As sandálias do pescador

Quando alguém pede que declare a identidade religiosa costumo descrever-me como um agnóstico cristão. Não é difícil explicar o aparente paradoxo: não concebo racionalmente, nem creio, na existência de um Deus superior, entidade sobre-humana que não esteja apenas dentro de nós e como parte de nós. E muito menos acredito nas virtudes de uma religião capaz de tomar principalmente a forma de Igreja. Prezo muito no entanto a mensagem, revolucionária à época do seu surgimento, proposta por Jesus Cristo. Admiro-a pelo que então trouxe de radicalmente novo: pela defesa da paz e da aceitação numa era marcada pela guerra e pela tirania, pelo acento no ecumenismo num tempo de ódio religioso e poder imperial, pelo reconhecimento da igualdade numa sociedade esclavagista, pela valorização da compaixão e do amor quando a ética dominante assentava na violência, pelo reconhecimento das mulheres dentro de uma sociedade acentuadamente patriarcal, pela ênfase colocada na humildade quando a soberba pontuava a conduta daqueles que se elevavam acima dos outros. ler mais deste artigo

    Apontamentos, Atualidade, Olhares, Opinião

    Demissão ou revolução

    Demissão Já!

    Nenhum governo se demite ou deve ser demitido só porque os seus adversários o exigem em todas as partes, com todas as forças e numa grande algazarra. Se assim fosse, o poder estaria sempre na boca do megafone, o que tornaria qualquer república ingovernável. Mas é verdade que a revolta não se faz em silêncio, com punhos de renda e pezinhos de lã. Faz-se sempre com estrondo, em alta voz, porque aponta para uma mudança urgente e completa, porque corresponde a um clamor pela justiça justa ou porque exprime uma sentida indignação. Mas, ainda assim, ela acontece dentro da ordem constitucional que só uma revolução terá condições para superar. No entanto, existe um limite para a legitimidade desta ordem: quando qualquer forma de poder põe em cheque a soberania popular, governando em nome do povo mas contra ele, apoiando-se no valor do voto mas subvertendo os programas com os quais esse voto foi obtido, cessa então o seu direito a mandar e a sua autoridade transforma-se em tirania.

    Quando, como ontem, o principal ministro do governo PSD-CDS reconheceu publicamente a falência do programa eleitoral, assumiu como um falhanço as medidas de emergência com as quais se subverteu esse programa e declarou solenemente a hipoteca austeritarista do nosso futuro – «o ajustamento [proposto por este governo] terá de continuar durante décadas, exige o esforço de uma geração», disse Gaspar – então nada mais existe que justifique o lugar que ocupa e o ambiente de aceitação que os cidadãos podem ter em relação a quem ainda governa. Diante deste panorama, só existem então três caminhos: ou o governo se demite ou quem tem a capacidade constitucional para o fazer toma essa iniciativa. Mas eu falei de três caminhos, não falei? Pois então o terceiro deles, o que faltava, pode ser a rua a ditá-lo. Demissão rimará então com revolução. Teremos mesmo de chegar aí?

    Nota: Este texto será partilhado na página Demissão do Facebook. Onde se espera que outros surjam e os leitores cliquem. Por mim, na condição dos próprios se sentirem envolvidos na iniciativa, passo o desafio ao Marco Santos, ao Miguel Cardina, ao Nuno Serra, ao Tomás Vasques e ao Zé Neves. Esta proposta, tinha-a recebido do João José Cardoso.

