Backbeat, por Jazzy Lemon.
Walter, judeu-alemão
Morto (ou suicidado) em 1940, quando procurava escapar aos nazis, Walter Benjamin foi talvez o menos previsível dos marxistas do seu tempo, a ovelha negra de uma família que na altura se encontrava razoavelmente unida. Foi ensaísta, crítico literário, filósofo, tradutor, sociólogo, jornalista e radialista. Nos interesses e na experiência misturou literatura e reflexão filosófica, religião e secularismo, esquerda e misticismo. Combinou o idealismo alemão com o materialismo histórico, o desespero com a criatividade, a teoria com a vida. Especializado em Goethe, Balzac, Proust, Kafka e Baudelaire, mas interessado também, sempre, em miudezas, em atividades fúteis e em coisas vulgares. Perseguidor de brinquedos, livros infantis, barcos e viagens. E ocupado com mulheres impossíveis, o que não é de somenos. Gershom Scholem, o teórico do misticismo judaico, considerava-o um espírito muito especial, mas não entendia porque se relacionava ele com «todos aqueles esquerdistas». Brecht admirava-o, mas nunca conseguiu perceber que raio de conversas poderia ter ele com «todos aqueles místicos». Foi no entanto essa complexidade que o salvou do esquecimento e o fez nosso, como auxiliar da autonomia do pensamento e da ação, como exemplo da capacidade e da necessidade do desencanto perante o encantamento que escraviza.
Paraíso sobre os telhados

Será um dia tranquilo, de luz fria
como o sol que nasce ou que morre, e o vidro
fechará por fora o ar sórdido.
Acorda-se uma manhã, de uma vez para sempre,
na tepidez do último sono:
a sombra será como a tepidez. Encherá o quarto
pela grande janela um céu mais vasto.
Da escada subida um dia para sempre
não virão mais vozes nem rostos mortos.
Não será preciso deixar a cama.
Só a aurora entrará no quarto vazio.
Bastará a janela para vestir cada coisa
de uma claridade tranquila, quase uma luz.
Pousará uma sombra descarnada no rosto supino.
As recordações serão coágulos de sombra
calcados quais velhas brasas
na chaminé. A recordação será a chama
que ainda ontem picava nos olhos apagados.
Cesare Pavese – De Paternidade
(Trad. de Carlos Leite)
Depois da Revolução Laranja
Fotografia de Oleksandr Hnatenko.
Laranja limão

Confiando naquilo que Nathaniel Hawthorne contava de Charles Fourier em The Blithdale Romance, este acreditava que o fulgurante e inevitável progresso da humanidade rumo à perfeição faria com que um dia o mar passasse a saber a limão. O fascínio da imaginação utópica assenta em operações e convicções desta natureza, que auguram um futuro de absolutos, programados e construídos à imagem dos desejos e da indeterminada determinação de quem os projecta. Os obstáculos apenas surgem quando os fabricantes de utopias por medida fixam a exata percentagem do açúcar, do ácido cítrico e do sódio da água marítima. Condenando a um degredo sem regresso, os infames, todo o sabor a laranja.
O olhar fotográfico
Desde a primeva visão gravada por Joseph Nicéphore Niépce, em 1826, a partir da varanda da sua casa em Vincennes, a fotografia testemunha a dimensão expressiva do silêncio. Sinal primário da arte fotográfica, a suspensão no tempo da imagem captada com a câmara retira o fotografado do tumulto dos dias, complexificando e alterando a sua primitiva e mais simples conformação simbólica. O trabalho do silêncio intervém assim na construção de sentidos que de outro modo permaneceriam indizíveis. Roland Barthes falava, em A Câmara Clara, de um «saber fotográfico» absolutamente único e intraduzível. Palavra alguma o pode explicar. Resta-nos olhar. Olhar sempre.
Nómada

