Autoridade e preconceito

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Neste ocidente que nos cabe, quanto mais se penetra em sociedades de matriz cultural católica mais se sente o peso longevo do eurocentrismo e da rigidez hierárquica herdada dos tempos que antecederam a afirmação «igualitária» da burguesia. Nelas continua a reproduzir-se essa forma superior de preconceito que associa o destino do indivíduo ao seu invólucro. À forma como este se mostra em público, ao peso da identificação estatutária materializada em gestos, na fala, na valorização simbólica do ter e do parecer. A aceitação do diferente define-se na razão directa da domesticação da sua diferença.

Em Cancún, no México, Rigoberta Menchú, activista indígena, candidata à presidência da Guatemala e Prémio Nobel da Paz, foi há dias expulsa de um hotel de cinco estrelas por ter sido confundida com uma vendedora ambulante. Terá sido um caso de ignorância e discriminação que poderia ter ocorrido aqui, em Lima, Dublin ou mesmo em Viena. Poderia, e provavelmente foi-o. Mas muito mais dificilmente teria acontecido em cidades como Nova Iorque, Estocolmo ou Amesterdão. Afinal, foram séculos de pedagogia da resignação, ensinando que cada um tem o seu o lugar e a sua «cruz», mas que nem todas as «cruzes» possuem o mesmo valor. De vigilante inquisição da divergência, de consagração barroca da hierarquia (que a liturgia vaticana, aliás, tem preservado no essencial), de ensino sistemático da reverência diante do cesarismo, que o universo católico herdou. A relação preconceituosa com os sinais que espartilham a vida social, a relativização do valor da diversidade, o respeito pela ordem social e pelos seus símbolos, não são factores que se apaguem da memória e da experiência colectiva nos escassos cinquenta anos que se sucederam ao último acto conciliar. Aliás, sem eles, democratizada e desprovida de atitudes paternalistas, a própria Igreja católica terá dificuldade em preservar o poder, a autoridade e a noção de supremacia moral que ainda conserva. Coisa que o actual papa percebeu há já muito tempo.

    Apontamentos, Atualidade

    O atendedor

    De repente o telefone tocou. Passava uma meia hora das onze da noite, e do lado de lá uma voz feminina que era apenas um murmúrio. Palavras que eu não podia compreender, numa língua que não soube identificar. A voz falava baixinho e chorava, num lamento indecifrável. Disse-lhe, em inglês, que tinha muita muita pena mas que provavelmente deveria estar enganada, que eu não era com toda a certeza a pessoa que ela pensava que eu era, que não conseguia de todo entendê-la. Do outro lado, como se eu não tivesse falado, como se a minha voz pudesse ser apenas uma gravação, a mesma mulher prosseguiu no seu lamento incompreensível, chorando ao meu ouvido mecânico. Pedi desculpa e disse que precisava desligar, desejei-lhe uma boa noite, disse de novo que lamentava, desliguei. Sem a certeza de ter sido engano.

      Devaneios

      Israel como nunca

      Editado este ano pela ASA, Uma História de Amor e Trevas, de Amoz Oz, é um livro de memórias, entre a autobiografia e o romance, sobre a infância do autor em Jerusalém. A partir de um curto tempo nuclear, cerca de 120 anos de história nacional e familiar passam por um texto «impregnado de ruído e fúria, nostalgia, perda e solidão».

      Começa por revelar um espaço cultural que nos é em larga medida estranho. Sobre o qual, aqui a ocidente, quase nada sabemos. Este universo radica-se numa identidade judaica que, no imenso território de diáspora que ia da Europa Central à Rússia mais profunda, permitiu o estabelecimento de uma notável cultura intelectual capaz de admitir a coabitação de ortodoxos, sionistas e simpatizantes da esquerda e do comunismo. A integração não excluía, porém, a produção de clivagens, a mais visível das quais se mostrou durante o próprio Holocausto – basta lembrar as fortes divergências dentro do ghetto de Varsóvia, entre os partidários da colaboração como mal menor e da insurreição como necessidade – e foi depois vertida para o interior de Israel, sendo particularmente sentia na década de 1950, a época à qual Oz se reporta mais directamente. Refiro-me à clara separação entre aqueles que defendiam a secular atitude de aceitação, que permitira aos judeus sobreviveram durante séculos às inúmeras perseguições, e aqueles outros que, após Auschwitz, pensavam que apenas se poderia responder violência com a violência, de modo a evitar o regresso do horror. No mundo extremamente culto e politizado que o pequeno Amos frequentara, todas as sensibilidades e nuances culturais mantinham ainda este antagonismo essencial como cenário.