      Atualidade, Olhares, Opinião

      O pesadelo e o grito

      Imagem de Cesarr Terrio
      Imagem de Cesarr Terrio

      As sondagens sobre o sentido de voto nos partidos políticos ou o grau de popularidade dos seus dirigentes são avaliadas consoante os resultados. Quem nas tabelas aparece na mó de baixo declara logo que tais pesquisas possuem «um valor relativo» e no fundo «valem o que valem». Já quem é beneficiado pelos números apressa-se a considerar exprimirem os mesmos «uma tendência que não pode ser ignorada», evidenciando «o estado de espírito do eleitorado». Aquela que acaba de sair, revelando uma inesperada subida de 4 pontos nas intenções de voto no PSD e uma descida dos restantes partidos, ao mesmo tempo que a popularidade do governo continua a cair, deixa muita gente um tanto desconcertada. Afinal o que quer esta populaça bipolar, que se declara vegetariana enquanto deseja um belo bife da vazia? A resposta conhecem-na bem todos aqueles a quem estes resultados desagradam ou perturbam, embora jamais aceitem reconhecê-lo de forma pública e sincera. O evidente, perante tais números, é que um número muito grande de cidadãos não gosta da forma como é governado, mas também não confia nos modos, nos rostos e nas propostas das alternativas mais imediatas à gestão do navio. O Jornal de Notícias titula hoje, a toda a largura do rosto: «Governo É Mau Mas Oposição Não Convence». O Diário de Notícias segue o mesmo caminho: «Governo Continua A Ser Mau, Mas Maioria Não Vê Alternativa». Este é pois – por trás do friso deprimente de Coelhos, Gaspares, Relvas e outros mais de idêntico perfil – o segundo plano do drama no qual afundámos. Alguns chamam-lhe pesadelo. A esperança, a única esperança, reside, como acontece sempre que estamos mergulhados num pesadelo, no facto de o nosso maior desejo ser fugir dele. Ainda que algo de horrível nos tolha as pernas e a língua, há sempre a alternativa de gritar, de estrebuchar. Ou a de nos esforçarmos por intermédio da vontade para procurar uma saída rápida, retornando à realidade.

        Apontamentos, Olhares, Opinião

        Teremos papa

        Face às previsíveis demonstrações de «enorme felicidade», «grande satisfação» e «esperança imensa» mecanicamente debitadas pelos católicos que em relação ao seu papa mantêm um relação de inquestionável fidelidade, surgiram também, logo após a escolha de Francisco para bispo de Roma, os juízos diametralmente opostos de quem, tal como em forma de caricatura alguém escreveu no meu mural do Facebook, ficou logo de pé atrás por se encontrar, provavelmente, «à espera da eleição de um hippie comunista, de um informático libertário ou de um transsexual saído dum bairro da lata.» Tentemos então escapar a este tipo de julgamento, fugindo de juízos apressados. De facto, a biografia do cardeal Ratzinger e o seu comportamento como papa Bento XVI, por constituírem um exemplo recente, deveriam ser suficientes para mostrar que a condição papal, pela dimensão e responsabilidades que envolve, pode reescrever muitos comportamentos e perspetivas. A mesma coisa se passa noutras áreas: assumir uma tarefa de responsabilidade máxima numa instituição de poder e prestígio investe, quem viva tal experiência, numa nova condição. A pessoa continua a ser quem é, mas ao mesmo tempo deixa de ser a mesma. Por isso será preferível esperarmos um pouco, sem crucificar já o novo papa por não se ter comportado neste ou naquele momento como eventualmente gostaríamos que se tivesse comportado. E sobretudo evitemos julgá-lo antes de fazer o quer que seja, para além de pronunciar umas palavras de circunstância na Praça de São Pedro e de dar aos fiéis a tradicional benção urbi et orbi. Ou por um passado com episódios mal conhecidos, que pode até não ter sido propriamente simpático, mas sobre o qual existem também muitos boatos e suposições. Cá estaremos para escrutinar aquilo que, na nova e pesada qualidade de sucessor de Pedro, o argentino Francisco vai dizer, escrever e fazer para os seus e perante o mundo inteiro. Ou pelo lado obscuro que possa eventualmente ter omitido do currículo. O «tempo de graça», como se sabe, é sempre curto. Mas um pouco de esperança, ainda que passageira, não faz mal a ninguém.

