidadãos da Coreia do Norte que puderam passar a fronteira e escapar ao regime concentracionário de Pyongyang, retiro uma descrição de momentos que se seguiram, em 8 de julho de 1994, ao desaparecimento de Kim Il-sung, fundador do regime. O paralelismo com as cenas públicas de hoje é inevitável.

        – Abogi, Abogi! – gemiam as velhas, empregando o título honorífico usado para uma pessoa se dirigir ao seu pai ou a Deus.

        – Como pudeste deixar-nos assim de repente? – gritavam os homens por sua vez.

        Os que esperavam na fila saltavam para cima e para baixo, batiam na cabeça, caíam em desfalecimentos teatrais, rasgavam as roupas e davam murros no ar, numa raiva inútil. Os homens choravam tão copiosamente como as mulheres.

        A teatralidade da dor assumia um aspeto competitivo. Quem conseguia chorar mais alto? Quem estava mais perturbado? Os que prestavam o seu tributo eram incitados pelos noticiários televisivos, que transmitiam horas e horas de pessoas a prantear, homens adultos com lágrimas a correrem-lhe pelo rosto, a baterem com a cabeça nas árvores, marinheiros a baterem com a cabeça nos mastros dos navios, pilotos a chorarem na cabina de pilotagem, e assim sucessivamente. Estas cenas eram intercaladas com imagens da trovoada e dos copiosos aguaceiros. Parecia o dia do Juízo Final. ler mais deste artigo

          Atualidade, Democracia, História, Olhares

          Melhores blogues de 2011

          No ano passado o programa da TVI Combate de Blogs designou-me «blogger do ano». Na altura, o facto inquietou-me um pouco, por motivos que então expliquei (poderá revê-los). Filipe Caetano, o responsável pelo programa, sugeriu entretanto que fizesse parte do painel que nomearia os candidatos deste ano aos melhores blogues de esquerda, de direita, coletivos, individuais e revelação. Sob novas condições, aceitei a proposta e colaborei então na escolha – obviamente discutível e parcial – dos que vão agora a votação. Um deles é uma vez mais A Terceira Noite, que não estava evidentemente entre aqueles que nomeei. Se quiser, pode votar aqui até ao dia 5 de janeiro.

            Etc., Oficina

            Anjos da paz dos lares

            anjos

            No meio das propostas surpreendentes que todos os dias chegam à minha caixa do correio-e, uma mais recente, enviada por uma firma de detectives brasileiros, garante resolver o problema de quem se possa sentir «desconfiado que está sendo traído pelo e-mail ou bate-papos online». Nela se avisam também os potenciais clientes de que não vale a pena tentar tratar com a empresa de assuntos vulgares, de reduzida magnitude social, como fraudes financeiras ou o roubo de cartões de crédito, uma vez que só aceitam «serviços para investigação sobre adultério e infidelidade na Internet». Tratar-se-á com toda a probabilidade de um conjunto de pessoas de elevadíssimos princípios morais, profundamente zelosa da paz dos lares e da preservação compulsiva da família.

              Apontamentos, Devaneios, Olhares

              Contra a supressão dos feriados

              Abaixo-assinado da responsabilidade de um conjunto de historiadores.

              A recente proposta do Governo de acabar com quatro feriados (dois religiosos e dois civis: o feriado do 1º de Dezembro e o do 5 de Outubro) merece da parte dos historiadores que subscrevem este documento uma clara oposição.

              Em primeiro lugar, porque assenta numa evidente demagogia: ao contrário do que o Governo, pela mão do seu Ministro da Economia, vem atabalhoadamente explicar ao país, a produtividade e a competitividade da economia nacional não dependem em nada de essencial do número dos feriados em vigor. Países europeus ou fora da Europa com tantos ou mais feriados registam níveis de produtividade e competitividade muito superiores aos de Portugal, sendo que é precisamente nas economias mais competitivas e avançadas que se verifica um menor número médio de horas de trabalho. As razões são obviamente outras e bem mais profundas, tal como são outras as razões para atacar os feriados, em especial os que, como o 1 de Dezembro e o 5 de Outubro, são depositários de um elevado valor simbólico para a comunidade. ler mais deste artigo

