Otelo: uma biografia

Otelo

Paulo Moura é um excelente jornalista, de quem sou fiel leitor. Mas esta crítica negativa é condicionada por um imperativo: contornar o nevoeiro que um livro como este pode lançar sobre a imagem pública e a representação histórica da intervenção de Otelo Saraiva de Carvalho. Talvez o resultado pudesse ser outro se o posfácio, que poucos lerão, tivesse sido antes um prefácio, que toda a gente lê. Porque nele o autor aclara algumas das suas escolhas. Estas são, obviamente, tão legítimas quanto discutíveis. E muito discutíveis. Como é possível, por exemplo, compatibilizar um trabalho, descrito como «biográfico», e ainda que não seja «um livro para académicos» (qualificativo pouco preciso nele sugerido como restritivo), com a afirmação de que o autor decidiu ser «mais fiel às recordações do que ao passado»? E se se considera que é uma biografia «narrativa e interpretativa, não crítica», isenta de «juízos de valor», como excluir estes do território das recordações, que nunca sem manifestam sem a subjetividade de quem recorda? Muitos trabalhos sobre a conexão entre história e memória, na relação com a intervenção do testemunho dos atores dos factos vividos, tratam este assunto, procurando soluções que este livro exclui do horizonte. ler mais deste artigo

    Biografias, História, Memória

    Democracia e alternativas

    Os objetivos mais essenciais do documento que abaixo se transcreve e que apoio unem-se à proposta de realização de um Congresso Democrático das Alternativas. A ideia é unir para construir e propor – contra a austeridade pela austeridade, o saque sem precedentes ao Estado Social e a criminalização do trabalho e dos trabalhadores – uma alternativa real de governo. Não se pretende dar lições do quer que seja, mas debater processos de colaboração e de mobilização para a construção de um outro destino que não aquele que a troika nos determina como inevitável. Infelizmente, e para já, o PS e o PCP apenas estão representados por setores minoritários, distantes das atuais direções partidárias. A esperança é, no entanto, que este impulso ajude a superar a tentação de apenas participar no que é possível controlar, promovendo uma aproximação programática que configure uma verdadeira alternativa. Tentar não custa. O resto está por fazer..

    Resgatar Portugal para um futuro decente

    «Só vamos sair da crise empobrecendo”. Este é o programa de quem governa Portugal. Sem que a saída da crise se vislumbre, é já evidente o rasto de empobrecimento que as políticas de austeridade, em nome do cumprimento do acordo com a troika e do serviço da dívida, estão a deixar à sua passagem. Franceses e gregos expressaram, através do voto democrático, o seu repúdio por este caminho e a necessidade de outras políticas. Em Portugal, o discurso da desistência e das “inevitabilidades” continua a impor-se contra a busca responsável de alternativas.

    Portugal continua amarrado a um memorando de entendimento que não é do seu interesse. Que nos rouba a dignidade, a democracia e a capacidade de coletivamente decidirmos o nosso futuro. O Estado e o trabalho estão reféns dos que, enfraquecendo-os, ampliam o seu domínio sobre a vida de todos nós. Estamos a assistir ao mais poderoso processo de transferência de recursos e de poderes para os grandes interesses económico-financeiros registado nas últimas décadas. ler mais deste artigo

      Atualidade, Democracia, Opinião

      Um leitor no futuro «impossível»

      Posso ser acusado de muita coisa pouco abonatória, mas jamais de não gostar de livros. Desde a escola primária, eles acompanham a maior parte do meu tempo – livre ou ocupado – e desde essa altura que mantenho o hábito de carregar sempre um ou dois, às vezes mais, mesmo que anteveja não poder retirar algum tempo para o(s) ler. Além disso, como professor, investigador e crítico, eles são o meu ganha-pão. Como se tal não bastasse, ainda escrevo alguns e, na condição de impenitente viciado, ao longo dos anos tenho vindo a preencher com eles, cada vez em maior quantidade, a maior parte das divisões das casas que vou habitando. Tendo-me desfeito há pouco, justamente por falta de espaço, de cerca de meia centena, guardo ainda assim umas doze ou treze vezes essa quantidade. Continuando sempre a gostar deles, regressando sempre a eles. Não posso, por isso, ser acusado pelos puristas do papel de não amar os livros, de ir como um tolo atrás das modernices eletrónicas, de ter traído a minha própria biografia, perdendo a fidelidade «ao cheiro, ao toque, à beleza» do livro físico e trocando-o pela tentação do digital.