Kenneth White salienta, em O Espírito Nómada, a grandeza possível, infinita e insaciável, da viagem que resulta mais da atitude de quem a busca que do movimento de quem a cumpre.
Os nómadas não têm história, têm uma geografia e essa geografia, que tem lugar no «espaço plano» das estepes, escreve-se por meio de uma «linha criativa de fuga» caracterizada pela rapidez, uma rapidez «fora da lei», mas no fluxo, fora do âmbito da «máquina racional administrativa», seguindo as correntes de energia. (…) Não que seja em absoluto necessário passarmos todo o nosso tempo a viajar, como Frobenius, pelas estepes e pelos desertos. Deleuze, refina a sua ideia de nómada até ao paradoxo: «O nómada não é necessariamente alguém que se agita: há viagens no lugar, viagens em intensidade, e mesmo historicamente os nómadas não são aqueles que se movem à maneira de migrantes, pelo contrário, são aqueles que não se movem e que se põem a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar escapando aos códigos.»
A voz dos futuros
Em entrevista publicada no número de Julho-Agosto do Magazine Littéraire, o professor e filósofo francês Miguel Abensour chama a atenção para dois entendimentos negativos, tão enganadores quanto limitativos, que a propósito da ideia de utopia a partir dos anos oitenta se tornaram voz corrente tanto no campo da teoria política quanto junto da opinião pública. Abensour afirma ali que «é preciso colocar a utopia do lado do despertar, e não da ilusão». Neste sentido, tornado óbvio para quem conheça a história da ideia, não poderemos continuar a identificá-la com o logro e com a derrota, mas antes com a possibilidade de futuros plausíveis, que só a falta de imaginação e de coragem pode avaliar como irrealizáveis. Ao mesmo tempo, Abensour sublinha que «não foi a utopia a lançar as bases do totalitarismo, mas a dominação totalitária que fez o funeral da utopia», contrariando o juízo, também ele corrente, segundo o qual foi o excesso de esperança, a imaginação infinita e ingénua de paraísos construídos na Terra, a legitimar regimes que durante o século passado governaram através do terror e da ordem do silêncio. Duas afirmações, aparentemente elementares, que ao serem relembradas ajudam a reavaliar o papel criativo e libertador do exercício utópico enquanto método da reflexão política, instrumento programático e voz de todos os futuros.
A aventura
Para a estética romântica, poesia e aventura não eram experiências puras, desinteressadas. Além do pormenor e da peripécia, ambas detinham um móbil, ambas visavam preencher um destino partilhado de uma forma passional mas razoável. Escrever ou pensar, escolher ou agir de outro modo, insinuava uma vontade de fuga, uma tentativa de escape, vista como algo de socialmente perigoso e por isso condenável. Só a partir das décadas finais do século XIX o desejo de tomar sem barreiras a indefinida direção da aventura deixou de ser tão insistentemente olhado com essa carga negativa. E só depois de Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, o desejo de ação sem outro objetivo que não o cumprimento de uma vontade indómita e de um imperativo inexplicável passou a guiar sem necessidade de justificação aqueles que escolheram o caminho da jornada insurrecta, da via errante. Sem norte seguro, sem clara intenção, sem absolutas certezas.
O microdiploma
Correndo o risco de insistir num assunto repisado, chamo a atenção para o parágrafo do Miguel Cardina que, no Arrastão, sublinhou três fatores importantes relacionados com a microlicenciatura do ministro Relvas: a desgraçada dimensão ética da mentirola aprontada pelo próprio sobre a sua formação académica; as ligações perigosas entre setores dos partidos do poder, certos negócios e determinadas instituições do ensino superior privado; o provincianismo traduzido na vontade de deter o título de «doutor» para se fazer respeitar entre as massas informes de fatos cinzentos. Junto-lhe um curto comentário sobre dois aspetos que têm sido tratados de maneira mais lateral mas merecem alguma atenção, transcendendo até o timing preciso deste episódio de vaudeville. ler mais deste artigo
Elvis’54
Elvis “The Pelvis” Aaron Presley gravou o seu primeiro álbum a 5 de Julho de 1954. Há precisamente cinquenta e oito anos. E o planeta não mais deixou de bambolear as ancas.
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=w-ii6jpdOEk[/youtube] |
A dúvida