                Atualidade, História, Memória, Opinião

                Demasiado humano

                Piccoli e Moretti

                Assistir a uma projeção de Habemus Papam, de Nanni Moretti, colocou-me em confronto com algumas leituras do filme que fui recolhendo antes de o ver. Diluiu-se de todo a apresentação do argumento como concebido num registo de genuína comédia, que foi o dos primeiros trabalhos para o cinema do realizador italiano. Além disso, tornou-se clara a estreiteza do ponto de vista dos que, procurando essencialmente ver aquilo que querem, encontraram na obra «uma ácida crítica à crise da Igreja no mundo de hoje». Para já não falar dos setores católicos mais conservadores que decidiram atacar o filme pelo motivo luminar de que, como dizia o bispo Salvatore Izzo sem se dar ao trabalho de o visionar, «no Papa não se toca».

                O filme é fundamentalmente uma intensa figuração dramática do dilema de um homem, eleito papa de maneira fortuita (um admirável Michel Piccoli, diga-se), que recebeu a nomeação que lhe deveria afetar para sempre a vida pessoal com uma explosão intensa e inesperada de pânico, sofrimento e dor interior, levando-o a ensaiar uma fuga pela vida real – aquela que o leva a deambular por ruas e bares de Roma – e a decidir-se enfim por uma rejeição visceral do cargo ao qual o haviam destinado. E é também uma abordagem comovente da solidão – a daquele homem, mas igualmente a dos cardeais que o escolheram – confrontada com a formalização do lugar social que supostamente deteriam como responsáveis e funcionários maiores do corpo eclesial e da «comunidade dos fiéis».

                Quanto ao argumento que invoca a dimensão abertamente crítica deste filme em relação ao pequeno e complexo mundo da Cúria romana, ela parece-me de todo ausente. A verdade é aqui a oposta, pois a exposição do lado hesitante, infantil e mesquinho, porque humano, dos dignitários romanos, apenas os humaniza. Justamente o contrário daquilo que aconteceria com uma representação dos salões, antecâmaras e corredores do Vaticano enquanto lugares soturnos e de mera intriga palaciana, essa sim a leitura dominante, que poderia ser olhada como uma censura dos processos de gestão interna da Igreja Católica Apostólica Romana. Ora não é isso que Moretti faz neste filme.

                  Artes, Cinema, Ficção

                  Discutir o futuro

                  Marie-Anne de Roumier Robert (1705-71), referida algumas vezes como «escritora feminista francesa», inventou o Reino de Futura no «conto moral» Les Ondins, publicado três anos antes de morrer. Situado não se sabe onde, para se lá chegar tornava-se imprescindível percorrer ao acaso uma estrada longa e repleta de obstáculos. Depois era necessário cruzar oito portas metálicas, a última das quais em ouro, encontrando-se todas elas protegidas por dragões, chamas, gigantes, serpentes aladas, sereias e uma fénix. Transposta a última porta, o viajante deveria então purificar-se atravessando um pequeno lago. Só então poderia penetrar no Reino. A vida que ali encontrava parecia-lhe, num primeiro olhar, justificar todos os trabalhos e sacrifícios pelos quais passara: os habitantes de Futura experimentavam uma imensa e infinita paixão pelo futuro. Mas cedo o viajante percebia os limites daquele aparente bem-estar, pois as constantes discussões sobre as formas que tal futuro tomaria impediam-nos de viverem felizes. Todavia, não sabiam viver sem elas.

                    Cidades, Devaneios, Olhares

                    Uma oportunidade

                    Reds

                    Há já algum tempo que não escrevo sobre os caminhos e as escolhas do Bloco de Esquerda. Não por falta de assunto ou de vontade, mas apenas porque me tem parecido pouco útil alimentar, em época de intenso drama coletivo, o fogo de conflitos menorizados à escala e conservados em lume brando. Tenho, por exemplo, evitado mencionar o lamentável eclipse do debate projetado no período que se seguiu à derrota eleitoral de 5 de Junho, materializado no adiamento de uma Convenção Nacional destinada, não a fazer «rolar cabeças», mas a desenvolver o debate político, a aperfeiçoar a atividade militante, a rever erros e descaminhos. Tenho também passado por distraído ao dar a impressão de não reparar no regresso à desmesura da política de tribuna, adiando, aparentemente sine die, a construção de uma alternativa política lançada no terreno e associada a um movimento de opinião amplo e elástico. Alternativa capaz de iluminar um futuro de combate que não seja meramente protestativo e que tenha uma meta no seu horizonte (uma meta, vinque-se, não um destino, pois sabe-se como a demanda deste deu péssimos resultados no passado). O meu objetivo ao regressar ao tema é, entretanto, menos ambicioso. ler mais deste artigo

