A distopia da qual se fala

Quando se buscam os fatores partilhados de disfunção da grande utopia comunista que conduziram os Estados do «socialismo realmente existente» à situação cataléptica que decidiu a sua morte, alguns revelam-se particularmente evidentes. Desde logo aqueles que se reportam às rígidas políticas de engenharia social que determinaram êxodos de povos inteiros, fomes que poderiam ter sido evitadas ou uma atitude política de exclusão determinada pela origem social do reprimido, ainda que esta se encontrasse associada a uma quota significativa da população. São também recorrentemente mencionadas as condições de ausência de liberdade de crítica, que bloquearam as sociedades e até os próprios partidos no poder, assim como o espartilho de uma economia rigidamente planificada e burocratizada, através da qual se assinou a sentença de morte de um crescimento equilibrado e a incapacidade de suprir as necessidades reais da população. Outro aspeto conhecido mas habitualmente menos abordado diz respeito à formação e ao funcionamento das elites políticas e administrativas, as chamadas nomenklaturas, que emergiram da conceção leninista do partido como vanguarda e «exército de revolucionários profissionais» para se destacarem progressivamente como casta privilegiada, inamovível e cega face às transformações de um mundo em constante e cada vez mais rápida mudança.

Talvez o melhor exemplo do seu funcionamento seja o fornecido pela estranha microcidade de Waldsiedlung Wandlitz. Erguida a cerca de 30 quilómetros a norte da zona leste de Berlim, foi aí que entre 1960 e 1989 fixaram residência oficial os membros do topo da classe dirigente da ex-República Democrática Alemã. Existem numerosas descrições do aspeto e da «vida» daquele bairro, o «gueto dos deuses» como lhe chamavam as pessoas comuns, completamente fechado por um forte cordão de segurança e habitado por homens idosos acompanhados das suas taciturnas esposas. Pessoas que se temiam e se vigiavam constantemente, que eram vizinhos quase sem falarem uns com os outros fora das monótonas funções oficiais e das repetitivas liturgias, mas que gozavam de privilégios inacessíveis para a generalidade dos cidadãos. Todavia, em nenhum Estado este modelo foi codificado de uma forma tão perfeita quanto o foi, e como tal permanece, na Coreia do Norte.

Deteta-se aí o princípio da seletividade em todos os favores que são dispensados pelo regime aos anéis centrais da sociedade. A sociedade norte-coreana é rigidamente regida pelo Songbun, uma listagem, periodicamente revista, que distribui as pessoas em 51 categorias, de acordo com os seus pergaminhos de nobreza revolucionária e os seus méritos. O Songbun determina onde habitar: na capital, onde residem os mais privilegiados, o bairro de Mansundae é uma área especial,  situando-se ainda dentro desta o espaço protegido de Potong-Gang, uma espécie de Olimpo semelhante ao de Wandlitz, na RDA, onde habita a nata da nata do Partido. O Songbun determina também o regime alimentar: hipercalórico para a elite, 750 gramas de cereais por dia para os grandes privilegiados, 450 gramas para os menos privilegiados (o mínimo vital segundo a ONU é de 473 gramas ao dia), e a fome, por vezes o canibalismo, para os restantes cidadãos (a malnutrição afeta mais de 30 % dos norte-coreanos). A educação, nomeadamente a educação universitária, é também ela estritamente regulada pelo Songbun, e apenas os filhos da fina-flor do regime têm acesso à prestigiada Universidade Kim Il-Sung, onde se ensina «cientificamente» a direção ideológica do Estado. Mais: este inunda de presentes os responsáveis que cumpram de forma mais perfeita e completa as indicações da direção partidária: roupa, eletrodomésticos e até automóveis são oferecidos de uma forma codificada, que compensa os dirigentes partidários ao mesmo tempo que determina a sua escala de importância. É este sistema, profundamente hierarquizado e que «marca para a vida» os seus cidadãos, que se apresenta como solução para a desigualdades impostas pela desordem do capitalismo. E que se arroga o direito de ameaçar com uma guerra nuclear para o obter.

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