      No entanto, nada disso me impede de conviver com a inevitabilidade de, para as gerações agora a chegarem à universidade, o livro físico ser já, ou tornar-se em breve, um objeto de arquivo, respeitável mas destinado aos especialistas, aos investigadores, aos curiosos, aos colecionadores, mas não ao comum dos cidadãos. Para estes, o conhecimento legado servir-se-á dos suportes que a tecnologia tem vindo a aperfeiçoar ou está a inventar, transformando a forma de ler, de comunicar ou de criar. E isto não é futurologia, como o era ainda quando há cinquenta anos Marshall McLuhan falava do fim da «galáxia de Gutenberg» e há trinta Nicholas Negroponte se entretinha a propor-nos o «paradigma digital». Esta realidade é-me confirmada pelo inventário, que acabo de fazer, dos livros dos quais me tornei feliz proprietário durante os últimos dois anos: sem contar com jornais e revistas, comprei 34 livros tradicionais, em átomos, foram-me ainda oferecidos (a larga maioria por autores ou editores) 57, e comprei… 67 e-books, contando-se entre estes aqueles mais atualizados e diretamente relacionados com o trabalho profissional e os meus interesses diários. Afinal já cheguei ao «futuro previsível», esse que para alguns será «impossível», «jamais acontecerá». E ainda não tinha dado completamente conta disso.

        Atualidade, Cibercultura, Olhares

        Meca por uma agulha

        Em 1853, o explorador inglês Richard F. Burton (1821-1890) foi o primeiro ocidental que entrou em Meca. Fê-lo arriscando a vida – visitar Meca e Medina está proibido aos não-muçulmanos –, apenas pelo prazer de viajar e de conhecer outras maneiras de viver. Eis a sua descrição de algumas das medidas que tomou para cumprir a façanha.

        Além do disfarce de «Mirza Abdullah», tinha «um miswak ou palito» — um galho para limpar os dentes; «um pedaço de sabão e um pente, de madeira, porque osso e casca de tartaruga não são, religiosamente falando, corretos.» Uma muda de roupa, um cantil de pele de cabra, um «tapete de pele grosso, que além de ser cama funcionava como cadeira, mesa e oratório», uma almofada, um cobertor, um grande chapéu de sol amarelo vivo […], uma «dona de casa» (agulhas, linha e botões numa bolsa), um punhal, um tintei­ro e um porta-penas de latão, «e um rosário forte que em certas ocasiões possa ser convertido em arma de defesa.»

        Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madinab and Mecah, 1853
        (citado por Paul Theroux em A Arte da Viagem)

          Apontamentos, Olhares, Recortes

          A imprescindível primavera

          Não cheguei a ter grandes esperanças, e, como toda a gente, agora ainda tenho menos, no futuro promissor das «primaveras árabes». Foi a sua parecença consigo próprios aquilo que muitos ocidentais vislumbraram de positivo nas praças de Tunes e do Cairo, naqueles grupos de jovens de aspeto cosmopolita, de funcionários de barba diligentemente aparada e de mulheres maquilhadas, sexos aliados, telemóveis de última geração, que falavam inglês e gostavam dos mesmos filmes e leituras dos quais gostavam os seus contemporâneos de Estocolmo, Munique ou Quioto. Foi a quimera de um mundo, outro e o mesmo, no qual todos os discursos e compromissos fossem possíveis e aceitáveis. Foi, por momentos, um certo esquecimento da diferença real no ser e no viver daquelas latitudes. Alguns viram até, por aqueles dias e naqueles movimentos, o acordar de utopias perdidas, de projetos abandonados, o regresso à ideia de um mundo feito de entendimentos e de paz. ler mais deste artigo

            Etc.

