Resultados da pesquisa por: fumar

Fantasia reaccionária

Os bons velhos tempos

Desde que em 2006 entrou em vigor em Espanha a legislação destinada a reprimir o ancestral hábito de fumar, diminuiu o consumo do tabaco mas cresceu o número de fumadores. Em 2009, 31,5% dos nuestros hermanos afirmou fumar, no mínimo, de forma moderada, quando três anos antes a percentagem era de 29,5%. A diferença seria insignificante se não derrotasse os objectivos «profilácticos» da lei e não servisse agora de justificação para impor regras ainda mais severas e restritivas. A verdade é que ao longo destes anos elas se mantiveram razoavelmente suaves e de aplicação bem mais flexível do que aconteceu em Portugal, como qualquer cidadão pode constatar, entre três passas e outras tantas baforadas, de cada vez que cruze a linha de fronteira e avance até à distância de um tiro de bacamarte. Porém, se tudo for agora uniformizado pelo diapasão do antitabagismo furioso, deixaremos de distinguir o «mau vento» que a nicotina insinua e sofrerá rude golpe a castiça defesa da identidade dos nossos ares. Sejamos claros: lá no fundo, os defensores espanhóis de uma lei mais severa são iberistas disfarçados ou então ressabiados de 1640. Por isso, se os de Madrid aprovarem as suas normas mais limitativas, apenas nos restará, em nome da pátria dos Pereiras, dos Albuquerques, dos Mouzinhos e dos Coutinhos, um voluntarioso regresso ao uso liberal do Provisórios e do Três Vintes.

    Apontamentos, Devaneios, Memória

    Auschwitz Gulag | 2. A sentença

    Varlam ShalamovNascido em 1907 na cidade russa de Vologda, durante a juventude o escritor, poeta e jornalista Varlam Shalamov participou das actividades do grupo literário esquerdista LEF. Em Fevereiro de 1929, quando era estudante da Universidade de Moscovo, foi detido pela primeira vez sob a acusação de difundir o «testamento político» de Lenine. Tratava-se de uma das últimas cartas do dirigente bolchevique, na qual este apontava a necessidade de afastar Estaline do cargo de secretário-geral do Partido Comunista. Nos anos trinta, a difusão do documento, considerado apócrifo pelas autoridades, iria custar a vida a diversas pessoas. O escritor passou então cerca de três anos em campos de concentração nos Urais. Em 1937 foi novamente detido e enviado para a Sibéria Oriental, para Kolima, um dos mais mortais campos do Gulag. Primeiro como prisioneiro e depois como deportado, ali permaneceu até 1953. Seria completamente reabilitado em 1956, após o XX Congresso do PCUS. Os Contos de Kolima, de um dos quais se transcreve aqui um fragmento, foram escritos entre 1954 e 1973 com um cunho acentuadamente autobiográfico, mas só começaram a ser publicados em revistas e jornais literários nos anos da perestroika. Durante a vida, Shalamov apenas conseguiu publicar cinco colectâneas de poesia, tendo morrido sozinho, cego, surdo e sem meios pessoais em 1982.

    Os homens surgiram do nada, uns atrás dos outros. À noite, um homem desconhecido deitava-se na minha tarim­ba, encostava-se ao meu ombro ossudo, transmitindo-me o seu calor – gotas de calor – recebendo o meu em troca. Havia noites em que nem sequer uma gota de calor chegava até mim através dos farrapos de um casaco, de um jaquetão acolchoado. E, de manhã, olhava para o vizinho como para um cadáver e ficava admirado quando via que o cadáver estava vivo, se levantava ao som dos gritos, se vestia e cum­pria obedientemente as ordens. Eu tinha muito pouco calor. Nos meus ossos restava muito pouca carne. Bastava apenas para ter raiva, o último dos sentimentos humanos. O último dos sentimentos humanos, o mais próximo dos ossos, não é a indiferença mas a raiva. O homem, que aparecia do nada, desaparecia de dia: na mina de carvão havia muitos sectores, e desaparecia para sempre. Não conheço as pessoas que dormiram ao meu lado. Nunca lhes fiz perguntas, não porque seguisse o provérbio árabe: não perguntes para que não te mintam. Era-me indiferente que me mentissem ou não, eu estava para além da verdade, para além da mentira. Sobre isto os criminosos têm um ditado severo, claro e gros­seiro, cheio de um desdém profundo para quem faz a per­gunta: se não acreditas, pensa que é um conto de fadas. Eu não perguntava e por isso não ouvia contos.

