Desde a primeva visão gravada por Joseph Nicéphore Niépce, em 1826, a partir da varanda da sua casa em Vincennes, a fotografia testemunha a dimensão expressiva do silêncio. Sinal primário da arte fotográfica, a suspensão no tempo da imagem captada com a câmara retira o fotografado do tumulto dos dias, complexificando e alterando a sua primitiva e mais simples conformação simbólica. O trabalho do silêncio intervém assim na construção de sentidos que de outro modo permaneceriam indizíveis. Roland Barthes falava, em A Câmara Clara, de um «saber fotográfico» absolutamente único e intraduzível. Palavra alguma o pode explicar. Resta-nos olhar. Olhar sempre.
Nómada

Kenneth White salienta, em O Espírito Nómada, a grandeza possível, infinita e insaciável, da viagem que resulta mais da atitude de quem a busca que do movimento de quem a cumpre.
Os nómadas não têm história, têm uma geografia e essa geografia, que tem lugar no «espaço plano» das estepes, escreve-se por meio de uma «linha criativa de fuga» caracterizada pela rapidez, uma rapidez «fora da lei», mas no fluxo, fora do âmbito da «máquina racional administrativa», seguindo as correntes de energia. (…) Não que seja em absoluto necessário passarmos todo o nosso tempo a viajar, como Frobenius, pelas estepes e pelos desertos. Deleuze, refina a sua ideia de nómada até ao paradoxo: «O nómada não é necessariamente alguém que se agita: há viagens no lugar, viagens em intensidade, e mesmo historicamente os nómadas não são aqueles que se movem à maneira de migrantes, pelo contrário, são aqueles que não se movem e que se põem a nomadizar para permanecerem no mesmo lugar escapando aos códigos.»
A voz dos futuros
Em entrevista publicada no número de Julho-Agosto do Magazine Littéraire, o professor e filósofo francês Miguel Abensour chama a atenção para dois entendimentos negativos, tão enganadores quanto limitativos, que a propósito da ideia de utopia a partir dos anos oitenta se tornaram voz corrente tanto no campo da teoria política quanto junto da opinião pública. Abensour afirma ali que «é preciso colocar a utopia do lado do despertar, e não da ilusão». Neste sentido, tornado óbvio para quem conheça a história da ideia, não poderemos continuar a identificá-la com o logro e com a derrota, mas antes com a possibilidade de futuros plausíveis, que só a falta de imaginação e de coragem pode avaliar como irrealizáveis. Ao mesmo tempo, Abensour sublinha que «não foi a utopia a lançar as bases do totalitarismo, mas a dominação totalitária que fez o funeral da utopia», contrariando o juízo, também ele corrente, segundo o qual foi o excesso de esperança, a imaginação infinita e ingénua de paraísos construídos na Terra, a legitimar regimes que durante o século passado governaram através do terror e da ordem do silêncio. Duas afirmações, aparentemente elementares, que ao serem relembradas ajudam a reavaliar o papel criativo e libertador do exercício utópico enquanto método da reflexão política, instrumento programático e voz de todos os futuros.
A aventura
Para a estética romântica, poesia e aventura não eram experiências puras, desinteressadas. Além do pormenor e da peripécia, ambas detinham um móbil, ambas visavam preencher um destino partilhado de uma forma passional mas razoável. Escrever ou pensar, escolher ou agir de outro modo, insinuava uma vontade de fuga, uma tentativa de escape, vista como algo de socialmente perigoso e por isso condenável. Só a partir das décadas finais do século XIX o desejo de tomar sem barreiras a indefinida direção da aventura deixou de ser tão insistentemente olhado com essa carga negativa. E só depois de Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Mallarmé, o desejo de ação sem outro objetivo que não o cumprimento de uma vontade indómita e de um imperativo inexplicável passou a guiar sem necessidade de justificação aqueles que escolheram o caminho da jornada insurrecta, da via errante. Sem norte seguro, sem clara intenção, sem absolutas certezas.
