Porque já fiz o mesmo, estou à vontade para olhar agora como sintoma de uma qualquer doença, eventualmente infantil, o esforço de alguns, incréus ou intransigentes, para evitarem referir-se ao Natal como data primordial do nosso calendário. Escrevem então «natal» com minúscula, evitam desejá-lo «Bom» aos outros, preferindo falar de felizes «Festas», consideram a Consoada coisa para idosos semiadormecidos e a parafernália do presépio cristão como uma brincadeira de crianças, de ociosos ou de retardados. Para mim, um ateu graças a Deus convicto, o Natal, enquanto episódio simbólico fundador do cristianismo, conserva um lugar central na agenda da vida coletiva, na organização dos afetos partilhados, e, acima de tudo, na construção da identidade cultural desse Ocidente que escreveu a sua própria história e a sua tradição. Bem sei, como Roger Garaudy um dia escreveu, que ele, o Ocidente, «é um acidente», mas este deu-se, aconteceu, e agora estamos todos envolvidos nas suas peripécias e consequências. Por isso, é com pena e também com preocupação que vejo as nossas cidades e vilas quase sem as mágicas e habituais iluminações da época, as paredes exteriores das casas ainda mais nuas e frias, sem «Pais Natal» anafados e vemelhuscos a tentarem desesperadamente escalá-las, as lojas de prendas semivazias ou com produtos de saldo. E que encontro muitos milhares de compatriotas, tantos deles agora desempregados, sem o suplemento de esperança e de breve bem-estar que nesta altura lhes oferecia o magro mas quase sempre merecido e seguro… subsídio de Natal.
Filosofia ao domicílio |1
A ausência de filosofia produz inevitavelmente uma prática cega. Eis uma verdade que os programas educativos e de apoio à investigação, diluindo o papel estruturante do conhecimento que é oferecido pelas humanidades, tendem cada vez mais a esquecer, anulando a presença do pensamento do mundo e da reflexão crítica que o acompanha. Começa aqui a apresentação de uma série de textos publicados originalmente na revista Sciences Humaines, entretanto traduzidos e adaptados, destinada a chamar a atenção para algumas dezenas de obras filosóficas, publicadas nos últimos cem anos, cuja leitura pode ajudar-nos a contrariar essa tendência. E a impedir-nos de retomar os caminhos que um dia terminaram em becos sem saída.
A primeira obra destacada é A Condição Humana (também editada sob o título A Condição do Homem Moderno), publicada em 1958, da autoria da filósofa política alemã de origem judaica Hannah Arendt (1906-1975). ler mais deste artigo
As escolhas
Quanto mais difíceis, incertas e dramáticas são as épocas e as situações, mais facilmente se reconhecem as grandes qualidades e os piores defeitos daqueles que as vivem. Aquilo que de melhor e de pior todos nós temos. E isso acontece mesmo em situações-limite, quando o medo do sofrimento, da exclusão e da morte pode fechar cada um sobre si próprio, aparentemente impenetrável e dúctil, ocupado com as tarefas mais elementares da sobrevivência. Calar-se, não ver, passar ao lado, sair dali, é então a atitude mais comum. No entanto, os relatos dos que sobreviveram ao internamento nos campos de concentração e de extermínio recordam, com insistência, que mesmo nos limites mais extremos da barbárie dos carcereiros e da desumanização dos detidos foi possível, em instantes fugazes, aparentemente impercetíveis, mas muito intensos, encontrar sinais de compaixão e de coragem, bem como, ao invés, marcas indeléveis de impiedade e traição. ler mais deste artigo
Les artistes
Praticamente ninguém fala deles, embora não sejam invisíveis. A não ser quando falam deles próprios, em monólogo. Ou então para os seus. É fácil perceber o porquê desse silêncio e desse insulamento: a sua voz sem valor acrescentado, «inútil», é depreciada pelo discurso dominante, particularmente nestes tempos de «salve-se quem puder» que acompanham o naufrágio coletivo. É também ignorada por quem passa ao lado do universo infinito mas peculiar que habitam. Não «produzem valor», não são «competitivos», não lutam como lobos por um lugar ao sol, não têm como mola vital o desejo animal de sucesso e riqueza a qualquer preço. Não vivendo do ar, o reconhecimento de que precisam é principalmente o dos espetadores, o dos leitores, o do público que entra e sai. Porque, como cantava Ferré, Léo Ferré, «ce sont des gens d’ailleurs». Gente de outro lugar.