          Apontamentos, Atualidade, Olhares

          Péssimo sinal

          Pergunto-me, tal como se perguntará uma larga franja de portugueses interessados na queda do atual governo e na construção de uma solução de governabilidade à esquerda, se o PCP e o Bloco se darão conta da extrema gravidade que comporta o gesto de recusarem (o PCP abertamente, o Bloco implicitamente, dada a visível falta de empenho) a proposta do Partido Socialista e de António José Seguro para discutir eventuais alianças nas eleições autárquicas. É verdade que um dos flancos politicamente mais discutíveis, pessoalmente mais duvidosos e administrativamente mais obscuros do PS se define ao nível de boa parte das suas escolhas autárquicas. Vivendo e sendo desde há muito eleitor na cidade de Coimbra, estou particularmente habilitado para confirmar esta triste realidade. E sei perfeitamente que existe, aqui como em todo o país, um longo caminho a percorrer para que a aproximação à esquerda ocorra e sem desenvolva de um modo dinâmico e transparente, no respeito mútuo e no interesse da maioria dos cidadãos. Boa parte desse caminho será, aliás, forçosamente da responsabilidade do próprio PS. Mas não dar sequer ensejo a conversas sobre hipotéticas alianças a nível local, reagindo «de pedra na mão», constitui não só um ato de hostilidade em relação à possibilidade de construir alianças voltadas para a política do país como uma forma de mostrar publicamente que o sectarismo está longe de ser ultrapassado. Aceitando aproximações apenas se forem as «nossas regras» a determiná-las ou colocando sempre o acento tónico nas diferenças e nas divergências, apesar do tempo que vivemos, no qual uma rápida mudança de políticas associada a um vasto consenso eleitoral é, obviamente, a única solução para evitar o estado de calamidade e o salto do país para o mais negro dos abismos. O sinal que está a ser dado é negativo e deixará sequelas. E é também um fator de redução dessa dimensão de esperança sempre decisiva em tempo de mudança.

            Atualidade, Olhares, Opinião

            O passado, de visita

            Maio de 1968

            Merece um post detalhado que escreverei adiante. No entanto, chamo desde já a atenção para a saída de As Armas de Papel, de José Pacheco Pereira (ed. Temas & Debates – Círculo de Leitores), grosso volume que funciona como um dicionário-arquivo das publicações periódicas e de exílio ligadas aos movimentos radicais de esquerda cultural e política emergentes na década que antecedeu o 25 de Abril. Interessará em primeiro lugar aos historiadores e a um público empenhado em conhecer de forma mais completa e menos unívoca a atividade dessa parte da oposição política ao anterior regime que teve, desde o início, o objetivo de transformar a queda deste no lançamento de uma alternativa revolucionária ao capitalismo indígena e ao sistema colonial que o sustentava. Mas, mais do que isso, oferece aos olhos de quem o não conheceu, ou dele na época teve uma visão parcial e sectária, o retrato de um mundo dinâmico e alternativo, que tinha rompido completamente o cordão umbilical com o universo mental do salazarismo e também com o da oposição mais ortodoxa ou reformista. Produzindo ao mesmo tempo um microcosmo incandescente que influenciou, de uma forma ou de outra, parte significativa da elite política e cultural portuguesa das últimas décadas. Não se trata de perceber a ligação de tudo isto com aquilo em que, cerca de meio século depois, esses largos milhares de pessoas se transformaram, mas sim de ver, com a mão em muito dos papéis que as moldaram politicamente e deram sentido aos seus combates de então, o caldo de cultura de distanciamento radical com o país antigo e «habitual» que estes documentos bem ilustram. Para os conhecermos depois em maior detalhe existem os arquivos físicos e digitais, naturalmente, mas esta é uma boa introdução ao tema. De caminho, uns quantos revisitarão ainda, através destas páginas, uma parte do seu passado que também é nosso.