O microdiploma
Correndo o risco de insistir num assunto repisado, chamo a atenção para o parágrafo do Miguel Cardina que, no Arrastão, sublinhou três fatores importantes relacionados com a microlicenciatura do ministro Relvas: a desgraçada dimensão ética da mentirola aprontada pelo próprio sobre a sua formação académica; as ligações perigosas entre setores dos partidos do poder, certos negócios e determinadas instituições do ensino superior privado; o provincianismo traduzido na vontade de deter o título de «doutor» para se fazer respeitar entre as massas informes de fatos cinzentos. Junto-lhe um curto comentário sobre dois aspetos que têm sido tratados de maneira mais lateral mas merecem alguma atenção, transcendendo até o timing preciso deste episódio de vaudeville. ler mais deste artigo
Elvis’54
Elvis “The Pelvis” Aaron Presley gravou o seu primeiro álbum a 5 de Julho de 1954. Há precisamente cinquenta e oito anos. E o planeta não mais deixou de bambolear as ancas.
[youtube]http://www.youtube.com/watch?v=w-ii6jpdOEk[/youtube] |
A dúvida

E. M. Cioran sobre a escravidão da absoluta certeza. Em Do Inconveniente de Ter Nascido (Letra Livre).
A partir do momento em que formulo uma dúvida, ou mais exactamente: a partir do momento em que sinto necessidade de formular uma, experimento um bem-estar curioso, inquietante. Ser-me-ia de longe mais fácil viver sem qualquer vestígio de crença do que sem qualquer vestígio de dúvida. Dúvida devastadora, dúvida nutritiva!
Havia o céu

Para Albert Camus, a pobreza que conhecera, que vivera, durante a infância passada em Argel, não lembrava necessariamente a mais crua desgraça. Ei-la à luz de O Avesso e o Direito.
Nas noites de Verão os operários punham-se à janela. Na sua casa não havia senão uma janela muito pequena. Traziam-se então cadeiras para defronte da casa e gozava-se a noite. Havia a rua, os vendedores de gelados ao lado, os cafés em frente, e os ruídos de crianças correndo de porta em porta. Mas sobretudo, por entre as grandes figueiras, havia o céu. Há uma solidão na pobreza, mas uma solidão que dá a cada coisa o seu valor. Com um certo grau de riqueza, o próprio céu e a noite cheia de estrelas parecem bens naturais. Mas no fundo da escada, o céu retoma todo o seu sentido: uma graça sem preço.
Uma gente

Uma gente em fuga de outra gente,
num país debaixo do sol
e de algumas nuvens.
Deixam para trás um tal seu tudo,
campos semeados, umas galinhas, cães,
espelhos, nos quais o fogo se mira,
levam às costas os cântaros e as trouxas,
quanto mais vazios mais pesados com o passar dos dias.
É em silêncio que alguém desfalece,
é na algazarra que alguém arranca o pão de alguém
e alguém sacode o filho morto.
Nunca é pela estrada que têm à frente,
nem é esta ponte
sob a qual passa um rio estranhamente avermelhado.
Em redor, disparos, ora longínquos ora próximos,
no alto, um avião errante rodopia.
Dava jeito ser invisível,
pedra de cor parda,
ou ainda melhor não existir
durante um pouquinho ou por mais tempo.
Mais ainda está por acontecer, apenas onde e quando.
Alguém lhes sairá ao caminho, apenas quem e quando,
de que forma e com que intenções.
Se puder escolher,
talvez não queira ser inimigo
e os deixe com alguma vida.
Wislawa Szymborska – de Paisagem com Grão de Areia
(trad. Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves)
O louco da aldeia
Discriminado pelo comportamento ou pela fala, em cada pequena comunidade é o «louco» quem anuncia as verdades que muitos reconhecem mas ninguém verbaliza fora do domínio do privado. Na aldeia, na pequena vila, na cidade provinciana, é fácil identificá-lo pela presença diária, pela estranheza do comportamento, pelo estatuto de marginalidade. Ele pode ser o doido, o beberrão, o velho que perdeu o tino, o pobre de pedir, o vagabundo, o sem-abrigo, a prostituta entrada na idade. No limite, pode também ser o poeta, o artista, ou aquele que aspira a sê-lo, principalmente se não detiver algum reconhecimento público. Se o tiver, caso raro, ganha então o estatuto de excêntrico, sinalizando uma promoção social.