São os que vivem da criação e das artes. Que apenas precisam de tempo e meios essenciais para escrever, para representar, tocar, montar espetáculos, pensar. Muitos sacrificaram «carreiras de sucesso», empregos estáveis, bem-estar material, até pequenas heranças, para habitarem, quase sempre com pouco dinheiro mas amor pelo que fazem, nesse universo que vive de e para a imaginação e a representação do mundo. Mas preferiram viver assim, sabendo que jamais seriam ricos, para fazerem aquilo de que gostavam. Viviam no entanto remediados pois, apesar de se alimentarem de trabalhos ocasionais e precários, sabiam que depois de um viria outro. Com tudo à sua volta a desabar, sem apoios para a sua arte, com menos público, ficaram agora mais sós e desamparados que nunca. Sem segurança material, reserva para a velhice, uma noção de futuro. Sujeitos a fazer qualquer coisa, menos aquilo que foi da sua escolha, para terem o pedaço de pão que lhes cabe. Num país para todos ainda mais triste e sem luz. Até que…
Adenda: Já depois de escrito este post fui recuperar este.
Vargas Llosa e os livros
Em novembro de 1972 li pela primeira vez Mario Vargas Llosa. Sei precisá-lo porque na altura tinha o hábito infalível de escrever a lápis o lugar e a data de compra de cada livro e é essa a data que se conserva no meu exemplar d’A Conversa na Catedral. O romance, contendo um jogo de vozes e de sombras no Peru do tempo da ditadura do general Manuel Odría, fora lançado em Lima apenas três anos antes. E digo apenas porque a distância temporal entre os livros publicados no estrangeiro e as edições portuguesas, quando as havia, era então, por via de regra, muito maior. Para mim, a data é importante também porque daí para a frente, com oscilações de gosto, li uma grande parte do que o escritor peruano foi produzindo: todos os seus dezoito romances, vários dos seus livros de ensaio, as crónicas semanais no El País sobre temas da atualidade, e até o discurso de aceitação do Nobel da Literatura, ganho em 2010. Nem sempre concordei (ou concordo) com as suas posições políticas, mas sempre o olhei como uma referência moral, um grande contador de histórias e um homem corajoso, capaz de enfrentar tanto alguns tiranos quanto a lógica redutora do politicamente correto. E não tenho problema algum em declarar que foi por causa dele, e do debate que levou ao fim da velha amizade com Gabriel Garcia Márquez, que me tornei menos benevolente para com algumas das posições públicas do autor de Cem Anos de Solidão. ler mais deste artigo
Os anjos indiferentes
Por estes dias em que permanecer indiferente, calar-se bem calado e fazer de conta que não é connosco, desinteressar-se do drama comum que estamos a viver, da política consciente e sistemática de destruição de um princípio de solidariedade que levou mais de um século a erguer, da ausência de uma ideia de esperança e de futuro para os mais jovens, do destino dos que trabalharam durante décadas para agora viverem no temor da miséria, da fome de quem nunca a tinha sentido e de mais fome ainda para quem já sabia que coisa era viver com quase nada, representa, cada vez mais, um ato deliberado de colaboração com o crime. A História mostra-nos, vezes sem conta, como foi fácil virar a cara para o lado oposto e deixar, por inação, que o pior acontecesse. Por ignorância, cobardia ou estupidez. Ou oportunismo. Ou, pior, por isso tudo e ainda por se assumir a convicção de que existe algures uma figura providencial à espreita, capaz de pôr todas as coisas «no sítio» e de instaurar um tempo de tranquilidade que assistirá à recomposição da «ordem natural» da existência humana. Com os mais ágeis a viverem a sua vida boa e higiénica – laborando, orando, amando os pobrezinhos – e os outros, à distância, a pedirem pares de peúgas, camisolas com defeito, latas de atum ou sopa de grão. E, por isso, que não é pouco, a ficarem atentos, veneradores e obrigados. Quietos e apáticos no seu lugar de escravos. Ou então de auxiliares de quem manda, anjos decaídos de uma ordem que ultrapassa o humano porque emanada de entidades transcendentes. Como Deus – um deus castigador, é suposto – ou a mecânica sobrenatural dos mercados financeiros.