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      Democracia, História, Memória

      Por um cigarro em paz

      Um cigarro em paz
      Soldado republicano fotografado na frente de Madrid

      Já sabia que tinha acontecido assim, mas a crónica de Antonio Muñoz Molina no Babelia reavivou-me a memória de uma ocorrência que sempre achei perturbante. Mesmo quando fazia por acreditar em absolutos e na límpida separação entre o bem e o mal. Sobreviventes anónimos da Guerra Civil espanhola recordam insistentemente, conta Molina, como fora das áreas de combate o mais duro de suportar era, para além da fome, a falta de tabaco. Este faltava na zona republicana, pois era produzido na Estremadura e nas Canárias, controladas desde o início pelos franquistas, mas nas áreas administradas pelos insurrectos não havia papel de fumar de boa qualidade, uma vez que as fábricas estavam em regiões nas mãos da República. Organizavam-se então encontros perto da linha da frente para que os dois produtos fossem trocados e pelo menos alguns pudessem experimentar desse «alívio plácido após uma longa privação».

      Episódios de uma camaradagem desta natureza, entre populações situadas em campos adversos ou mesmo entre inimigos, são comuns em situações de conflito e aconteceram também durante as nossas Guerras Coloniais. Um antigo comandante guerrilheiro do MPLA descreveu-me certa vez o modo como os seus combatentes, sabendo que os opositores directos iriam passar pelo mesmo trilho e estavam há muito tempo isolados, deixavam afixados num papel espetado numa árvore os resultados do campeonato português de futebol da Primeira Divisão. Se fosse o caso, alguns portugueses faziam a mesma coisa. Outras vezes metiam-se uns com os outros, de maneira quase amigável, a propósito de certas simpatias clubísticas: «no domingo vão ser cinco a zero!», «vocês ontem não jogaram nada, cabrões». Episódios que reforçam o particular absurdo das guerras atravessadas por um passado partilhado e uma língua comum.

        Apontamentos, História, Memória

        Ton style

        Maiakovski

        São muitas as fotografias de Vladimir Maiakovski nas quais este segura um cigarro aceso entre os dedos ou suspenso dos lábios. Sabemos como ao longo daquele século que deixámos para trás – existem livros inteiros sobre isso – o cigarro, para além do prazer sem constrangimentos que podia oferecer ou do vício pesado que teimava em perseguir, funcionava como um emblema de estilo, associado frequentemente a figurações de mistério, poder, volúpia ou inteligência. Aquilo que apenas hoje soube é que Maiakovski, proibido de fumar desde a juventude devido a doença pulmonar, insistia em exibir um cigarro aceso sempre que era fotografado. O que confirma o velho e sábio princípio dândi de acordo com o qual o estilo pode ser, é, um valioso arrimo da própria vida.

          Apontamentos, Olhares

          Imagens da Frente

          Um pequeno e precioso livro, este que hoje encontrei por acaso. Em formato de bolso, 50 ou 60 páginas não numeradas, com esparsas palavras e imagens a branco e preto do fotógrafo espanhol Luis Baylón (Blur Ediciones). Chama-se Sólo Fumadores e nele podemos observar engraxadores, empregados de mesa, prostitutas, banqueiros, donas de casa, empresários, estudantes, sujeitos com um aspecto razoavelmente abonado e outros claramente lumpen. Pessoas que partilham um mesmo prazer, e às quais – não será exagero do editor – «o tabaco conseguiu igualar como nenhum sistema político e social ao longo da história». Fotografias de fumadores, reflectidos em flagrante delito, naqueles lugares infectos e condenados à ignomínia onde agora são forçados a refugiar-se. Ruas frias e chuvosas, praças inóspitas, portais dos edifícios, bares «de tolerância» (onde os pecadores são tolerados), divisões-ghetto de lugares que por instantes, e por enquanto, ainda lhes vão consentindo o vício. «Um canto à liberdade, ao direito a escolher e, por isso, a equivocar-nos», anuncia o texto prévio. Pois se fumar, tal como a vida, mata, os fumadores são capazes de entender que, apesar desse inconveniente, «tanto um como a outra merecem ser fruídos intensamente e sem medo».

