O louco da aldeia

Solidão

Discriminado pelo comportamento ou pela fala, em cada pequena comunidade é o «louco» quem anuncia as verdades que muitos reconhecem mas ninguém verbaliza fora do domínio do privado. Na aldeia, na pequena vila, na cidade provinciana, é fácil identificá-lo pela presença diária, pela estranheza do comportamento, pelo estatuto de marginalidade. Ele pode ser o doido, o beberrão, o velho que perdeu o tino, o pobre de pedir, o vagabundo, o sem-abrigo, a prostituta entrada na idade. No limite, pode também ser o poeta, o artista, ou aquele que aspira a sê-lo, principalmente se não detiver algum reconhecimento público. Se o tiver, caso raro, ganha então o estatuto de excêntrico, sinalizando uma promoção social.

Esses «loucos» eram particularmente visíveis em sociedades nas quais o Estado-Providência faltava ou falhava: em Portugal, antes da Revolução de Abril, quando os mecanismos de apoio social eram escassos ou nulos, era vê-los de manhã, esperando em grupo que as tascas abrissem, pedindo esmola nos adros das igrejas, deambulando pelas ruas para servirem de divertimento dos que se julgavam integrados e sãos de espírito. O jornal da terra erguia-os como figura local «típica», supostamente única, como vulto curioso, um pouco cómico e extravagante, a quem se deveriam dar uns trocos para que pudessem continuar a viver e deixassem os outros em paz. E quando enfim morriam, tinham reservado um parágrafo de obituário, que assinalava para memória futura, num último assomo de indignidade, o trilho de uma vida de desterro, desconsolo e abandono.

    Apontamentos, Democracia, Olhares

    Para sair do labirinto

    Para além de ser um dos nossos mais importantes medievalistas, José Mattoso é também um historiador que não tem vivido a sua profissão como um espartilho, refletindo sobre domínios que se cruzam com os caminhos do contemporâneo e a experiência da cidadania. Comprovam-no os quinze ensaios escritos ao longo das últimas quase duas décadas que este Levantar o Céu reúne. Fá-lo adotando uma busca de sentidos, apoiada sempre numa reflexão muito pessoal, para essa «sabedoria verdadeira» que jamais se mostra à primeira vista, sendo por isso necessário «desejá-la, compreendê-la, descobri-la», aceitando que ela «não explica nada, explica-se». O título é pois uma declaração de intenções: se «levantar o céu» impõe a vontade de desvendar a relação entre o ideal que este representa e a materialidade da vida terrena, como possível via para perceber a mudança na ordem do mundo, já compreender o percurso labiríntico para alcançar a sabedoria é o mote que acompanha estes textos. A bússola oferece-a Mattoso no encontro, tantas vezes julgado como um inevitável desencontro, ou no equilíbrio que pessoalmente sempre procurou obter, entre fé e razão. O ceticismo do qual em alguns momentos nos dá conta apenas reforça esse sentido de procura. ler mais deste artigo

      Atualidade, História

      Ai Angola!

      Reprodução de um documento, disseminado através do Facebook, que justifica o maior eco possível. Testemunho tristemente exemplar do comportamento arbitrário do regime de Luanda. E afronta às longas décadas de luta de tantos angolanos pela democracia e pela independência do seu grande país.

        Apontamentos, Democracia, Olhares

        Da crise da esquerda

         

        Orwell escreveu certa vez que o que atrai as pessoas comuns, ou pelo menos muitas delas, para o socialismo, e as deixa «dispostas a arriscar a pele por ele», é a ideia de igualdade. Até há pouco diríamos que a hipótese de morrer por uma causa corresponderia, nesta Europa tão descrente saída do descalabro das ideologias e do termo da Guerra Fria, a um círculo restrito de combatentes pautados por um desespero quixotesco e fora de moda. Mas a reinstalação da desigualdade à qual assistimos nos últimos tempos está a inverter rapidamente a situação: perante o colapso dos mercados, do capitalismo e da democracia parlamentar tal como os conhecemos, o retorno da política dos extremos pode trazer de volta essa atitude-limite que associa uma causa insurgente ao sentido da vida, militante e radical, de um número crescente de pessoas, reinstalando a violência insurrecional como necessidade. Num dos seus derradeiros livros, Tony Judt alertou para a transformação de «sociedades grotescamente desiguais» em sociedades instáveis, dividindo-se através de conflitos internos, cada vez maiores, mais insanáveis, que terminam geralmente «com desfechos não democráticos». Mas só se percebe verdadeiramente a mensagem de Judt se se tiver em linha de conta a sua proposta de ultrapassagem das anestesiantes fantasias de prosperidade e progresso individual, sugerindo um retorno a essa matriz original da social-democracia assente na convicção do papel regenerador da liberdade política, da justiça social e da ação coletiva.