              História, Memória

              Mulheres e Mulherzinhas

              O Dia Internacional da Mulher, evocado como momento de rebelião e protesto no Portugal pré-Abril – devido ao lugar visivelmente secundário, marcado pela exploração material e pela depreciação cultural, que nele ocupavam as mulheres – foi-se banalizando nos últimos anos, e, tal como aconteceu com o Dia das Mentiras ou o dos Namorados, transformando num engodo para o consumo. Não que a data tivesse deixado de ser importante e não tenha permanecido na agenda dos movimentos e dos cidadãos cientes de que a emancipação das mulheres é uma tarefa apenas iniciada. Mesmo no mundo no qual estas são formalmente iguais em direitos e deveres e não precisam sair à rua com o rosto tapado ou vigiadas pelo marido. O que acontece é que a trivialização da data fez com que ela passasse a ser evocada também por mulheres com uma noção frágil da sua própria emancipação, confundindo-a apenas com a presença na rua e no mercado de trabalho, e ainda por homens que com o seu gesto de «homenagem às senhoras» apenas reforçam a desigualdade e o preconceito. São as mesmas e os mesmos que têm pavor do feminismo – grosseiramente julgado como expressão de uma hipotética luta «das mulheres contra os homens» ou de uma «recusa do feminino» – e que alimentam esta versão caricatural do 8 de Março. Na verdade, do que falam é do «Dia da Mulherzinha», essa criatura débil, frágil e desejavelmente rosada, decalcada do livro autobiográfico de Louisa May Alcott publicado há quase século e meio. A mulherzinha que se realiza no «final feliz», eventualmente consumado no casamento e na maternidade, mas, de facto, que permanece no seu lugar decorativo, dependente e subalterno. Mesmo quando sobe à tribuna, conduz um trator com presteza, toca pandeireta numa tuna ou dirige a economia familiar.

                Apontamentos, Atualidade, Olhares

                O inútil caminho do ódio

                O ódio contra alguém começa devagar, mas se não é atalhado não para de crescer. Ele parte de uma aversão nebulosa, alimentando-se do rancor e jogando-se na inimizade e na repulsa que afastam até um ponto de não retorno. Mas não é meramente passivo: o ódio leva quem o vive a tentar isolar, a procurar destruir, a tudo fazer para abalar as ideias, a forma de estar, o passado, o presente e o futuro de quem tanto se detesta. É um sentimento mórbido, que cega sem remissão, que avilta, que nada produz, que coage a liberdade e tiraniza quem o vive. Além disso, raramente age de forma frontal: por regra denigre, insinua, alimentando-se de rumores, de meias-verdades e de mentiras. Nada tem a ver com o reconhecimento da diferença ou com o combate limpo contra as ideias da pessoa da qual se discorda, de quem não se gosta e que se rejeita. ler mais deste artigo

                  Democracia, Memória, Opinião

                  Como arruinar um projeto em 144 páginas

                  Na História Politicamente Incorreta do Portugal Contemporâneo (De Salazar a Soares), editada há pouco pela Guerra & Paz, Henrique Raposo, o cronista do Expresso também «licenciado em História e mestre em Ciência Política», considera existir um padrão dominante no interior da historiografia nacional que é preciso meter na ordem. Este funcionaria como uma espécie de vírus, desvirtuando e falsificando o conhecimento que temos do século passado a partir da perspetiva vitoriosa da esquerda. Considerando-a intrinsecamente nefasta e objetivamente falsa, propõe-se então contribuir para atenuar essa influência. Resume-a neste livro através de um complexo de «mitos» que pretende questionar. Identifica essencialmente cinco: o de Salazar como mera criatura da Igreja católica, o de um Mário Soares sem o qual Portugal de facto não teria entrado na Europa, o do Estado Novo vergando os portugueses à irrevogável pobreza, o de uma esquerda que vez alguma fora «colonialista», e, por fim, o da hegemonia cultural da mesma esquerda como tendo começado antes do 25 de Abril e fechado as portas logo no final de 1975. A narrativa de Raposo procura negar radicalmente estes juízos, anunciados como fábulas. ler mais deste artigo

                    Atualidade, Olhares, Opinião

                    Tudo depende de nós

                    Fotografia de Vesselin Vitanov
                    Fotografia de Vesselin Vitanov