            Apontamentos, Olhares

            Por exemplo

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            O ex-chanceler social-democrata alemão Helmut Schmidt, de 89 anos, e a sua mulher Loki, de 88, foram ambos processados por autoridades policiais de Hamburgo após terem sido denunciados por uma organização de vigilância e pressão de não-fumadores – sim, parece que na Alemanha já há disto – que os acusa de terem fumado durante um acto público num teatro da cidade. De acordo com o El País, Schmidt foi operado por duas vezes devido a problemas cardíacos mas fuma sem parar cigarros mentolados e gaba-se mesmo de o fazer como um acto de desobediência civil e expressão da sua própria liberdade («eu só não fumo na igreja», declarou há dias). Loki Schmidt é um pouco mais diplomática e objectiva: «os médicos aconselham-nos a não deixar de fumar pois isso provocaria uma situação de stress para o nosso corpo».

              Atualidade, Olhares

              Agrião obrigatório

              O meu último post de 2007 era previsível e contém, digamos, uma espécie de declaração de derrota.

              Desde que o proibicionismo antitabagista se preparou para substituir as campanhas contra os malefícios do tabaco, insisti na ligação entre o gozo de fumar e práticas culturais tão válidas quanto o são aquelas que associamos ao consumo do álcool e do café. Serão males que, para muitas pessoas, se foram traduzindo num bem maior: o acesso a um padrão de vida que têm todo o direito de escolher. Em seu nome – e apesar de quase não fumar ou consumir bebidas alcoólicas – fui tomando aqui e ali a defesa de uma política equilibrada, capaz de combinar os interesses de todas as partes.

              Em vão, pois no final ganhou uma delas. Aquela que foi capaz de associar uma maioria de políticos e legisladores profissionais – que procuram mostrar um «ar de modernidade» empurrando, hipocritamente, concidadãos para um gueto – à minoria de fanáticos e exaltados que entende ser a sua maneira de viver a única irrepreensível e aquela que merece todos os direitos de cidadania.

              Por isso deixarei praticamente de fumar, uma vez que apenas o fazia em sociedade e não aceito passar a ser tratado a partir de agora como um pária. Confinado a expelir baforadas furtivas em pátios e portarias, exposto à chuva, ao vento e ao opróbrio dos higienistas triunfantes. Mas vou vingar-me nas carnes verdes, pois a minha esperança de vida ainda integra a possibilidade de me ver um dia reduzido ao consumo obrigatório do agrião, do nabo e da cenoura. Não posso perder tempo.

                Atualidade, Opinião

                Vício solitário

                Dentro do grupo dos fumadores, faço parte de uma minoria que vai ser especialmente oprimida a partir do dia 1 de Janeiro. Acontece que gosto de fumar mas não sou viciado em tabaco: fumo apenas enquanto leio ou escrevo, no final de uma refeição mais forte ou demorada, em alturas sociais como jantares de amigos, aniversários, casamentos ou funerais. Além disso, pergunto sempre se incomodo antes de acender o cigarro, a cigarrilha ou um ocasional charuto, e jamais o faço em reuniões ou salas-de-espera, ou perto de crianças e de idosos não-fumadores. Depois não «travo o fumo», não o engulo, saboreio-o simplesmente, expelindo-o devagar e, por vezes, limpando com as mãos a nuvem que se forma. Um maço dá-me assim, à vontade, para três ou quatro dias. Na verdade fumo «culturalmente», levado, como acontece com todos os que fazem parte desta minoria, apenas pelo gosto genuíno de fumar e pela memória preservada do gesto. Parece-me assim injusto – além da nada razoável – que um hábito educado e pacífico passe a ser tomado como novo «pecado do vício solitário», execrado pelos moralistas de turno. Mas não me espantarei se estes vierem dizer-nos que provoca a cegueira, causa a impotência e conduz ao inferno.