        No pequeno ensaio militante A Crise da Esquerda Europeia (D. Quixote), Alfredo Barroso coloca o dedo na mesma ferida, questionando a deriva neoliberal e individualista dos partidos socialistas e social-democratas europeus – o PS português claramente incluído entre eles – e o facto de, perante crises económicas e financeiras cada vez mais graves provocadas pela desregulação do capitalismo, não se ter erguido neste campo «uma forte reação política e um sobressalto ideológico». A razão terá sem dúvida a ver com uma alteração do código genético desses partidos: controlados por círculos de natureza essencialmente tecnocrática, penetrados pela clientelagem, seduzidos durante muito tempo pela sereia de um «desenvolvimento económico» endeusado, que supostamente a todos traria o bem-estar, preferiram aliar-se à direita, ou copiar acriticamente o comportamento desta. Em vez de se aproximarem mais naturalmente da restante esquerda, passaram a queixar-se do sectarismo que a imobiliza sem mexerem um dedo para o tentarem perceber e ajudar a diluir. A situação atual, de intenso questionamento do modelo de desenvolvimento adotado, parece ser, nesta área política, uma porta para outras possibilidades. O livro de Barroso, que merece ser lido, considera-a absolutamente necessária.

          Atualidade, Opinião

          Otelo: uma biografia

          Otelo

          Paulo Moura é um excelente jornalista, de quem sou fiel leitor. Mas esta crítica negativa é condicionada por um imperativo: contornar o nevoeiro que um livro como este pode lançar sobre a imagem pública e a representação histórica da intervenção de Otelo Saraiva de Carvalho. Talvez o resultado pudesse ser outro se o posfácio, que poucos lerão, tivesse sido antes um prefácio, que toda a gente lê. Porque nele o autor aclara algumas das suas escolhas. Estas são, obviamente, tão legítimas quanto discutíveis. E muito discutíveis. Como é possível, por exemplo, compatibilizar um trabalho, descrito como «biográfico», e ainda que não seja «um livro para académicos» (qualificativo pouco preciso nele sugerido como restritivo), com a afirmação de que o autor decidiu ser «mais fiel às recordações do que ao passado»? E se se considera que é uma biografia «narrativa e interpretativa, não crítica», isenta de «juízos de valor», como excluir estes do território das recordações, que nunca sem manifestam sem a subjetividade de quem recorda? Muitos trabalhos sobre a conexão entre história e memória, na relação com a intervenção do testemunho dos atores dos factos vividos, tratam este assunto, procurando soluções que este livro exclui do horizonte. ler mais deste artigo

            Biografias, História, Memória

            Democracia e alternativas

            Os objetivos mais essenciais do documento que abaixo se transcreve e que apoio unem-se à proposta de realização de um Congresso Democrático das Alternativas. A ideia é unir para construir e propor – contra a austeridade pela austeridade, o saque sem precedentes ao Estado Social e a criminalização do trabalho e dos trabalhadores – uma alternativa real de governo. Não se pretende dar lições do quer que seja, mas debater processos de colaboração e de mobilização para a construção de um outro destino que não aquele que a troika nos determina como inevitável. Infelizmente, e para já, o PS e o PCP apenas estão representados por setores minoritários, distantes das atuais direções partidárias. A esperança é, no entanto, que este impulso ajude a superar a tentação de apenas participar no que é possível controlar, promovendo uma aproximação programática que configure uma verdadeira alternativa. Tentar não custa. O resto está por fazer..