            Uma manhã na Síria

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            Curta-metragem do jovem realizador sírio Bassel Al Shahade, assassinado em Homs pelas tropas de al-Assad. Num dos massacres que alguns dos habitués da distorção da História dizem não ter acontecido. E que os adversários do não-intervencionismo a qualquer preço fazem por ignorar. Enquanto permaneceu vivo, Bassel foi aliás uma das testemunhas do que estava (e continua neste preciso momento) a acontecer. De notar que poderia ter permanecido a salvo, por se encontrar a estudar nos EUA com uma bolsa Fulbright, tendo decidido regressar ao seu país para cobrir os acontecimentos. Mais informação aqui.

              Apontamentos, Atualidade, Democracia

              Panóptico

              Um paradoxo desdobra-se à nossa frente. De um lado, o progresso muito rápido das técnicas de vigilância que o digital possibilita faz do Estado um Big Brother real. Do outro, o progresso não menos rápido das técnicas de comunicação produz um certo ambiente de transparência. De um lado, as câmaras de vídeo, os instrumentos de geolocalização, as pegadas digitais, genéticas e oculares, os ficheiros bancários, os dossiês médicos, o histórico das nossas chamadas telefónicas, as mensagens na Internet e o rasto das nossas peregrinações pela rede, compõem uma panóplia de instrumentos que permitem às autoridades o estabelecimento de um cerco quase completo da vida pessoal ou mesmo íntima. Do outro, através do Google, do Facebook, do Twitter, entregamo-nos com entusiasmo e sem pudor ao olhar dos outros, confiantes ou não, sem motivo especial ou ávidos de informação.

              As duas dinâmicas poderosas apontam na mesma direção: a construção de uma sociedade da transparência na qual deixámos de saber com precisão onde se situa o limite entre a vida privada e a vida, senão pública, pelo menos disponível aos olhares dos outros. Duvidamos a todo o momento se se trata de uma coisa boa ou maléfica, mas sabemos que em qualquer dos casos está a ocorrer uma transformação enorme. Provavelmente uma mudança de paradigma civilizacional. Assistimos assim à materialização, diante de todos, de três fantasmas projetados respetivamente por Orwell, Kafka e Huxley: a vigilância de todos por um Estado potencialmente omnisciente, a submissão de cada a uma espécie de Olho soberano, do qual não sabemos aquilo que ele sabe de nós, e a alegria, a felicidade, de contribuirmos por iniciativa própria para um avanço até ao que imaginamos, otimistas, como o melhor dos mundos. ler mais deste artigo

                Democracia, Olhares, Opinião

                Ciência e religião

                Em 1978, logo após a sua licença para ensinar teologia na Universidade de Tübingen ter sido anulada pelo Vaticano, Hans Küng passou tempos difíceis. Anos depois contou como o afastamento forçado do ensino e da especulação teológica, eixos da sua vida e dos seus interesses durante tanto tempo, o haviam deixado infeliz e deprimido. Mas reagiria rapidamente, tratando de alargar a investigação e a escrita a temas menos «eclesiásticos», vocacionados para a abordagem teórica da ética e do diálogo interreligioso. Com este O princípio de todas as coisas, publicado inicialmente em 2005, irá revelar ainda uma outra preocupação, fazendo coincidir a sua reconhecida erudição com um sentido intenso de abertura à dúvida e às mudanças do mundo, sempre na sua condição de homem de fé. A voga do interesse mediático pelas obras de assumidos ateus, como Christopher Hitchens, Richard Dawlins e Sam Harris, pretendendo excluir essa fé do domínio da ciência pura, levaram-no aqui a seguir justamente o caminho inverso, esforçando-se por aproximar uma da outra. ler mais deste artigo