                  Apontamentos, Olhares

                  Estante

                  Alguns posts um pouco menos efémeros.

                  A esquerda e a ecologia do rancor | 4Fev2015 – Como é possível unir se se começa por condenar e excluir?

                  Como viver sem otimismo? | 20Jul2013 – Apesar de tudo, da sordidez e do desânimo, ainda há a esperança.

                  O historiador mudo | 14Ago2012 – A ficção do historiador «sério» que não sai do seu recanto.

                  Isaac Babel e as canções desafinadas | 17Set2011 – Um «herói do povo soviético»  quase esquecido.

                  O combate pela dignidade na memória do Gulag | 4Dez2009 – Sobrevivência e literatura da esperança.

                  Anticomunismo e poética do comunismo | 8Nov2009 – Nos 20 anos sobre a Queda do Muro de Berlim.

                  Se nos calarmos por um momento | 16Ago2009 – Vivemos tempos bem difíceis para a rebeldia.

                  Riso Soviético | 30Nov2008 – A propósito do lugar do humor sob o «socialismo real».

                  Holden, eu e os Led Zeppelin | 8Ago2007 – Pretexto para partilhar um fragmento da memória pessoal.

                  Sapatos Vermelhos | 15Jul2007 – Sobre Foi Assim, o livro autobiográfico de Zita Seabra.

                  Deselogio das Aspas | 13Jul2007 – As aspas como «grilhões da palavra ou instrumentos da tolice».

                  O Vício Esplêndido | 4Abr2007 – O hábito de fumar como prática cultural e objecto de perseguição.

                  A Imensa Tristeza | 13Ago2006 – Uma Cuba contemporânea na sua literatura da emigração.

                  Os 10 posts da série Outubro, publicada em 2007-2008, foram retirados, uma vez que foram revistos e ampliados para a edição do livro homónimo (editora Angelus Novus).

                    Certa gente não entende

                    smoke plus

                    Este post insiste num tema aqui recorrentemente abordado. Trata-se apenas de (mais) um acto de legítima defesa.

                    Faço parte de uma minoria. Aquela que hoje é composta, pelo menos na metade ocidental do hemisfério de cima, pelas pessoas que têm o hábito de fumar. Mas dentro dessa minoria, pertenço ainda a uma outra. Uma subminoria, chamemos-lhe assim. Ela integra os que fumam sem ser por vício – queimo cinco ou seis cigarros por dia, mas sou perfeitamente capaz de passar dias sem fumar – e apenas o fazem por prazer ou por um hábito cultural. Sei que somos cada vez menos e não vejo mal algum nisso: ainda bem também há cada vez menos pessoas a fumar. Mas não posso deixar de lamentar a legislação pesada e autoritária (e um tanto fascistóide) que hoje mesmo a Assembleia da República vai aprovar. Porque ela implica com a minha identidade cultural e uma dimensão de liberdade individual que agora vejo coactada. Ainda que, naturalmente, aceite restrições razoáveis que favoreçam os não-fumadores (há uns bons dez anos, por exemplo, que deixei completamente de fumar em aulas e reuniões).

                    Por tudo isto me incomoda particularmente uma posição como aquela expressa por um articulista que o Público coloca hoje ao mesmo nível de Vasco Pulido Valente (partindo embora de um ponto de vista radicalmente oposto). Declara ele a dado passo que nada custará a um fumador prescindir do seu cigarro nos escassos 15 minutos em que possa parar algures para tomar um café. Para mim, porém, é mesmo aí que bate o ponto: acontece que existem pessoas que não «passam» apenas uns minutos por um café, entre duas tarefas de um quotidiano de permanente stress, mas que «vivem» horas em cafés. Para conviver, trabalhar ou, simplesmente, para olhar para anteontem, opção que me parece democraticamente aceitável e que os desempregados conhecem muito bem. Trata-se de uma marca cultural que o ocidente foi construindo pelos menos desde os inícios do século XVIII e que, em outras partes do planeta, mantém ainda alguma pujança civilizacional. Mas isto, certa gente, perdida nos seus intermináveis projectos e balancetes entremeados por «um cafezinho», simplesmente não entende.