            Resgatar Portugal para um futuro decente

            «Só vamos sair da crise empobrecendo”. Este é o programa de quem governa Portugal. Sem que a saída da crise se vislumbre, é já evidente o rasto de empobrecimento que as políticas de austeridade, em nome do cumprimento do acordo com a troika e do serviço da dívida, estão a deixar à sua passagem. Franceses e gregos expressaram, através do voto democrático, o seu repúdio por este caminho e a necessidade de outras políticas. Em Portugal, o discurso da desistência e das “inevitabilidades” continua a impor-se contra a busca responsável de alternativas.

            Portugal continua amarrado a um memorando de entendimento que não é do seu interesse. Que nos rouba a dignidade, a democracia e a capacidade de coletivamente decidirmos o nosso futuro. O Estado e o trabalho estão reféns dos que, enfraquecendo-os, ampliam o seu domínio sobre a vida de todos nós. Estamos a assistir ao mais poderoso processo de transferência de recursos e de poderes para os grandes interesses económico-financeiros registado nas últimas décadas. ler mais deste artigo

              Atualidade, Democracia, Opinião

              Um leitor no futuro «impossível»

              Posso ser acusado de muita coisa pouco abonatória, mas jamais de não gostar de livros. Desde a escola primária, eles acompanham a maior parte do meu tempo – livre ou ocupado – e desde essa altura que mantenho o hábito de carregar sempre um ou dois, às vezes mais, mesmo que anteveja não poder retirar algum tempo para o(s) ler. Além disso, como professor, investigador e crítico, eles são o meu ganha-pão. Como se tal não bastasse, ainda escrevo alguns e, na condição de impenitente viciado, ao longo dos anos tenho vindo a preencher com eles, cada vez em maior quantidade, a maior parte das divisões das casas que vou habitando. Tendo-me desfeito há pouco, justamente por falta de espaço, de cerca de meia centena, guardo ainda assim umas doze ou treze vezes essa quantidade. Continuando sempre a gostar deles, regressando sempre a eles. Não posso, por isso, ser acusado pelos puristas do papel de não amar os livros, de ir como um tolo atrás das modernices eletrónicas, de ter traído a minha própria biografia, perdendo a fidelidade «ao cheiro, ao toque, à beleza» do livro físico e trocando-o pela tentação do digital.

              No entanto, nada disso me impede de conviver com a inevitabilidade de, para as gerações agora a chegarem à universidade, o livro físico ser já, ou tornar-se em breve, um objeto de arquivo, respeitável mas destinado aos especialistas, aos investigadores, aos curiosos, aos colecionadores, mas não ao comum dos cidadãos. Para estes, o conhecimento legado servir-se-á dos suportes que a tecnologia tem vindo a aperfeiçoar ou está a inventar, transformando a forma de ler, de comunicar ou de criar. E isto não é futurologia, como o era ainda quando há cinquenta anos Marshall McLuhan falava do fim da «galáxia de Gutenberg» e há trinta Nicholas Negroponte se entretinha a propor-nos o «paradigma digital». Esta realidade é-me confirmada pelo inventário, que acabo de fazer, dos livros dos quais me tornei feliz proprietário durante os últimos dois anos: sem contar com jornais e revistas, comprei 34 livros tradicionais, em átomos, foram-me ainda oferecidos (a larga maioria por autores ou editores) 57, e comprei… 67 e-books, contando-se entre estes aqueles mais atualizados e diretamente relacionados com o trabalho profissional e os meus interesses diários. Afinal já cheguei ao «futuro previsível», esse que para alguns será «impossível», «jamais acontecerá». E ainda não tinha dado completamente conta disso.

                Atualidade, Cibercultura, Olhares

                Meca por uma agulha

                Em 1853, o explorador inglês Richard F. Burton (1821-1890) foi o primeiro ocidental que entrou em Meca. Fê-lo arriscando a vida – visitar Meca e Medina está proibido aos não-muçulmanos –, apenas pelo prazer de viajar e de conhecer outras maneiras de viver. Eis a sua descrição de algumas das medidas que tomou para cumprir a façanha.