Esses «loucos» eram particularmente visíveis em sociedades nas quais o Estado-Providência faltava ou falhava: em Portugal, antes da Revolução de Abril, quando os mecanismos de apoio social eram escassos ou nulos, era vê-los de manhã, esperando em grupo que as tascas abrissem, pedindo esmola nos adros das igrejas, deambulando pelas ruas para servirem de divertimento dos que se julgavam integrados e sãos de espírito. O jornal da terra erguia-os como figura local «típica», supostamente única, como vulto curioso, um pouco cómico e extravagante, a quem se deveriam dar uns trocos para que pudessem continuar a viver e deixassem os outros em paz. E quando enfim morriam, tinham reservado um parágrafo de obituário, que assinalava para memória futura, num último assomo de indignidade, o trilho de uma vida de desterro, desconsolo e abandono.
Para sair do labirinto
Para além de ser um dos nossos mais importantes medievalistas, José Mattoso é também um historiador que não tem vivido a sua profissão como um espartilho, refletindo sobre domínios que se cruzam com os caminhos do contemporâneo e a experiência da cidadania. Comprovam-no os quinze ensaios escritos ao longo das últimas quase duas décadas que este Levantar o Céu reúne. Fá-lo adotando uma busca de sentidos, apoiada sempre numa reflexão muito pessoal, para essa «sabedoria verdadeira» que jamais se mostra à primeira vista, sendo por isso necessário «desejá-la, compreendê-la, descobri-la», aceitando que ela «não explica nada, explica-se». O título é pois uma declaração de intenções: se «levantar o céu» impõe a vontade de desvendar a relação entre o ideal que este representa e a materialidade da vida terrena, como possível via para perceber a mudança na ordem do mundo, já compreender o percurso labiríntico para alcançar a sabedoria é o mote que acompanha estes textos. A bússola oferece-a Mattoso no encontro, tantas vezes julgado como um inevitável desencontro, ou no equilíbrio que pessoalmente sempre procurou obter, entre fé e razão. O ceticismo do qual em alguns momentos nos dá conta apenas reforça esse sentido de procura. ler mais deste artigo
Ai Angola!
Reprodução de um documento, disseminado através do Facebook, que justifica o maior eco possível. Testemunho tristemente exemplar do comportamento arbitrário do regime de Luanda. E afronta às longas décadas de luta de tantos angolanos pela democracia e pela independência do seu grande país.
Da crise da esquerda

Orwell escreveu certa vez que o que atrai as pessoas comuns, ou pelo menos muitas delas, para o socialismo, e as deixa «dispostas a arriscar a pele por ele», é a ideia de igualdade. Até há pouco diríamos que a hipótese de morrer por uma causa corresponderia, nesta Europa tão descrente saída do descalabro das ideologias e do termo da Guerra Fria, a um círculo restrito de combatentes pautados por um desespero quixotesco e fora de moda. Mas a reinstalação da desigualdade à qual assistimos nos últimos tempos está a inverter rapidamente a situação: perante o colapso dos mercados, do capitalismo e da democracia parlamentar tal como os conhecemos, o retorno da política dos extremos pode trazer de volta essa atitude-limite que associa uma causa insurgente ao sentido da vida, militante e radical, de um número crescente de pessoas, reinstalando a violência insurrecional como necessidade. Num dos seus derradeiros livros, Tony Judt alertou para a transformação de «sociedades grotescamente desiguais» em sociedades instáveis, dividindo-se através de conflitos internos, cada vez maiores, mais insanáveis, que terminam geralmente «com desfechos não democráticos». Mas só se percebe verdadeiramente a mensagem de Judt se se tiver em linha de conta a sua proposta de ultrapassagem das anestesiantes fantasias de prosperidade e progresso individual, sugerindo um retorno a essa matriz original da social-democracia assente na convicção do papel regenerador da liberdade política, da justiça social e da ação coletiva.
No pequeno ensaio militante A Crise da Esquerda Europeia (D. Quixote), Alfredo Barroso coloca o dedo na mesma ferida, questionando a deriva neoliberal e individualista dos partidos socialistas e social-democratas europeus – o PS português claramente incluído entre eles – e o facto de, perante crises económicas e financeiras cada vez mais graves provocadas pela desregulação do capitalismo, não se ter erguido neste campo «uma forte reação política e um sobressalto ideológico». A razão terá sem dúvida a ver com uma alteração do código genético desses partidos: controlados por círculos de natureza essencialmente tecnocrática, penetrados pela clientelagem, seduzidos durante muito tempo pela sereia de um «desenvolvimento económico» endeusado, que supostamente a todos traria o bem-estar, preferiram aliar-se à direita, ou copiar acriticamente o comportamento desta. Em vez de se aproximarem mais naturalmente da restante esquerda, passaram a queixar-se do sectarismo que a imobiliza sem mexerem um dedo para o tentarem perceber e ajudar a diluir. A situação atual, de intenso questionamento do modelo de desenvolvimento adotado, parece ser, nesta área política, uma porta para outras possibilidades. O livro de Barroso, que merece ser lido, considera-a absolutamente necessária.