                      Apontamentos, Atualidade

                      O Quê? Onde?

                      Ainda o espectro do fundamentalismo antitabagista, pois um dado novo faz-me regressar ao tema. De acordo com um estudo divulgado hoje pela Comissão Europeia(*) e noticiado em publico.pt, 9 em cada 10 portugueses apoiam a proibição de fumar em espaços públicos fechados, com uma clara maioria (cerca de 91%) a defender que a interdição abranja restaurantes e bares, e um pouco menos (88%) a exigir que ela seja alargada a aeroportos, estações de metro e lojas. Muito acima da média europeia, segundo parece. O curioso é que o mesmo inquérito revela que os fumadores portugueses — um em cada quatro inquiridos (24%, quando na União a média é 32%) — são daqueles que mais fumam, já que a esmagadora maioria (97%) fá-lo todos os dias, e 38% fumam mesmo mais do que um maço de cigarros por dia (a média comunitária é de 26%). Conclusão lógica: ou uma grande parte dos portugueses prefere fumar em lavabos, vãos de escada, separadores das autoestradas, áreas arborizadas e jaulas do Zoológico, ou alguém andou a gozar os tarefeiros da TNS Euroteste. Não sei porquê, inclino-me mais para a segunda hipótese.

                      (*) Inquérito feito a 1.006 portugueses, num total de 28.584 cidadãos europeus.

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                        O vício esplêndido

                        Publicado em Outubro de 2003 na extinta revista Periférica

                        Senti uma certa simpatia por Václav Hável no dia em que o vi, numa fotografia a preto e branco tirada na Praga nocturna dos dias da Carta 77, durante um concerto dos Plastic People of the Universe. Nada ali fazia supor que Hável seria um dia o último presidente da Checoslováquia e o primeiro da República Checa. Naquela imagem não se notavam ainda os retoques cosméticos adquiridos pelo homem de Estado: a camisa desapertada mostrava a pele muito clara, na mão direita segurava uma enorme caneca de cerveja, o suor escorria pela cara, um cigarro acesso mantinha-se entre os lábios, enquanto o escritor conversava com alguns companheiros de ocasião. O fumo de tabaco saturava o ambiente, sublinhando o carácter pouco convencional do momento, humanizando os rostos, afastando-os das máscaras gélidas da velha guarda no poder, que a essa mesma hora dormitava em casas repletas de retratos medalhados, tirados nos desfiles do Primeiro de Maio.

                        Relembro essa imagem em plena fúria legislativa antitabagista, que começou a ser barbaramente imposta quando os maços de cigarros, as cigarrilhas e os charutos passaram a ostentar aquele selo horrível, acusador, proclamando a negro que «Fumar Mata». Trata-se de um óbvio caso de exagero e de abuso de confiança, mas é também a expressão de um falso moralismo escrutinador dos costumes, imposto pelas autoridades que, ao mesmo tempo, permitem o fabrico e comercialização de automóveis que atingem velocidades absurdas, relevam o consumo criminoso de bebidas alcoólicas ou, para não ir mais longe, fecham os olhos diante das responsabilidades poluentes dos escapes dos automóveis e das indústrias químicas.

                        Nascida nos Estados Unidos, esta expressão de um fundamentalismo galopante e farisaico tem marcado a vida contemporânea, violentando a própria memória de alguns dos seus ícones e mitos. Foi assim que, nos selos de correio da República Francesa, André Malraux perdeu o seu eterno cigarro. Já foram consideradas impróprias, e por isso censuradas, muitas fotos de fumadores inveterados, como Humphrey Bogart e Marguerite Duras (esta por acaso fumava Gitanes, quase tão fortes quanto o velho Mata-Ratos). E nem mesmo Lucky Luke, o herói da banda desenhada, conseguiu impedir que lhe trocassem a inevitável beata de tabaco enrolado por uma ridícula palhinha ao canto da boca.