                Além do disfarce de «Mirza Abdullah», tinha «um miswak ou palito» — um galho para limpar os dentes; «um pedaço de sabão e um pente, de madeira, porque osso e casca de tartaruga não são, religiosamente falando, corretos.» Uma muda de roupa, um cantil de pele de cabra, um «tapete de pele grosso, que além de ser cama funcionava como cadeira, mesa e oratório», uma almofada, um cobertor, um grande chapéu de sol amarelo vivo […], uma «dona de casa» (agulhas, linha e botões numa bolsa), um punhal, um tintei­ro e um porta-penas de latão, «e um rosário forte que em certas ocasiões possa ser convertido em arma de defesa.»

                Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madinab and Mecah, 1853
                (citado por Paul Theroux em A Arte da Viagem)

                  Apontamentos, Olhares, Recortes

                  A imprescindível primavera

                  Não cheguei a ter grandes esperanças, e, como toda a gente, agora ainda tenho menos, no futuro promissor das «primaveras árabes». Foi a sua parecença consigo próprios aquilo que muitos ocidentais vislumbraram de positivo nas praças de Tunes e do Cairo, naqueles grupos de jovens de aspeto cosmopolita, de funcionários de barba diligentemente aparada e de mulheres maquilhadas, sexos aliados, telemóveis de última geração, que falavam inglês e gostavam dos mesmos filmes e leituras dos quais gostavam os seus contemporâneos de Estocolmo, Munique ou Quioto. Foi a quimera de um mundo, outro e o mesmo, no qual todos os discursos e compromissos fossem possíveis e aceitáveis. Foi, por momentos, um certo esquecimento da diferença real no ser e no viver daquelas latitudes. Alguns viram até, por aqueles dias e naqueles movimentos, o acordar de utopias perdidas, de projetos abandonados, o regresso à ideia de um mundo feito de entendimentos e de paz. ler mais deste artigo

                    Etc.

                    Uma manhã na Síria

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                    Curta-metragem do jovem realizador sírio Bassel Al Shahade, assassinado em Homs pelas tropas de al-Assad. Num dos massacres que alguns dos habitués da distorção da História dizem não ter acontecido. E que os adversários do não-intervencionismo a qualquer preço fazem por ignorar. Enquanto permaneceu vivo, Bassel foi aliás uma das testemunhas do que estava (e continua neste preciso momento) a acontecer. De notar que poderia ter permanecido a salvo, por se encontrar a estudar nos EUA com uma bolsa Fulbright, tendo decidido regressar ao seu país para cobrir os acontecimentos. Mais informação aqui.

                      Apontamentos, Atualidade, Democracia

                      Panóptico

                      Um paradoxo desdobra-se à nossa frente. De um lado, o progresso muito rápido das técnicas de vigilância que o digital possibilita faz do Estado um Big Brother real. Do outro, o progresso não menos rápido das técnicas de comunicação produz um certo ambiente de transparência. De um lado, as câmaras de vídeo, os instrumentos de geolocalização, as pegadas digitais, genéticas e oculares, os ficheiros bancários, os dossiês médicos, o histórico das nossas chamadas telefónicas, as mensagens na Internet e o rasto das nossas peregrinações pela rede, compõem uma panóplia de instrumentos que permitem às autoridades o estabelecimento de um cerco quase completo da vida pessoal ou mesmo íntima. Do outro, através do Google, do Facebook, do Twitter, entregamo-nos com entusiasmo e sem pudor ao olhar dos outros, confiantes ou não, sem motivo especial ou ávidos de informação.

                      As duas dinâmicas poderosas apontam na mesma direção: a construção de uma sociedade da transparência na qual deixámos de saber com precisão onde se situa o limite entre a vida privada e a vida, senão pública, pelo menos disponível aos olhares dos outros. Duvidamos a todo o momento se se trata de uma coisa boa ou maléfica, mas sabemos que em qualquer dos casos está a ocorrer uma transformação enorme. Provavelmente uma mudança de paradigma civilizacional. Assistimos assim à materialização, diante de todos, de três fantasmas projetados respetivamente por Orwell, Kafka e Huxley: a vigilância de todos por um Estado potencialmente omnisciente, a submissão de cada a uma espécie de Olho soberano, do qual não sabemos aquilo que ele sabe de nós, e a alegria, a felicidade, de contribuirmos por iniciativa própria para um avanço até ao que imaginamos, otimistas, como o melhor dos mundos. ler mais deste artigo