                      Atualidade, Opinião

                      O professor de latim

                      «Quosque tandem abutere, Catilina, patientia nostra? Quam diu etiam furor iste tuus nos eludet?» («Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência? Até quando teremos nós de suportar o teu escárnio?») Lembrei-me hoje, por via de uma daquelas figurinhas que nos cabem na administração paroquial ou continental da coisa pública, do velho professor de latim e do seu Cícero. Abria muito os braços, e mais ainda as mãos, e recitava de cor parágrafos completos da agastada e furiosa Oratio in Catilinam. Com tal ênfase que fechava sempre a última frase num violento ataque de tosse. A seguir acendia um cigarro Porto, produzia sucessivos anéis de fumo, e calava-se durante dois ou três minutos enquanto nos recompúnhamos dos efeitos da onda de choque verbal e do mais puro terror. Pensando no prazer que daria responder-lhe na mesma moeda.

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                        Apontamentos, Etc., Olhares

                        As últimas palavras de Nelson

                        Nelson

                        De Horatio Nelson (1758-1805), o almirante britânico que derrotou a esquadra franco-espanhola na batalha de Trafalgar, apesar de nela haver perdido a vida – confirmando então uma supremacia da Royal Navy que haveria de manter-se por mais de cem anos – contam-se pelo menos três versões, alegadamente testemunhais, daquelas que terão sido as suas últimas palavras. De acordo com o cirurgião William Beatty, que o assistiu nas últimas horas, terá repetido insistentemente, até perder a consciência: «Thank God I have done my duty». Já Alexander Scott, o capelão do seu navio-almirante, assegurou que Nelson terá dito antes: «Drink, drink. Fan, fan. Rub, rub». Por fim, alguns dos presentes contaram em algumas ocasiões que, referindo-se a Thomas Hardy, capitão do Victory e seu grande amigo, terá exclamado: «Kiss me, Hardy!». Jamais se conhecerá a verdade, mas qualquer das variantes serve para ler de diferentes modos a biografia e a personalidade de Lord Nelson. Podemos assim optar por um dos desfechos e, em função dele, reescrever todo o enredo.

                          Apontamentos, Devaneios, História

                          A «incidência contributiva»
                          segundo o Xerife de Nottingham

                          No mito de Robin dos Bosques o Xerife de Nottingham era o executante local das exações fiscais determinadas pelo príncipe João, o usurpador do trono do bom mas desaparecido rei Ricardo. Como sabemos que os mitos são sempre uma representação formal de atitudes humanas consagradas pela repetição, não é difícil encontrar, muitos séculos depois do seu desaparecimento, pequenos e médios xerifes que são fiéis continuadores da pura maldade aplicada em nome de quem manda «porque pode».

                          Falo apenas de ilegalidades praticadas arbitrariamente pelos executantes do Estado. Por exemplo, da forma como, recentemente, numerosos contribuintes portugueses foram forçados a aguentar as consequências de execuções fiscais e a pagar coimas por uma ausência de pagamento de impostos devidos da qual não haviam sido previamente informados. Simplificando: não se avisa um bom número de pessoas que está devedor e assim, através do pagamento da inevitável multa, aumentam-se exponencialmente as receitas do Estado. Presumo que tal comportamento valha, aos xerifes espertalhaços que o conceberam e aplicaram, uma merecida comenda. Ou, no mínimo, um louvor. ler mais deste artigo

                            Apontamentos, Atualidade, Devaneios

                            Num filme neorealista

                            Enzo Staiola (Bruno) e Lamberto Maggiorani (Antonio)
                            em «Ladrões de Bicicletas», de Vittorio de Sica (1948)