                        Um livro sobre a história cultural dos cigarros, publicado há alguns anos pelo professor e crítico Richard Klein, pode ajudar-nos a resistir a este ataque proibicionista e rancoroso. Intitula-se Cigarettes are Sublime, e, tendo sido curiosamente escrito para acompanhar o autor no seu esforço pessoal para deixar de fumar, relata com uma grande compreensão o processo de afirmação cultural e social do pequeno vício ao longo de todo o século XX. O seu uso é aí descrito como gesto herdado, integrado na vida de um grande número de pessoas enquanto instrumento fundamental de socialização e prática capaz de gerar a sua própria tradição. Para Klein, ela pode conter, como todos os outros gestos humanos do quotidiano, tanto de bom como de mau, dependendo de quem o pratica e da forma como o faz. Nada de mais sensato e mentalmente higiénico.

                        Claro que não é possível negar os malefícios do tabaco, tal como não podemos negar os do álcool, os do vento gelado para quem sai à rua de manga curta, ou os da excessiva exposição ao sol de ruivos e albinos. Podemos olhar para estes factores como momentos da vida colectiva que podem atrair efeitos nefastos. Mas que produzem também a volúpia de que cada um de nós necessita, não sendo aquilo que trazem de negativo, para a imensa maioria das pessoas, mais do que chamadas de atenção para que se não exagere a dose. Eles representam o que Kant chamava de «prazeres negativos», os quais, contraditoriamente, induzem aqueles que os procuram a encontrar, no possível malefício, justamente a vertigem minimal, a rápida ocasião de puro gozo, que os leva a praticá-lo. E a saboreá-lo.

                        O soldado das trincheiras no momento em que a batalha é interrompida, o condenado à morte a quem é concedida a última vontade, o moribundo que deseja profundamente um último acto de prazer, conheceram esse instante de deleite à beira do fim, embora não estejam por cá para abonarem a seu favor. O deprimido, o vagabundo ou o reformado sem eira nem beira, partilham também do mesmo deleite, capaz de lhes devolver um instante de paz e de conforto. Momentos únicos de liberdade individual agora apresentados como derradeiros crimes.

                        Um lado mais positivo do tabaco, é, porém, definido através do conjunto de circunstâncias que têm levado um grande número de pessoas a consumi-lo. A tradição cultural é a mais conhecida de entre elas, como sabem perfeitamente os antropólogos. A história fornece também testemunhos constantes, a partir daquele, primordial, que refere o primeiro encontro de um europeu, no caso Cristóvão Colombo, com o povo arawak, habitante do actual El Salvador e sequioso fumador da erva, sugando-a por intermédio de um tubo de madeira, o tobago.

                        O gesto de fumar foi, ou tem sido, tomado também como figura de emancipação. A dos rapazes que, pela via do acto proibido, mais rapidamente se imaginavam adultos ou grandes sedutores. A das raparigas e das mulheres que, através do cigarro, procuravam afirmar a igualdade de direitos, ou a simples capacidade para possuírem alguns perante os seus parceiros masculinos. A dos intelectuais, apoiados no cachimbo ou no cigarro como muletas da reflexão, que, por via de um vício que conscienciosamente cultivavam e exibiam, desenvolveram formas de auto-representação da sua singularidade enquanto prevaricadores da ordem estabelecida.