Otelo: uma biografia
Paulo Moura é um excelente jornalista, de quem sou fiel leitor. Mas esta crítica negativa é condicionada por um imperativo: contornar o nevoeiro que um livro como este pode lançar sobre a imagem pública e a representação histórica da intervenção de Otelo Saraiva de Carvalho. Talvez o resultado pudesse ser outro se o posfácio, que poucos lerão, tivesse sido antes um prefácio, que toda a gente lê. Porque nele o autor aclara algumas das suas escolhas. Estas são, obviamente, tão legítimas quanto discutíveis. E muito discutíveis. Como é possível, por exemplo, compatibilizar um trabalho, descrito como «biográfico», e ainda que não seja «um livro para académicos» (qualificativo pouco preciso nele sugerido como restritivo), com a afirmação de que o autor decidiu ser «mais fiel às recordações do que ao passado»? E se se considera que é uma biografia «narrativa e interpretativa, não crítica», isenta de «juízos de valor», como excluir estes do território das recordações, que nunca sem manifestam sem a subjetividade de quem recorda? Muitos trabalhos sobre a conexão entre história e memória, na relação com a intervenção do testemunho dos atores dos factos vividos, tratam este assunto, procurando soluções que este livro exclui do horizonte. ler mais deste artigo
Democracia e alternativas
Os objetivos mais essenciais do documento que abaixo se transcreve e que apoio unem-se à proposta de realização de um Congresso Democrático das Alternativas. A ideia é unir para construir e propor – contra a austeridade pela austeridade, o saque sem precedentes ao Estado Social e a criminalização do trabalho e dos trabalhadores – uma alternativa real de governo. Não se pretende dar lições do quer que seja, mas debater processos de colaboração e de mobilização para a construção de um outro destino que não aquele que a troika nos determina como inevitável. Infelizmente, e para já, o PS e o PCP apenas estão representados por setores minoritários, distantes das atuais direções partidárias. A esperança é, no entanto, que este impulso ajude a superar a tentação de apenas participar no que é possível controlar, promovendo uma aproximação programática que configure uma verdadeira alternativa. Tentar não custa. O resto está por fazer..
Resgatar Portugal para um futuro decente
«Só vamos sair da crise empobrecendo”. Este é o programa de quem governa Portugal. Sem que a saída da crise se vislumbre, é já evidente o rasto de empobrecimento que as políticas de austeridade, em nome do cumprimento do acordo com a troika e do serviço da dívida, estão a deixar à sua passagem. Franceses e gregos expressaram, através do voto democrático, o seu repúdio por este caminho e a necessidade de outras políticas. Em Portugal, o discurso da desistência e das “inevitabilidades” continua a impor-se contra a busca responsável de alternativas.
Portugal continua amarrado a um memorando de entendimento que não é do seu interesse. Que nos rouba a dignidade, a democracia e a capacidade de coletivamente decidirmos o nosso futuro. O Estado e o trabalho estão reféns dos que, enfraquecendo-os, ampliam o seu domínio sobre a vida de todos nós. Estamos a assistir ao mais poderoso processo de transferência de recursos e de poderes para os grandes interesses económico-financeiros registado nas últimas décadas. ler mais deste artigo
Um leitor no futuro «impossível»
Posso ser acusado de muita coisa pouco abonatória, mas jamais de não gostar de livros. Desde a escola primária, eles acompanham a maior parte do meu tempo – livre ou ocupado – e desde essa altura que mantenho o hábito de carregar sempre um ou dois, às vezes mais, mesmo que anteveja não poder retirar algum tempo para o(s) ler. Além disso, como professor, investigador e crítico, eles são o meu ganha-pão. Como se tal não bastasse, ainda escrevo alguns e, na condição de impenitente viciado, ao longo dos anos tenho vindo a preencher com eles, cada vez em maior quantidade, a maior parte das divisões das casas que vou habitando. Tendo-me desfeito há pouco, justamente por falta de espaço, de cerca de meia centena, guardo ainda assim umas doze ou treze vezes essa quantidade. Continuando sempre a gostar deles, regressando sempre a eles. Não posso, por isso, ser acusado pelos puristas do papel de não amar os livros, de ir como um tolo atrás das modernices eletrónicas, de ter traído a minha própria biografia, perdendo a fidelidade «ao cheiro, ao toque, à beleza» do livro físico e trocando-o pela tentação do digital.