                  Anarquia no século 21

                  O fim da ordem bipolar introduzida pela Guerra Fria e o estado de desgraça ao qual na atualidade chegou o capitalismo têm trazido de volta a hipótese da demolição da ordem pública tal qual a conhecemos. Fala-se da «anarquia das ruas», com o pavio acendido em Atenas, causada pela revolta incontida contra o recuo abrupto do Estado social e a falta de horizontes de sobrevivência, mas fala-se também da «anarquia dos mercados», determinada pela incapacidade de alguém prever ou moderar o seu comportamento errático. Todavia, a teoria política e a experiência dos movimentos sociais, não têm promovido o retorno do ideário anarquista ou anarcossindicalista que, desde os meados do século XIX, orientou os primeiros passos da reivindicação operária e ajudou a construir a perceção do futuro de um grande número de filósofos, escritores, artistas e outros atores sociais. Existe de facto um peso, determinado pela domesticação dos partidos da esquerda e dos sindicatos, que esvaziou o velho filão do anarquismo militante, da escola de Bakunine, confinado à cultura antiquada dos militantes saudosos de outros tempos, com bandeiras desbotadas que já não mobilizam, ou, longe deles, a setores de jovens automarginados, que encontram na atitude libertária o arsenal da sua barricada identitária. E, no entanto, como sugere Octavio Alberola, porque não associar o anticapitalismo que a crise fez reemergir a um antiautoritarismo renascido, capaz dar perigosamente voz a quem já não acredita nas burocracias partidárias e sindicais? Eis uma questão levantada, com uma reflexão convincente e propostas à vista, num pequeno livro de M. Ricardo de Sousa (Os Caminhos da Anarquia, da Letra Livre) que anda aí, algo escondido, pelas estantes das livrarias. Apresentado como uma reflexão pessoal «sobre alternativas libertárias em tempos sombrios», levanta uma possibilidade de ressurgimento na luta social que, no contexto presente de gestão crítica das expectativas e das sobrevivências, é de ter em atenção.

                    Apontamentos, Atualidade, Olhares

                    Velha e nova Jerusalém

                    Sebastien Sebag Montefiore

                    Logo no início deste Jerusalém, Simon Sebag Montefiore (n.1965), conhecido principalmente pelo trabalho biográfico sobre Estaline, interroga-se sobre o paradoxo que envolve a cidade: como foi possível a um sítio marginal do ponto de vista económico e estratégico ter-se tornado, e ter permanecido, a capital disputada de uma multiplicidade de imaginários religiosos e políticos? Mais: como foi possível que este papel tenha sido e continue a ser desempenhado pela mesma cidade que, em 1850, Flaubert descreveu como «um ossuário rodeado de muralhas, onde as velhas religiões apodrecem ao sol»? A verdade é que a realidade mais crua foi sempre superada por um lastro histórico e uma tradição cultural que lhe conferiram um estatuto de sacralidade. Ao longo de 3.000 anos, este inscreveu-a, enquanto Cidade Santa de três religiões, no centro das representações e dos interesses de um número indeterminado de humanos. Para estes não se tratava de uma cidade como as outras: ela fora sempre um lugar de espiritualidade e de ação política onde episódios notáveis se sucederam, um lugar por diversas vezes cercado, destruído, partilhado ou simplesmente cortejado por quem dele, real ou simbolicamente, se pretendeu apropriar. ler mais deste artigo