                        Mas existe ainda uma outra situação a ter em conta, determinada por um processo de socialização mais sofisticado, a qual vê no momento de fumar um instante de encanto e conquista. Jean Cocteau anotou a atitude: «Não devemos esquecer o maço de cigarros, o cerimonial da sua abertura e o acto de extrair cada cigarro, o gesto de acender o mesmo com o isqueiro, essa estranha nuvem que nos penetra e que fazemos sair pelas narinas, pois é por meio de poderosos charmes que se torna possível a conquista o mundo.» Um «apelo estético» do acto de fumar – que nos tempos mais recentes se fixou particularmente no consumo de charutos – transformou-o assim em ocasião de reconhecimento social do parecer individual, apenas comparável aquele que pode ser conferido pelo vestuário. De Marlene Dietrich, Groucho Marx e Coco Chanel a Serge Gainsbourg, Tom Waits e ao homem da Marlboro, passando por Churchill ou Fidel, o estilo e a afirmação pública da imagem pessoal dependeram em larga medida do volátil rolo, mais ou menos cilíndrico, que mantiveram apertado entre os dedos.

                        Demonizar o tabaco – como o procuraram fazer também Luís XIV, Napoleão e o próprio Hitler – consiste, no fundo, em tentar integrar na dimensão do ilícito um dos actos calorosos, profundos e democráticos que têm servido para organizar a nossa existência colectiva. É, por isso, completamente estúpido tentar consegui-lo por decreto. Estúpido e perigoso. O que nos iria acontecer se alguém vislumbrasse um qualquer malefício no perfume das flores? Ao abrigo de uma nova norma, veríamos, muito provavelmente, os jardineiros reconvertidos em mutiladores de plantas. Ou em negociantes de arranjos de mesa plastificados. Perante este pesadelo, como Jorge Palma, prefiro pedir a alguém que me dê lume.

                        Alguns acessórios:
                        Livros: Cigarettes Are Sublime, de Richard Klein; Complete Idiot’s Guide to Quitting Smoking, de Lowell Kleinmann; Os Malefícios do Tabaco, de Anton Tchekov; Prazeres, de Eduardo Barroso.
                        Filmes: Casablanca, de Michael Curtiz; Smoke, de Wayne Wang.
                        Discos: Carmen, de Georges Bizet; Le Poinçonneur des Lilas e Love On The Beat, de Serge Gainsbourg; Grapefruit Moon, de Tom Waits; Dá-Me Lume, de Jorge Palma.

                        Adendas em Abril de 2007:
                        Curta-metragem: Les Derniers Condamnés de la Cigarette
                        Videoclip: Cigarette in your Bed

                          O vício esplêndido

                          Vicio esplêndido

                          Escrito em Outubro de 2003 para a extinta revista Periférica

                          Senti alguma simpatia por Vaclav Havel no dia em que o vi, numa fotografia a preto e branco tirada na Praga nocturna dos dias da Carta 77, durante um concerto dos Plastic People of the Universe. Nada ali fazia supor que Havel seria um dia o último presidente da Checoslováquia e o primeiro da República Checa. Naquela imagem não se notavam ainda os retoques cosméticos do homem de Estado: a camisa desapertada mostrava a pele muito clara, na mão direita segurava uma enorme caneca de cerveja, o suor escorria pela cara, um cigarro acesso mantinha-se entre os lábios, enquanto o escritor conversava com alguns companheiros de ocasião. O fumo de tabaco saturava o ambiente, sublinhando o carácter pouco convencional do momento, humanizando os rostos, afastando-os das máscaras gélidas da velha guarda no poder, que a essa mesma hora dormitava em casas repletas de retratos medalhados, tirados nos desfiles do 1º de Maio.

                          Relembro essa imagem em plena fúria legislativa antitabagista, que começou a ser barbaramente imposta quando os maços de cigarros, as cigarrilhas e os charutos passaram a ostentar aquele selo horrível, acusador, proclamando a negro que «Fumar Mata». Trata-se de um óbvio caso de exagero e de abuso de confiança, mas é também a expressão de um falso moralismo escrutinador dos costumes, imposto pelas autoridades que, ao mesmo tempo, permitem o fabrico e comercialização de automóveis que atingem velocidades absurdas, ou, para não ir mais longe, fecham os olhos diante das enormes responsabilidades poluentes dos escapes e das indústrias químicas. [continua aqui]