E. M. Cioran sobre a escravidão da absoluta certeza. Em Do Inconveniente de Ter Nascido (Letra Livre).
A partir do momento em que formulo uma dúvida, ou mais exactamente: a partir do momento em que sinto necessidade de formular uma, experimento um bem-estar curioso, inquietante. Ser-me-ia de longe mais fácil viver sem qualquer vestígio de crença do que sem qualquer vestígio de dúvida. Dúvida devastadora, dúvida nutritiva!
Havia o céu

Para Albert Camus, a pobreza que conhecera, que vivera, durante a infância passada em Argel, não lembrava necessariamente a mais crua desgraça. Ei-la à luz de O Avesso e o Direito.
Nas noites de Verão os operários punham-se à janela. Na sua casa não havia senão uma janela muito pequena. Traziam-se então cadeiras para defronte da casa e gozava-se a noite. Havia a rua, os vendedores de gelados ao lado, os cafés em frente, e os ruídos de crianças correndo de porta em porta. Mas sobretudo, por entre as grandes figueiras, havia o céu. Há uma solidão na pobreza, mas uma solidão que dá a cada coisa o seu valor. Com um certo grau de riqueza, o próprio céu e a noite cheia de estrelas parecem bens naturais. Mas no fundo da escada, o céu retoma todo o seu sentido: uma graça sem preço.
Uma gente

Uma gente em fuga de outra gente,
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens.
Deixam para trás um tal seu tudo,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos, nos quais o fogo se mira,
levam às costas os cântaros e as trouxas,
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.
É em silêncio que alguém desfalece,
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
e alguém sacode o filho morto.
Nunca é pela estrada que têm à frente,
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
no alto, um avião errante rodopia.
Dava jeito ser invisível,
pedra de cor parda,
ou ainda melhor não existir
durante um pouquinho ou por mais tempo.
Mais ainda está por acontecer, apenas onde e quando.
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quem e quando,
de que forma e com que intenções.
Se puder escolher,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
Wislawa Szymborska – de Paisagem com Grão de Areia
(trad. Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)
O louco da aldeia
Discriminado pelo comportamento ou pela fala, em cada pequena comunidade é o «louco» quem anuncia as verdades que muitos reconhecem mas ninguém verbaliza fora do domínio do privado. Na aldeia, na pequena vila, na cidade provinciana, é fácil identificá-lo pela presença diária, pela estranheza do comportamento, pelo estatuto de marginalidade. Ele pode ser o doido, o beberrão, o velho que perdeu o tino, o pobre de pedir, o vagabundo, o sem-abrigo, a prostituta entrada na idade. No limite, pode também ser o poeta, o artista, ou aquele que aspira a sê-lo, principalmente se não detiver algum reconhecimento público. Se o tiver, caso raro, ganha então o estatuto de excêntrico, sinalizando uma promoção social.
Esses «loucos» eram particularmente visíveis em sociedades nas quais o Estado-Providência faltava ou falhava: em Portugal, antes da Revolução de Abril, quando os mecanismos de apoio social eram escassos ou nulos, era vê-los de manhã, esperando em grupo que as tascas abrissem, pedindo esmola nos adros das igrejas, deambulando pelas ruas para servirem de divertimento dos que se julgavam integrados e sãos de espírito. O jornal da terra erguia-os como figura local «típica», supostamente única, como vulto curioso, um pouco cómico e extravagante, a quem se deveriam dar uns trocos para que pudessem continuar a viver e deixassem os outros em paz. E quando enfim morriam, tinham reservado um parágrafo de obituário, que assinalava para memória futura, num último assomo de indignidade, o trilho de uma vida de desterro, desconsolo e abandono.
Para sair do labirinto
Para além de ser um dos nossos mais importantes medievalistas, José Mattoso é também um historiador que não tem vivido a sua profissão como um espartilho, refletindo sobre domínios que se cruzam com os caminhos do contemporâneo e a experiência da cidadania. Comprovam-no os quinze ensaios escritos ao longo das últimas quase duas décadas que este Levantar o Céu reúne. Fá-lo adotando uma busca de sentidos, apoiada sempre numa reflexão muito pessoal, para essa «sabedoria verdadeira» que jamais se mostra à primeira vista, sendo por isso necessário «desejá-la, compreendê-la, descobri-la», aceitando que ela «não explica nada, explica-se». O título é pois uma declaração de intenções: se «levantar o céu» impõe a vontade de desvendar a relação entre o ideal que este representa e a materialidade da vida terrena, como possível via para perceber a mudança na ordem do mundo, já compreender o percurso labiríntico para alcançar a sabedoria é o mote que acompanha estes textos. A bússola oferece-a Mattoso no encontro, tantas vezes julgado como um inevitável desencontro, ou no equilíbrio que pessoalmente sempre procurou obter, entre fé e razão. O ceticismo do qual em alguns momentos nos dá conta apenas reforça esse sentido de procura. ler mais deste artigo
Ai Angola!
Reprodução de um documento, disseminado através do Facebook, que justifica o maior eco possível. Testemunho tristemente exemplar do comportamento arbitrário do regime de Luanda. E afronta às longas décadas de luta de tantos angolanos pela democracia e pela independência do seu grande país.
Da crise da esquerda