                        Democracia, Olhares, Opinião

                        Ciência e religião

                        Em 1978, logo após a sua licença para ensinar teologia na Universidade de Tübingen ter sido anulada pelo Vaticano, Hans Küng passou tempos difíceis. Anos depois contou como o afastamento forçado do ensino e da especulação teológica, eixos da sua vida e dos seus interesses durante tanto tempo, o haviam deixado infeliz e deprimido. Mas reagiria rapidamente, tratando de alargar a investigação e a escrita a temas menos «eclesiásticos», vocacionados para a abordagem teórica da ética e do diálogo interreligioso. Com este O princípio de todas as coisas, publicado inicialmente em 2005, irá revelar ainda uma outra preocupação, fazendo coincidir a sua reconhecida erudição com um sentido intenso de abertura à dúvida e às mudanças do mundo, sempre na sua condição de homem de fé. A voga do interesse mediático pelas obras de assumidos ateus, como Christopher Hitchens, Richard Dawlins e Sam Harris, pretendendo excluir essa fé do domínio da ciência pura, levaram-no aqui a seguir justamente o caminho inverso, esforçando-se por aproximar uma da outra. ler mais deste artigo

                          Anarquia no século 21

                          O fim da ordem bipolar introduzida pela Guerra Fria e o estado de desgraça ao qual na atualidade chegou o capitalismo têm trazido de volta a hipótese da demolição da ordem pública tal qual a conhecemos. Fala-se da «anarquia das ruas», com o pavio acendido em Atenas, causada pela revolta incontida contra o recuo abrupto do Estado social e a falta de horizontes de sobrevivência, mas fala-se também da «anarquia dos mercados», determinada pela incapacidade de alguém prever ou moderar o seu comportamento errático. Todavia, a teoria política e a experiência dos movimentos sociais, não têm promovido o retorno do ideário anarquista ou anarcossindicalista que, desde os meados do século XIX, orientou os primeiros passos da reivindicação operária e ajudou a construir a perceção do futuro de um grande número de filósofos, escritores, artistas e outros atores sociais. Existe de facto um peso, determinado pela domesticação dos partidos da esquerda e dos sindicatos, que esvaziou o velho filão do anarquismo militante, da escola de Bakunine, confinado à cultura antiquada dos militantes saudosos de outros tempos, com bandeiras desbotadas que já não mobilizam, ou, longe deles, a setores de jovens automarginados, que encontram na atitude libertária o arsenal da sua barricada identitária. E, no entanto, como sugere Octavio Alberola, porque não associar o anticapitalismo que a crise fez reemergir a um antiautoritarismo renascido, capaz dar perigosamente voz a quem já não acredita nas burocracias partidárias e sindicais? Eis uma questão levantada, com uma reflexão convincente e propostas à vista, num pequeno livro de M. Ricardo de Sousa (Os Caminhos da Anarquia, da Letra Livre) que anda aí, algo escondido, pelas estantes das livrarias. Apresentado como uma reflexão pessoal «sobre alternativas libertárias em tempos sombrios», levanta uma possibilidade de ressurgimento na luta social que, no contexto presente de gestão crítica das expectativas e das sobrevivências, é de ter em atenção.