                            Opinião

                            Marx/B

                            Marx_B
                            Na tentativa de parodiar a inadaptação de parte da esquerda britânica às mudanças do mundo pós-queda do Muro, Anthony Giddens falou de um certo «marxismo tendência Groucho». A frase pegou rapidamente. Foi citada, adaptada e abusada. Reparei, há dias, que já estão a chegar à universidade muitas pessoas incapazes de entenderem o alcance daquela gasta boutade do ex-director da London School of Economics. Bem sei que a maioria também não ouviu falar do primitivo Sócrates. Para não falar de Xenofonte, claro. O que não é propriamente muito animador. Mas reconheçamos que é grave, para a compreensão do mundo actual, jamais ter apreciado a inconfundível técnica de fumar charutos desenvolvida e divulgada pelo, julgo eu, segundo Marx mais conhecido de todos os tempos.

                              Etc.

                              O sublime do cigarro

                              Magritte, Belga
                              René Magritte: projecto de publicidade para os cigarros Belga (1936)

                              Se existe leitmotiv certo nas imagens que tenho reproduzido nos blogues, ele pode ser encontrado na presença do cigarro. Não se trata de campanha contra o antitabagismo demencial que tem ocupado governantes de diferentes países. Nem de tique de dandy ou de rebelde, procurando no gesto singular a marca da diferença ou da insubmissão. Fui percebendo que o fazia de forma não-consciente, levado, talvez, tanto quanto pelo gosto do tabaco, pela beleza que detecto na volúpia do verdadeiro fumador. Não o viciado em nicotina, que já não fuma por prazer, mas aquele que sabe esperar o justo momento e se pode rever nas palavras de Richard Klein em Cigarettes Are Sublime (Duke Univ. Press, 1993). Assim: «Fumar um cigarro pode ser comparável a escrever um poema: inalando o fumo quente da própria criação, deixando que as palavras no papel possam arder ao ar visível de uma elocução surda, exalando em espiral figuras de desejo, conduzindo, com gestos modulados pelo fumo, uma conversa que ninguém mais pode escutar.»

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                                A máquina

                                Auster
                                Sei onde poisei a minha última máquina de escrever da última vez que me servi dela, há mais de vinte anos. Mas não tenho vontade alguma de a ir buscar para lhe tirar as incrustações de pó. O «fetiche da Underwood» – que no meu caso era uma modestíssima Triumph com um design que a aparentava com um igualmente modesto automóvel Trabanta – quase me ia dando cabo das costas. Passou-me com o tempo, como a extravagância de fumar cachimbo, que, essa, me estragou definitivamente os dentes. Algumas revistas literárias e ex-libris digitais continuam porém a usá-la, talvez como metáfora de uma qualquer relação matricial com a escrita, ou enquanto pulsão nostálgica, idêntica aquela que nos pode levar, perdoem a imagem de jogos florais, a mergulhar sem necessidade numa manhã de chuva e nevoeiro. Talvez por isso, soa-me um tanto a mania que um homem maduro, moderno e morador em Brooklyn, como Paul Auster, faça sistematicamente questão de exibir em público a sua aversão a qualquer outro instrumento mecânico de escrita. E se empenhe em lançar, em conjunto com o artista plástico Sam Messer, o narcísico álbum A História da Minha Máquina de Escrever, que a ASA editou. Não é que não seja bonita a sua Schreibmaschine Olympia, mas mostrá-la assim parece sinal de caturrice precoce.

                                  A glória do fumo

                                  fumar era fácil
                                  Na década de 1950, recorda um apontamento do suplemento (do DN), a pose das figuras da televisão (e do cinema, acrescento) incorporava o cigarro «como sinal de requinte e sintoma de segurança». Talvez fosse interessante olhar um pouco – neste tempo de antitabagismo irracional (inexistente no mundo islâmico, tal como na maior parte da Ásia, de África e da América a sul de Ciudad Juárez) – para a história dos interditos e da valorização simbólica do tabaco. Reparar na forma como este funcionou enquanto sinal de emancipação (das mulheres, dos adolescentes, dos soldados, dos empregados e dos operários submetidos a cadências absurdas), marca de reflexão e de inteligência (entre os intelectuais ou aqueles que o ambicionavam ser) ou elemento-chave das estratégias de sedução social e amorosa.

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