                            Na minha escola primária, nós, as crianças – apenas rapazes –, dividíamo-nos em quatro grupos que se distinguiam pelos pés. Um, pequeno mas muito expressivo, chegava à escola descalço, mesmo de inverno, usando sacos de sisal para se proteger da chuva e do frio da manhã, e todos os colegas sabiam que aqueles eram os filhos dos pobres, sobrevivendo no limiar da miséria e da caridade. No extremo oposto, outro grupo, igualmente pequeno, usava sapatos de sola de cabedal, sempre a reluzirem e com aspeto de novos: era o dos que vinham de famílias com mais posses e melhores ligações, ou que se faziam passar por tal. No meio, um segundo conjunto de alunos usava calçado velho, de baixa qualidade, por vezes tamancos de madeira. Compunham-no os filhos da gente humilde mas aprumada, que fazia, sabiam Deus e o Diabo como, por se manter à tona, no rebordo da «pobreza honrada». E havia ainda um terceiro, ao qual eu pertencia, naquela escola talvez o maior de todos eles, que era composto pelos mais novos membros de uma classe média que via na poupança a única forma de encarar um futuro sempre imprevisível. Usávamos sapatos apresentáveis aos domingos e dias santos de guarda, que as nossas mães engraxavam com atenção e carinho, reservando para outros dias o calçado mais usado, reforçado com «protetores», pequenas peças de ferro ou de chumbo que serviam para prolongar a vida das solas e das capas dos saltos. Ontem, pela primeira vez em muitos anos, encontrei na vitrina de uma velha loja «protetores» à venda. Fiquei na dúvida sobre se seriam um vestígio arqueológico recuperado ou um sinal dos tempos. Ou se sempre ali estiveram e só agora, condicionado pela realidade, eu reparei neles.

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                              Nem mesmo aos piratas

                              Sinto algumas vezes pelos piratas informáticos uma simpatia idêntica àquela que tenho pelos ladrões do mar. Imagino-os sempre a navegarem num oceano sem lei, procurando, pela via insidiosa do ataque inesperado, bárbaro mas de peito aberto, regado a rum ou cerveja, noitadas e desespero, a vingança frente aos poderosos que os condenaram à errância, à margem e à solidão. Vejo-os pois, no fundo, como depositários de uma certa nobreza, pilhando o oiro dos galeões porque os seus proprietários o roubaram primeiro, impondo, sobre o destino das ondas (ou do éter), um padrão moral que faz deles arautos desafinados, mas arautos, de uma certa justiça poética. Custa-me por isso vê-los rasteiros, velhacos, quando descem ao nível dos que desejam combater. Foi o que me pareceu encontrar na iniciativa dos hackers que há dois dias piratearam a página oficial do Partido Socialista, servindo-se do ato para um ataque vil, grosseiro, pessoal, e não para o combate ilegal mas frontal e com um objetivo percetível. Darem-se a tanto trabalho, a tão arriscada abordagem, para mostrarem «o extrato de uma conta ligada à família de José Sócrates» é como tentar matar alguém pelas costas com um tiro de pólvora seca. Sem honra ou sentido. Tal inépcia não se pode perdoar. Nem mesmo aos piratas.

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                                Mãe-Rússia

                                A sociedade russa tem um problema sério com a democracia. Mesmo tendo perdido parte do eleitorado, o Partido Rússia Unida, que apoia o sinistro Putin, obteve 49,6% dos votos expressos nas eleições legislativas para a Duma. Em segundo lugar ficou o pré-jurássico Partido Comunista, de Guennadi Ziuganov, que alcançou 19,7%. E em terceiro, com 12,2%, o Partido Liberal Democrata, na verdade da extrema-direita nacionalista, dirigido pelo «Le Pen russo», Vladimir Jirinovski. É só fazer as contas: 81,5% dos votantes – e a estes poderiam ainda somar-se algumas franjas vindas de outras forças minoritárias – aspiram a um governo monolítico e autoritário, revelando um menosprezo olímpico pelas virtualidades de uma democracia que, na realidade, jamais conheceram. Intimida constatar que uma boa parte do equilíbrio mundial passa ainda por este universo opaco, administrado por bandos de déspotas ou de candidatos a tal atividade. E que, no país onde, inventado por Piotr Boborykin, nasceu o conceito romântico de intelligentsia como espaço social para a atividade crítica e criativa dos intelectuais, a liberdade é ainda, fundamentalmente, uma quimera, um horizonte literário deixado ao abandono pelos cidadãos. Ou pela esmagadora maioria deles. Foram muitos, muitos anos de «engenharia das almas».

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