                            Apontamentos, Atualidade, Olhares

                            Velha e nova Jerusalém

                            Sebastien Sebag Montefiore

                            Logo no início deste Jerusalém, Simon Sebag Montefiore (n.1965), conhecido principalmente pelo trabalho biográfico sobre Estaline, interroga-se sobre o paradoxo que envolve a cidade: como foi possível a um sítio marginal do ponto de vista económico e estratégico ter-se tornado, e ter permanecido, a capital disputada de uma multiplicidade de imaginários religiosos e políticos? Mais: como foi possível que este papel tenha sido e continue a ser desempenhado pela mesma cidade que, em 1850, Flaubert descreveu como «um ossuário rodeado de muralhas, onde as velhas religiões apodrecem ao sol»? A verdade é que a realidade mais crua foi sempre superada por um lastro histórico e uma tradição cultural que lhe conferiram um estatuto de sacralidade. Ao longo de 3.000 anos, este inscreveu-a, enquanto Cidade Santa de três religiões, no centro das representações e dos interesses de um número indeterminado de humanos. Para estes não se tratava de uma cidade como as outras: ela fora sempre um lugar de espiritualidade e de ação política onde episódios notáveis se sucederam, um lugar por diversas vezes cercado, destruído, partilhado ou simplesmente cortejado por quem dele, real ou simbolicamente, se pretendeu apropriar. ler mais deste artigo

                              Biografias, História, Memória

                              Meter os pés ao caminho

                              Não fazendo parte do seu núcleo impulsionador e redator, fui dos primeiros signatários do «Manifesto para uma Esquerda mais livre». Neste momento, o número de pessoas que assinaram o documento, muitas delas de trajeto e méritos publicamente reconhecidos, já vai em cerca de duas mil e continua a aumentar. A sua localização política é muito plural e a leitura que cada uma delas faz do documento será, por isso, com toda a certeza muito diferenciada. É natural que assim aconteça, dado não se tratar de um programa partidário, de uma plataforma eleitoral ou de um plano para a tomada do poder, mas antes de um conjunto de princípios maleáveis, razoavelmente consensuais para diversas áreas da esquerda não dogmática, destinados – é essa a minha leitura, e foi nessa perspetiva que assinei – a colaborar na procura de estratégias de aproximação e de renovação para uma esquerda dividida. Uma esquerda demasiadas vezes entrincheirada nas suas diferenças e absolutas certezas, como tal sem hipóteses de enfrentar com êxito uma direita que sabe unir-se e incapaz de aplicar a estratégia de mudança que a atual situação do país e da Europa requer. É o princípio de algo, não se saberá ainda bem do quê. Mas em relação a uma coisa podemos desde já ficar com alguma segurança: não servirá para dividir, mas sim para unir, como não servirá para enquadrar, mas para pensar. E não é «contra os partidos», embora admita que estes por si só não bastem para abrir os caminhos da mudança. ler mais deste artigo

                                Atualidade, Olhares, Opinião

                                Na rota de Kolyma

                                Como Auschwitz na rede de campos instalados pelos nazis, Kolyma é sinónimo de morte e sofrimento extremo no interior do universo concentracionário da antiga URSS. O complexo, instalado no glacial extremo-nordeste siberiano, detinha e conserva uma particularidade que marcou o seu destino: o de principal território de mineração do ouro da Rússia. Daí o interesse de Estaline em enviar prisioneiros para as suas minas. Estima-se que entre 1932 e 1956 foram mais de 2 milhões os deportados para o complexo instalado na região. E muito poucos regressaram. Varlam Shalamov foi um dos que sobreviveu e nos intensamente autobiográficos Contos de Kolyma, escritos entre 1953 e 1963 mas reportando-se a uma experiência que vinha dos anos 30, deixou-nos reflexos desse lugar terrível. Décadas depois, relatos e reportagens fotográficas testemunham de uma forma perturbante o silêncio e a desolação desse espaço imenso, um dos mais hostis da Terra, no qual tantas vidas foram rapidamente consumidas, deixando um rastro de dor e sombra que ainda se não extinguiu. Foi por isso que o escritor e jornalista polaco Jacek Hugo-Bader resolveu percorrer de mota os 2 025 quilómetros da rota de Kolyma, que vai de Moscovo a Vladivostok. Ao longo do trajeto, relatado no seu Dziennik Kolymski (Diário de Kolyma), editado na Polónia no ano passado e recenseado na revista francesa Books, todas as pessoas com quem falou conservam uma qualquer ligação familiar ou emocional com aquelas minas que continuam malditas. Quem já leu na íntegra diz que o relato do longo e gélido périplo de Hugo-Bader é espantoso. E principalmente uma reflexão sobre a humanidade num lugar que já foi o da mais impiedosa desumanidade.

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                                  História, Memória, Olhares