Orwell escreveu certa vez que o que atrai as pessoas comuns, ou pelo menos muitas delas, para o socialismo, e as deixa «dispostas a arriscar a pele por ele», é a ideia de igualdade. Até há pouco diríamos que a hipótese de morrer por uma causa corresponderia, nesta Europa tão descrente saída do descalabro das ideologias e do termo da Guerra Fria, a um círculo restrito de combatentes pautados por um desespero quixotesco e fora de moda. Mas a reinstalação da desigualdade à qual assistimos nos últimos tempos está a inverter rapidamente a situação: perante o colapso dos mercados, do capitalismo e da democracia parlamentar tal como os conhecemos, o retorno da política dos extremos pode trazer de volta essa atitude-limite que associa uma causa insurgente ao sentido da vida, militante e radical, de um número crescente de pessoas, reinstalando a violência insurrecional como necessidade. Num dos seus derradeiros livros, Tony Judt alertou para a transformação de «sociedades grotescamente desiguais» em sociedades instáveis, dividindo-se através de conflitos internos, cada vez maiores, mais insanáveis, que terminam geralmente «com desfechos não democráticos». Mas só se percebe verdadeiramente a mensagem de Judt se se tiver em linha de conta a sua proposta de ultrapassagem das anestesiantes fantasias de prosperidade e progresso individual, sugerindo um retorno a essa matriz original da social-democracia assente na convicção do papel regenerador da liberdade política, da justiça social e da ação coletiva.
No pequeno ensaio militante A Crise da Esquerda Europeia (D. Quixote), Alfredo Barroso coloca o dedo na mesma ferida, questionando a deriva neoliberal e individualista dos partidos socialistas e social-democratas europeus – o PS português claramente incluído entre eles – e o facto de, perante crises económicas e financeiras cada vez mais graves provocadas pela desregulação do capitalismo, não se ter erguido neste campo «uma forte reação política e um sobressalto ideológico». A razão terá sem dúvida a ver com uma alteração do código genético desses partidos: controlados por círculos de natureza essencialmente tecnocrática, penetrados pela clientelagem, seduzidos durante muito tempo pela sereia de um «desenvolvimento económico» endeusado, que supostamente a todos traria o bem-estar, preferiram aliar-se à direita, ou copiar acriticamente o comportamento desta. Em vez de se aproximarem mais naturalmente da restante esquerda, passaram a queixar-se do sectarismo que a imobiliza sem mexerem um dedo para o tentarem perceber e ajudar a diluir. A situação atual, de intenso questionamento do modelo de desenvolvimento adotado, parece ser, nesta área política, uma porta para outras possibilidades. O livro de Barroso, que merece ser lido, considera-a absolutamente necessária.