                    Em A Ironia do Projeto Europeu parte-se de uma constatação: estamos de regresso a um ponto de partida do qual, ao longo das últimas décadas, jamais ponderámos reaproximar-nos. Há um século, como lembra Rui Tavares no início deste ensaio, a Europa contava com condições económicas, políticas e tecnológicas excecionais para construir «um sistema de cooperação entre nações fundado sobre a emancipação pessoal». Porém, muitos dos problemas verificados, «da finança descontrolada à legitimidade política esvaziada», antecipavam já aqueles com os quais hoje de novo nos confrontamos. Sabe-se que nessa época foi a Primeira Guerra Mundial a solução encontrada para supostamente resolver o dilema, mas tal não significa que estejamos hoje em condições de repetir a péssima receita. Existem demasiados interesses, combinados e sem um responsável identificado, para escolher um território físico e um inimigo contra o qual fazer agora marchar os exércitos. Ainda assim, e é essa uma das preocupações presentes neste livro: paira uma pulsão de violência imposta pela exacerbação das contradições e dos consequentes conflitos entre os Estados, os grupos sociais e os indivíduos. Por isso este livro apresenta uma reflexão sobre a contradição, em cenário de crise, entre crescimento e desigualdade, e também sobre a sua possível superação, procurando mostrar de que modo, apesar da propensão para o bloqueio e o conflito, existem condições para reconquistar uma democracia transformadora capaz de ajudar a Europa a regenerar-se e os europeus a lançarem-se num novo estádio de desenvolvimento. ler mais deste artigo

                      Atualidade, Opinião

                      Esperar desesperando

                      Fot. Paulo Pimenta / Público
                      Fot. Paulo Pimenta / Público

                      Encontrei na semana passada uma amiga brasileira que não via há algum tempo. M. vivera uma época em Portugal, que então percorrera de uma ponta à outra e conhecera bastante bem, até que há cerca de dois anos regressara por motivos familiares à sua cidade de origem. Agora de volta, depois de todo este tempo, para nós aparentemente sem fim, durante o qual o país sofreu o choque imenso que conhecemos, ocorreu-me perguntar-lhe se sentia alguma diferença visível entre o Portugal que deixara e aquele ao qual agora retornava. Aquilo que me respondeu não me deixou surpreendido: «Com certeza que sim, de imediato. E o que mais me impressionou foram as mudanças na cara das pessoas. Um ar de contrariedade, de desgosto, um semblante de tristeza e de falta de confiança, um rosto rígido que eu não conhecera antes, um olhar diferente e talvez um pouco perdido.» A nossa memória diz-nos a mesma coisa, mas pronunciada desta forma, a partir do ângulo de observação de quem não viveu o dia-a-dia da nossa dramática mudança, a descrição de M. funciona como um abalo. ler mais deste artigo

                        Acontecimentos, Apontamentos, Atualidade

                        O intelectual público

                        Tony Judt

                        «Um historiador (ou qualquer outra pessoa) sem opiniões não é muito interessante, e seria de facto estranho que faltassem ao autor de um livro sobre a sua própria época pontos de vista incómodos sobre as pessoas e as ideias que a dominaram.» A afirmação é de Tony Judt e surge no posfácio de Pensar o Século XX, o seu derradeiro livro. De certo modo, ela explica o cenário de fundo diante do qual todo o volume se desenrola: o de uma extensa viagem, sob a forma de um diálogo do autor com o historiador americano Timothy Snyder, através da sua própria vida, do seu percurso profissional, das suas escolhas, e ainda, apesar da obra ter sido concluída alguns dias apenas antes da morte anunciada, dos planos que tinha e em relação aos quais não deixava de revelar um admirável entusiasmo e uma inexplicável esperança. Denunciando em todas as situações, em cada uma das posições que tomou e dos projetos nos quais se envolveu, uma curiosidade, uma agudeza crítica e uma autonomia que pontuaram as suas escolhas e se descobrem agora no seu legado. ler mais deste artigo

                          História

                          Portugal numa biografia

                          Jorge Sampaio

                          Num tempo em que os rostos mais ativos e reconhecidos da coisa pública, em particular aqueles que integram os partidos do chamado arco da governação, pertencem já a uma geração que cresceu e se formou politicamente em democracia – não tendo vivido o risco da perseguição pessoal ou da privação da liberdade devido às suas opiniões ou escolhas políticas – é bom ter à mão uma obra como esta biografia de Jorge Sampaio, da autoria do jornalista José Pedro Castanheira. O primeiro grossíssimo volume, dos dois previstos, foi lançado em novembro passado. A justificação mais imediata do seu interesse, associada a esse défice geracional de memória, não é difícil de determinar: ecoa aqui o percurso pessoal e político de um homem independente, embora sempre alinhado à esquerda, iniciado numa altura, a da fase final do Estado Novo, na qual adotar essa escolha política requeria coragem, e prosseguido depois num tempo, imediatamente posterior à instauração do novo regime em 25 de Abril, em que a instabilidade da governação e a difícil aprendizagem da democracia exigiam uma entrega muito grande, permanente, a quem se envolvesse na luta partidária e no funcionamento das novas instituições. ler mais deste artigo