É a ortografia, pá
A decisão do governo brasileiro no sentido de diferir por três anos a aplicação do último Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, faz-me voltar ao tema. Tal como escrevi noutros dois posts – reunidos num só – não me interessa entrar aqui (ou ali) em pequenas guerras e grandes exaltações a propósito do assunto. Tenho procurado tratá-lo de uma forma muito prática e, na verdade, a única coisa que neste caso uma vez ou outra me tem tirado do sério é o uso de falsos argumentos, ou de poses «caturras», na defesa das posições mais rigidamente imobilistas. Na realidade, se alguma coisa tinha entendido já, muitos anos antes da situação ser criada e da polémica surgir, foi que a língua é um grande barco transatlântico cuja essência, e razão de ser como veículo de comunicação, é tão rígida quanto móvel. Pelo que me toca, posso dizer que passei por quatro fases neste processo: a primeira de alguma desconfiança em relação à mudança, a segunda de observação daquilo que esta anunciava, a terceira de adoção crítica (condicionada em boa parte por imperativos profissionais), e a quarta de integração, compreendendo rapidamente, apesar de ter passado mais de meio século a escrever com regras diferentes, que algumas das novas normas até «naturalizam» mais os modos da fala e da escrita, embora outras, em menor quantidade, de facto os perturbem também. ler mais deste artigo
Imaginar o outro
Num tempo no qual se repetem, uma vez mais, as tentativas sistemáticas de representar Israel e o sionismo como um universo unívoco, parte integrante de um odioso «império do mal», sem se ter em conta, por ignorância, casmurrice ou má-fé, a diversidade e as contradições que separam, por vezes profundamente, os cidadãos israelitas e as distintas formas de sionismo, retomo, quase três anos depois, um fragmento da entrevista ao escritor Amos Oz, conduzida por Alexis Lacroix, que saiu no nº 494 do Magazine Littéraire, de Fevereiro de 2010. ler mais deste artigo
Crime na estrada
Já conheci um mecânico de automóveis, por acaso ainda um meu parente, que desmontava, reparava e lubrificava motores, testando-os depois no meio do trânsito em hora de ponta e recorrendo com insistência ao uso da buzina, sem jamais ter possuído carta de condução. Agora pude ver mais longe na lógica do empreendedorismo sem barreiras e do crime consciencioso aplicado aos assuntos do asfalto: na LER deste mês, o fazedor de livros Vítor Silva Tavares (ele não gosta que lhe chamem editor e eu faço-lhe a vontade) conta ter trabalhado em Angola como «engenheiro» examinador dos candidatos a condutores encartados… sem sequer saber guiar.
Portugal nas Caraíbas
Ainda ontem aqui deixei um texto crítico mas esperançoso sobre as contradições do PCP e a necessidade destas serem superadas num processo dinâmico de aproximação política à esquerda, bem como num quadro de solução governativa do qual os comunistas poderão, e com toda a certeza deverão, fazer parte. Mas entretanto, durante os trabalhos do XIX Congresso, parece ter ficado muito claro o sentido tomado pela estranha «solução» de governabilidade que o partido advoga para Portugal. Um «governo patriótico de esquerda» (eis o novo mantra a partir de agora), do qual se excluem formalmente o Partido Socialista e o Bloco de Esquerda (quem o comporá então? e como se chegará a ele?), que preparará uma viragem do país para o interior de si próprio (uma «cubanização» fora do tempo?), de costas para o projeto europeu (que em vez de ser reformado será abandonado), associada a uma «saída do euro» apontada como inevitável e salvífica. ler mais deste artigo
Pobreza e caridade
Sábado. Dia das compras da semana. No hipermercado deparo com brigadas do Banco Alimentar Contra a Fome. Estranhamente, por comparação com outros anos, muito menos pessoas param, aceitam os sacos vazios para encher de alimentos para quem precisa, oferecem o que podem com um sorriso de compreensão. Não sei se será consequência do agravamento das condições de vida da classe média, de onde provinha a maioria dos doadores, se será resultado das infelizes declarações da presidente do Banco, ou se advirá de ambas as coisas. Por um acaso, quando no final da manhã entrei num quiosque, dei de caras com este texto, incluído na reimpressão em fac-simile de um Livro de Leitura da 1ª Classe editado em 1957. Também a mim, como a Isabel Jonet, com quem neste particular concordo, dói a possibilidade da miséria e da fome em Portugal poderem chegar ao nível do que acontece atualmente na Grécia. Mas não me doerá menos ver o meu país a regredir até ao passado infame e desditoso que este texto apresentava como natural.