                      Biografias, História, Memória

                      Meter os pés ao caminho

                      Não fazendo parte do seu núcleo impulsionador e redator, fui dos primeiros signatários do «Manifesto para uma Esquerda mais livre». Neste momento, o número de pessoas que assinaram o documento, muitas delas de trajeto e méritos publicamente reconhecidos, já vai em cerca de duas mil e continua a aumentar. A sua localização política é muito plural e a leitura que cada uma delas faz do documento será, por isso, com toda a certeza muito diferenciada. É natural que assim aconteça, dado não se tratar de um programa partidário, de uma plataforma eleitoral ou de um plano para a tomada do poder, mas antes de um conjunto de princípios maleáveis, razoavelmente consensuais para diversas áreas da esquerda não dogmática, destinados – é essa a minha leitura, e foi nessa perspetiva que assinei – a colaborar na procura de estratégias de aproximação e de renovação para uma esquerda dividida. Uma esquerda demasiadas vezes entrincheirada nas suas diferenças e absolutas certezas, como tal sem hipóteses de enfrentar com êxito uma direita que sabe unir-se e incapaz de aplicar a estratégia de mudança que a atual situação do país e da Europa requer. É o princípio de algo, não se saberá ainda bem do quê. Mas em relação a uma coisa podemos desde já ficar com alguma segurança: não servirá para dividir, mas sim para unir, como não servirá para enquadrar, mas para pensar. E não é «contra os partidos», embora admita que estes por si só não bastem para abrir os caminhos da mudança. ler mais deste artigo

                        Atualidade, Olhares, Opinião

                        Na rota de Kolyma

                        Como Auschwitz na rede de campos instalados pelos nazis, Kolyma é sinónimo de morte e sofrimento extremo no interior do universo concentracionário da antiga URSS. O complexo, instalado no glacial extremo-nordeste siberiano, detinha e conserva uma particularidade que marcou o seu destino: o de principal território de mineração do ouro da Rússia. Daí o interesse de Estaline em enviar prisioneiros para as suas minas. Estima-se que entre 1932 e 1956 foram mais de 2 milhões os deportados para o complexo instalado na região. E muito poucos regressaram. Varlam Shalamov foi um dos que sobreviveu e nos intensamente autobiográficos Contos de Kolyma, escritos entre 1953 e 1963 mas reportando-se a uma experiência que vinha dos anos 30, deixou-nos reflexos desse lugar terrível. Décadas depois, relatos e reportagens fotográficas testemunham de uma forma perturbante o silêncio e a desolação desse espaço imenso, um dos mais hostis da Terra, no qual tantas vidas foram rapidamente consumidas, deixando um rastro de dor e sombra que ainda se não extinguiu. Foi por isso que o escritor e jornalista polaco Jacek Hugo-Bader resolveu percorrer de mota os 2 025 quilómetros da rota de Kolyma, que vai de Moscovo a Vladivostok. Ao longo do trajeto, relatado no seu Dziennik Kolymski (Diário de Kolyma), editado na Polónia no ano passado e recenseado na revista francesa Books, todas as pessoas com quem falou conservam uma qualquer ligação familiar ou emocional com aquelas minas que continuam malditas. Quem já leu na íntegra diz que o relato do longo e gélido périplo de Hugo-Bader é espantoso. E principalmente uma reflexão sobre a humanidade num lugar que já foi o da mais impiedosa desumanidade.

                        um outro post relacionado com o tema

                          História, Memória, Olhares

                          O day after

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                          A primeira reação foi de alegria, a segunda de ceticismo, a terceira de esperança. Como pessoa de esquerda, adversário da transformação da realidade europeia num laboratório para a produção de meros exercícios de gestão financeira no interior de um capitalismo retornado ao estado de barbárie, custem eles o que custarem em termos sociais e humanos, não pude deixar de me sentir momentaneamente feliz com a vitória da esquerda francesa reunida em torno da candidatura de François Hollande. Nem com os avanços que essa esquerda anti-austeritarista, projetada à margem das cartilhas dogmáticas pré-Queda do Muro, foi capaz de obter na Grécia.