No entanto, nada disso me impede de conviver com a inevitabilidade de, para as gerações agora a chegarem à universidade, o livro físico ser já, ou tornar-se em breve, um objeto de arquivo, respeitável mas destinado aos especialistas, aos investigadores, aos curiosos, aos colecionadores, mas não ao comum dos cidadãos. Para estes, o conhecimento legado servir-se-á dos suportes que a tecnologia tem vindo a aperfeiçoar ou está a inventar, transformando a forma de ler, de comunicar ou de criar. E isto não é futurologia, como o era ainda quando há cinquenta anos Marshall McLuhan falava do fim da «galáxia de Gutenberg» e há trinta Nicholas Negroponte se entretinha a propor-nos o «paradigma digital». Esta realidade é-me confirmada pelo inventário, que acabo de fazer, dos livros dos quais me tornei feliz proprietário durante os últimos dois anos: sem contar com jornais e revistas, comprei 34 livros tradicionais, em átomos, foram-me ainda oferecidos (a larga maioria por autores ou editores) 57, e comprei… 67 e-books, contando-se entre estes aqueles mais atualizados e diretamente relacionados com o trabalho profissional e os meus interesses diários. Afinal já cheguei ao «futuro previsível», esse que para alguns será «impossível», «jamais acontecerá». E ainda não tinha dado completamente conta disso.
Meca por uma agulha
Em 1853, o explorador inglês Richard F. Burton (1821-1890) foi o primeiro ocidental que entrou em Meca. Fê-lo arriscando a vida – visitar Meca e Medina está proibido aos não-muçulmanos –, apenas pelo prazer de viajar e de conhecer outras maneiras de viver. Eis a sua descrição de algumas das medidas que tomou para cumprir a façanha.
Além do disfarce de «Mirza Abdullah», tinha «um miswak ou palito» — um galho para limpar os dentes; «um pedaço de sabão e um pente, de madeira, porque osso e casca de tartaruga não são, religiosamente falando, corretos.» Uma muda de roupa, um cantil de pele de cabra, um «tapete de pele grosso, que além de ser cama funcionava como cadeira, mesa e oratório», uma almofada, um cobertor, um grande chapéu de sol amarelo vivo […], uma «dona de casa» (agulhas, linha e botões numa bolsa), um punhal, um tinteiro e um porta-penas de latão, «e um rosário forte que em certas ocasiões possa ser convertido em arma de defesa.»
Personal Narrative of a Pilgrimage to Al-Madinab and Mecah, 1853
(citado por Paul Theroux em A Arte da Viagem)
A imprescindível primavera
Não cheguei a ter grandes esperanças, e, como toda a gente, agora ainda tenho menos, no futuro promissor das «primaveras árabes». Foi a sua parecença consigo próprios aquilo que muitos ocidentais vislumbraram de positivo nas praças de Tunes e do Cairo, naqueles grupos de jovens de aspeto cosmopolita, de funcionários de barba diligentemente aparada e de mulheres maquilhadas, sexos aliados, telemóveis de última geração, que falavam inglês e gostavam dos mesmos filmes e leituras dos quais gostavam os seus contemporâneos de Estocolmo, Munique ou Quioto. Foi a quimera de um mundo, outro e o mesmo, no qual todos os discursos e compromissos fossem possíveis e aceitáveis. Foi, por momentos, um certo esquecimento da diferença real no ser e no viver daquelas latitudes. Alguns viram até, por aqueles dias e naqueles movimentos, o acordar de utopias perdidas, de projetos abandonados, o regresso à ideia de um mundo feito de entendimentos e de paz. ler mais deste artigo