PCP: esperança e abertura
Em reportagem publicada no Diário de Notícias a propósito do início do XIX Congresso do PCP, a jornalista Fernanda Câncio descreve uma parte do que ouviu a alguns novos militantes para explicarem a sua adesão. Numa curta frase – «acredito que a política que o PC defende pode restituir sonhos» – um deles terá realçado, provavelmente sem de tal se aperceber, aquela que continua a ser a essência da capacidade de atração do partido: o lugar que este mantém, reforçado agora em contexto de crise económica, social e moral, como espaço partilhado de crença, capaz de projetar na vida de muitas pessoas uma dimensão de esperança. Como uma experiência de resistência, de trincheira, da qual se espera partir um dia à conquista da Terra Prometida da justiça e da igualdade. No entanto, pouco parece importar, à generalidade dos entrevistados, o conceito de democracia que deve ser aplicado a esse futuro: parte-se do princípio de acordo com o qual esta em que vivemos é má, é «falsa», para alguns «burguesa», e outras experiências, com uma base histórica que julgam «ao serviço dos trabalhadores» – a da antiga União Soviética e dos Estados «do socialismo realmente existente», a da China, a de Cuba e, pasme-se, por vezes a da própria Coreia do Norte – estarão bem mais próximas daquela que pode ser a boa, a «verdadeira». Aquela pela qual vale a pena lutar. ler mais deste artigo
Sobre o fascismo na América
«Estamos realmente em guerra – uma guerra longa, global, uma guerra pela nossa civilização», mas também «para salvar a nossa democracia.» A ensaísta e consultora política americana Naomi Wolf deixa estas palavras como um aviso e um apelo no último capítulo de O fim da América. Mas afinal de contas que guerra é essa e que padrão de democracia é este, merecendo ser salvo e que se combata por ele? A guerra, para a autora, ocorre dentro dos próprios Estados Unidos da América e é travada para que os fundamentos da democracia, propostos durante o processo de constituição da Nação pelos seus Pais Fundadores, não sejam esmagados por uma insidiosa «viragem fascista», capaz de replicar, e não apenas por analogia, a experiência que levou à queda da Alemanha da República de Weimar e à fatídica emergência do Terceiro Reich. Já a democracia da qual fala a ensaísta tem a forma daquela que, recorrendo à Carta dos Direitos, à Constituição, ao habeas corpus e a uma continuada tradição de diversidade e acolhimento, projetou a utopia de liberdade e de igualdade presente no momento de formação da nação americana e conservada ao longo de uma grande parte da sua história, definindo o essencial da sua identidade profunda. ler mais deste artigo
A norte do paralelo 38
Apesar do condicionamento endémico de stocks com o qual convivem hoje as nossas livrarias, não deve ser difícil encomendar alguma leitura sobre a República Democrática Popular da Coreia, a remota Coreia do Norte. Encontro três traduções mais ou menos recentes: Os Aquários de Pyongyang, de Kang Chol-Hwan (Hespéria), «Aqui é o Paraíso!», de Hyok Kang e Philippe Grangereau (Ulisseia), e A Longa Noite de um Povo, de Barbra Demick (Temas & Debates). Todas incorporam depoimentos de norte-coreanos que nos dão a ver o caráter absoluto, extremo, implacável, da experiência totalitária e da ditadura paranoide, supostamente comunista, que condicionam e subjugam o seu povo e o seu país.