                          Já como alguém que sabe não serem só os problemas colocados que são complexos e reconhece que as soluções para os superarmos o podem ser ainda mais, não posso deixar de despertar rapidamente do estado de graça e de perceber que o que aí vem irá defraudar muitas das expetativas dos eleitores. Hollande não é propriamente a mola de uma frente unitária contra a ditadura dos mercados, a desigualdade social e o recuo do Estado-providência. Dentro do sistema que domina a economia europeia, as suas tímidas propostas reformistas poucas hipóteses terão de ser aplicadas e de produzir efeitos duradouros. Já o Syriza, é, no contexto grego, um partido do protesto, do descontentamento, o que não assegura capacidade para afirmar aquilo que não tem: uma estratégia de governo e uma saída à vista para os problemas mais dramáticos dos gregos.

                          No entanto, a esperança nasce também das maiores dificuldades. A perceção de que é necessário encontrar uma solução e a pressão dos cidadãos para que tal se faça de forma rápida e com uma gestão de recursos que não seja cega, irão criar condições para que, em França, na Grécia e noutros teatros da crise, novos e melhores caminhos possam ser visados, preparados e percorridos. Não os que levam a Pasárgada, a cidade-ideal da vida boa projetada no conhecido poema de Manuel Bandeira, mas os que alimentam essa dose de esperança necessária a toda a regeneração.

                            Apontamentos, Atualidade, Opinião

                            Média

                            Outra das entradas escritas para o Dicionário das Crises e das Alternativas lançado pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, de parceria com as Edições Almedina, a revista Visão e o Jornal de Letras. Ainda em alguns quiosques.

                            Até à década de 1960, média designava um campo integrador dos «meios de comunicação de massas» enquanto instrumentos de propaganda destinados a impor uma mensagem de natureza política ou publicitária. Nos anos 70 essa perspetiva foi alargada, percebendo-se que a dimensão instrumental não indicava apenas aos públicos o modo como estes deveriam pensar, mas incorporava também a aptidão para impor aquilo em que eles deveriam ou não pensar. Neste sentido, os média têm funcionado como aparelhos de subordinação dos cidadãos a formas de perceção do real social e do curso da História que escapam à intervenção da crítica, não sendo acidental que as piores formas de opressão, instaladas nos regimes de pendor totalitário mas também nas fissuras das democracias, recorram a eles para impor o seu domínio e eliminar a divergência. A ideia de «indústria cultural», proposta por Adorno e por Horkheimer, referia já o modo como a instauração de um dado fluxo de informação servia de instrumento de propagação da ideologia dominante, dando lugar a uma uniformização dos quadros de pensamento e dos comportamentos, no sentido da aceitação ordeira do capitalismo. Para Baudrillard, o peso do signo na «sociedade de consumo» irá, por sua vez, suscitar uma vertigem de natureza opressiva. A vulgarização da televisão, e depois a disseminação da Internet, crescentemente dependentes da intervenção dos grupos financeiros e também dos governos, irão reforçar este papel de manipulação e controlo, impondo, perante o recuo do jornalismo de combate, um ruído que ao mesmo tempo silencia. No presente contexto de crise, este tende a difundir a convicção de que não existe escolha perante os desmandos do sistema, o qual poderá quanto muito ser reabilitado. A capacidade da rede mundial de computadores integra, porém, uma forte dimensão democrática e libertária que tem servido a circulação de informação (veja-se o caso Wikileaks), o debate político, a mobilização do protesto e a perceção da possibilidade de uma mudança mais profunda, contornando os média tradicionais, eles próprios forçados a repensar-se.