                            Biografias, História, Memória

                            A outra China

                            Ao lado dos campos de batalha das duas Guerras Mundiais e das campanhas de extermínio levadas a cabo pelos grandes regimes totalitários, as principais mortandades do século passado já não foram determinadas por epidemias, como acontecera recorrentemente em tempos mais recuados, mas antes pela fome. O mais doloroso e inaceitável é que elas ocorreram como consequência de uma política consciente e deliberada de governos que teriam, supostamente, a obrigação de prevenir, ou no mínimo de reduzir, o seu impacto. Estima-se que o Holodomor, a fome de caráter genocidário, hoje já bem conhecida nas circunstâncias e nos números, que devastou a Ucrânia em 1932-1933, enquanto em Moscovo se proclamavam as «vitórias», quase todas fictícias, do 1º Plano Quinquenal, de acordo com as estimativas menos pessimistas terá feito entre 5 e 6 milhões de vítimas. Nada de comparável, porém, à Grande Fome, que na China sobreveio entre 1958 e 1962, durante a qual o número de pessoas mortas devido aos seus efeitos terá muito provavelmente rondado os 45 milhões. ler mais deste artigo

                              História, Memória

                              O elétrico vermelho

                              Num livro sobre o levantamento, o apogeu e o fim da Cortina de Ferro publicado há poucos meses pela Doubleday (Iron Curtain: The Crushing of Eastern Europe), a jornalista e historiadora norte-americana Anne Applebaum, conhecida por ser a autora de uma das mais sérias e completas obras sobre a origem, a organização e o funcionamento do Gulag soviético, conta-nos um episódio extraordinário. Ele ocorreu em Varsóvia já depois de terminada a guerra, num belo dia do verão de 1945. Seguia um funeral por uma das muitas centenas de ruas reduzidas a destroços na altura da retirada pelos nazis quando os seus tristes acompanhantes depararam de repente com uma cena extraordinária: um verdadeiro carro elétrico varsoviano, vermelho como sempre mas o primeiro a cruzar a cidade depois do fim do conflito, fazia o seu percurso tocando a sineta. As pessoas nos passeios estacaram todas, surpreendidas, e muitas desataram a correr atrás dele, enquanto outras batiam palmas e gritavam vivas. E então o funeral parou, os seus enlutados participantes esqueceram por momentos o corpo gélido que conduziam à última morada, e envolvidos na euforia geral viraram-se para aquele elétrico saído das cinzas e começaram, também eles, a bater palmas. Por um instante, uma espantosa vibração de esperança e de vida esmagou, gloriosa, a fixidez da morte.

                                Apontamentos, Memória, Olhares

                                Uma sombra de medo

                                De repente, uma sombra de medo começou a pairar sobre as cabeças de muitos dos nossos políticos de tribuna e comentadores de cátedra. Um medo não declarado, mas certo e percetível. Medo da atual vaga de protestos «antidemocráticos» e não conduzidos – materializados, veja-se a desfaçatez, na propagação pacífica da bela canção de fraternidade que anunciou o fim da ditadura – poder mostrar ao comum dos cidadãos que o exercício da democracia não se limita a depositar o voto na urna e, de seguida, a hibernar durante quatro anos com a consciência tranquila e a boca fechada. Passando uma procuração com plenos poderes aos governantes e aos deputados eleitos, inimputáveis durante toda uma legislatura ainda que já nem se recordem do rosto dos seus eleitores e, sem ponta de vergonha, tenham rasgado o contrato que com eles assinaram. ler mais deste artigo

                                  Apontamentos, Atualidade, Opinião