Existe sempre um público para a exposição do horror e do sofrimento dos outros, mas tal não é necessariamente um sinal de perversão. Afinal, quem leia obras desta natureza não pode evitar uma relação de repulsa diante de tanto sofrimento e de tanto negrume. Mas a atração por esse tipo de testemunhos vem também do isolamento extremo do país e da dificuldade que todos sentimos de cada vez que procuramos obter informação credível, não contaminada pela fantasmagoria norte-coreana ou pela contra-propaganda. De facto, estas leituras ajudam-nos bastante a reduzir a distância, recolhendo experiências que, em regra, os noticiários, mais curtos e forçosamente truncados, acabam sempre por manter na sombra. ler mais deste artigo
A China que aí vem
O mundo concebido de acordo com a ordem americana, que prevaleceu a partir de 1945 e saiu reforçado do termo abrupto da Guerra Fria, encontra-se em declínio. Aparentemente, tudo aconteceu com enorme rapidez. Pela viragem do milénio ainda era possível – os conselheiros de George W. Bush cultivaram tal ideia no início do seu primeiro mandato – conceber os Estados Unidos da América como «hiperpotência», e, desmembrada a União Soviética, falar de «unipolaridade» para descrever o que parecia ser uma nova e única forma de poder, projetada à escala mundial com sede declarada em Washington. Na sequência do 11 de Setembro de 2001, a imposição da segurança global através de uma pax americana parecia em andamento. O que pretende demonstrar Quando a China mandar no mundo, do jornalista e académico britânico Martin Jacques, é que esta ideia representou um logro e que, na verdade, estamos a viver uma mudança histórica apenas iniciada mas já destinada a transformar irreversivelmente o planeta. Dela derivará uma nova ordem, tendo a China como eixo do poder económico, da força militar e, provavelmente, do equilíbrio político internacional. ler mais deste artigo
A House Is Not A Home
Um amigo que sem querer perdi algures disse-me uma vez que a música mais noturna que conseguia conceber era a de Bill Evans. Mas nunca se explicou, não teve tempo ou alguma coisa nos separou antes desse tempo chegar. Talvez ele a associasse, imagino-o agora, à sombra longínqua da cave nova-iorquina onde nunca estivera, ao ruído dos copos cheios e vazios por cima das conversas que ouvira em filmes, ao fumo denso dos cigarros exibidos nas capas dos discos. Nunca o contrariei, embora tivesse uma outra percepção, bem mais diurna e próxima do piano de Bill. Tardes quentes da infância com os febrões próprios da infância. O termómetro a subir e os lençóis frescos, mudados de fresco. Uma mosca a espiralar. A luz filtrada pelas cortinas da casa que um dia foi a minha. Os passos suaves da minha mãe na escada exterior. A porta entreaberta e, vindo lá do fundo do fundo do corredor, aquele timbre singular no velho rádio de onda média. Um Bill febril a chegar com a luz do dia.
25 livros para 25 anos
A LER propôs-me para o número de Novembro que destacasse 25 livros de autores portugueses de diferentes géneros publicados ao longo dos últimos 25 anos. Precisamente aqueles que a revista mensal do Círculo de Leitores leva de vida. Eis a minha resposta ao desafio.
Encontrar 25 títulos portugueses que tenham deixado uma marca visível nos meus últimos 25 anos de vida de leitor não foi fácil. Vivendo dos livros, em longas temporadas para eles, custa um tanto, e pode ser um exercício de injustiça, escolher uns porque supostamente são melhores que outros. A solução foi encontrar um critério suficientemente amplo, maleável, mas ao mesmo tempo razoavelmente objetivo, que me deixasse fazer a escolha, sem com ela, ao excluir obras que li com prazer e sublinhei com proveito, sentir que estava a ser arbitrário. Separei assim alguns livros – sempre mais obras do que autores – que em algum momento determinaram um salto na perceção de interpretações, de tempos, de narrativas, de géneros que eles ajudaram a descobrir ou a ver de outro modo. ler mais deste artigo
Distopia 1838
No Dictionnaire des Lieux Imaginaires, Alberto Manguel recorre a uma fábula de Edgar Allan Poe publicada em 1838 para descrever a terra do Silêncio terrível e atraente, naturalmente ficcionada mas nem por isso menos temível. Muito longe ainda dos devaneios ecologistas que no Ocidente despontarão bastante mais tarde, exprime-se aqui, em plena era da afirmação do capitalismo industrial, a sensação do carácter aflitivo, constrangedor, de uma natureza estagnada. A felicidade que muitos concebiam ancorava então no triunfo da máquina, no convívio com o fumo negro das enormes chaminés, no contacto diário com o ruído e a limalha de ferro. Apesar do empolgamento de alguns românticos com a nostalgia da natureza, nada parecia mais estranho, medonho, demoníaco, do que um mundo completamente mudo e paralisado.
SILÊNCIO. Região da Líbia, delimitada pelo rio Zaire, cujas águas, amarelentas e insalubres, jamais atingem o mar, palpitando eternamente sob o Sol, numa efervescência convulsiva. Ao longo de quilómetros o leito do rio encontra-se juncado de gigantescos nenúfares. A região sufoca debaixo de uma floresta maléfica e sombria, com flores envenenadas e uma vegetação rasteira perpetuamente agitada, apesar da ausência de vento. Na margem do rio existe um grande rochedo cinzento no qual um conjunto de caracteres gravados forma a palavra Desolação. Todo o país vive debaixo da maldição do silêncio. A lua permanece imóvel e relâmpago algum perturba o céu, no qual as nuvens permanecem sem trânsito algum. Experimenta-se ali a angustiante sensação de vivermos atacados pela surdez e reduzidos a um total mutismo.