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                              Mulheres com M

                              Tem sido boa a repercussão pública do ensaio Humilhação e Glória, de Helena Vasconcelos. Sendo inteiramente merecido, esse eco deve, no entanto, ser confrontado com algumas dúvidas que a leitura da obra levanta. É desde logo evidente a intenção da autora de conceber o livro como uma introdução à história das mulheres, concebida de forma atraente e vocacionada principalmente para o leitor comum. Ele vem preencher, aliás, na linha do que fez em Espanha Rosa Montero com o seu Histórias de Mulheres, uma lacuna na edição nacional. Ao mesmo tempo, a autora propõe um importante trabalho de resgate efetuado sobre os feitos e os trajetos públicos de um conjunto de mulheres, principalmente portuguesas, com papéis na literatura, nas artes, nas ciências ou na intervenção cívica que têm permanecido injustamente esquecidos ou na sombra. Se a Marquesa de Alorna é, pelo menos nos meios académicos, razoavelmente conhecida, poucos terão ouvido falar, por exemplo, de Teresa Margarida da Silva Orta, apesar de esta ter sido a primeira portuguesa a escrever um romance (As Aventuras de Diófenes, de 1752). Atravessa também o livro uma brisa de otimismo que contribui, sem dúvida, para ampliar o seu papel de instrumento destinado a sublinhar a importância de um trajeto histórico de combate pela emancipação e de afirmação positiva da voz das mulheres.

                              Uma leitura crítica levanta, porém, algumas perplexidades. Anoto três. Em primeiro lugar, a consideração de eventos e práticas originários de distintos tempos e lugares como se inscritos num percurso único, visando uma espécie destino trans-histórico comum. Em segundo lugar, a falta das propostas, dos problemas e dos combates que se levantaram, a partir da década de 1980, no contexto do chamado feminismo de terceira vaga, ficando as alusões canónicas pelas pelas autoras de segunda vaga (Simone de Beauvoir, Elaine Showalter, Betty Friedman e outras). E em terceiro o tom quase celebratório, em relação à situação atual de uma «tendência para a igualdade» que estudos no campo da sociologia e da ciência política têm vindo a desmontar, revelando, ao invés, que este padrão de discurso pode validar subordinações reais, aparentemente invisíveis. Pode ainda, entretanto, levantar-se uma última objeção que parecendo apenas formal, de facto o não é. A designação de um enquadramento do ensaio, enquanto género, no campo dos estudos «femininos» – e não «sobre as mulheres», ou «feministas», como são catalogados dentro de um universo hoje já bastante alargado, inclusivamente em Portugal, que se dedica ao seu estudo nos domínios da investigação de ponta e do debate teórico – advém de uma escolha da autora que sendo inteiramente legítima, respeitável, pode também ser questionada por dar a impressão de advir de uma noção essencialista sobre o «belo sexo» derivada de um modelo cultural dominantemente masculino. Um livro bastante útil e recomendável que convirá ler com alguma vigilância crítica.

                              Helena Vasconcelos, Humilhação e Glória. O acidentado percurso de algumas mulheres singulares. Quetzal. 328 págs.Versão revista de nota saída na LER de Abril.

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                                Nem só de pão

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                                A propósito das cenas violentas e completamente degradantes provocadas pela campanha de descontos do Pingo Doce, não parece justo culpar apenas a atitude canalha da empresa de Jerónimo Martins, ao servir-se do feriado do Primeiro de Maio para desencadear a sua campanha de publicidade agressiva, manipulando as carências das pessoas e provocando os seus próprios trabalhadores. Como não será correto culpar os largos milhares de famílias que para sobreviverem à crise foram até à selva das prateleiras lutar corpo a corpo por escassas centenas de euros. Para sermos justos, e entendermos o que aconteceu de um modo mais completo, precisamos olhar também para a atitude continuada dos partidos políticos e de muitas organizações sindicais que têm desenvolvido a sua ação exclusivamente centradas numa política de interesses, na gestão economicista do deve e do haver de todos e de cada um. Fazendo-o sem atenderem à defesa da consciência cívica como princípio de solidariedade, da honra individual como eixo da vida coletiva, da (voltemos sem medo à palavra) ideologia como instrumento de mobilização e de mudança. Marx dizia que a consciência política do operário – alarguemos: do trabalhador, do cidadão – não se mede apenas pelo tamanho do porta-moedas. Talvez o que aconteceu se deva, em boa parte, ao esquecimento de que nem só de pão vivemos.

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