      Este livro proporciona também um espaço de reflexão que se projecta sobre o mundo contemporâneo. Deve relembrar-se o papel de Amoz Oz no movimento Peace Now – que defende a inevitabilidade de um acordo justo e definitivo com os palestinianos, mas não a capitulação de Israel, que as ditaduras árabes, os radicais islâmicos e os seus aliados ocidentais tão ardentemente desejam – e as suas posições públicas neste domínio, parte das quais podem ser conhecidas no pequeno volume de ensaios Sobre o Fanatismo (que há poucos meses o Público ofereceu aos seus leitores). No melhor e mais belo desses ensaios, «Da natureza do fanatismo», o escritor, que fora em tempos «um rapaz que atirava pedras, um rapaz da Intifada judaica», salienta a antiguidade da experiência desse fanatismo «mais velho do que o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo», salientando porém que a sua própria infância em Jerusalém o havia convertido num «especialista em fanatismo comparado». É a experiência desta «especialização» que Oz nos vai revelando no seu livro de memórias, transportando-nos até um ponto no qual poderemos compreender melhor a legitimidade, e igualmente a inutilidade, do ódio instalado. Ao mesmo tempo, a extrema dureza do período de reinstalação dos judeus no território de Israel e depois da independência do Estado – bem, num movimento de fast forward, o processo de restabelecimento das fronteiras «bíblicas», ocorrido já em 1967, após a vitória «milagrosa» na guerra dos Seis Dias – permite-nos também entender as contradições, e igualmente as razões, de muitas das posições da opinião pública israelita e dos seus diferentes governos ao longo das últimas décadas. Dando-nos a ver, se não quisermos permanecer cegos, que estes jamais poderão aceitar um retorno à condição histórica de párias e errantes que, geração após geração, todos os seus antepassados viveram.

      Uma História de Amor e Trevas é ainda, pela forma como revela os processos de apreensão do mundo e das suas mudanças pelo jovem Amos, um elogio da leitura e da imaginação. E também um livro de grande beleza e compaixão, que facilmente nos conduz por uma viagem de ida e volta entre o riso e as lágrimas. Afinal, aquilo que a maior parte de nós mais habitualmente procura nas leituras às quais se entrega por puro prazer. Um crítico do Guardian considerou-o «um dos mais divertidos, mais trágicos e tocantes livros» que pudera ler. Mesmo ressalvando o exagero de afirmações tão peremptórias, que mais poderemos querer?

      Uma última chamada de atenção para dois aspectos. A capa da edição portuguesa – idêntica, aliás, à da edição da Vintage, mas que não pode comparar-se com a da Chatto & Windus – é muito má, mais parecendo um daqueles cartazes new age utilizados para vender iogurtes light. Já a tradução, da responsabilidade de Lúcia Liba Mucznik, me parece soberba, mesmo sem entender eu uma palavra de hebraico. Nem por um momento o prazer da leitura tropeçou numa palavra ou numa frase, sendo, ao contrário, constantemente excitado por elas. O que é, obviamente, um óptimo sinal.

        Olhares

        Lição de jornalismo

        [youtube]http://www.youtube.com/watch?v=CB6A7W3QfM4[/youtube]

        Não é hábito, aqui n’A Terceira Noite, a repetição de links e referências que já circulam por diversos blogues. Mas vale a pena ampliar a divulgação deste vídeo notável, no qual Rodrigo Amarante, da banda brasileira Los Hermanos, oferece uma boa lição de ética jornalística.

          Atualidade, Cidades, Etc.

          «Ite, missa est»

          Compreendo as possibilidades dramáticas de acontecimentos que rejeito num plano mais ou menos racional. Uma tourada, por exemplo. Ou um combate de wrestling, uma sessão de flamenco, uma longa procissão de penitência. E não só admito como, em determinadas circunstâncias, consigo vivenciar os instantes de volúpia ou de exaltação que esses momentos produzem em alguns. Aceito, por isso, que em determinadas pessoas a missa em latim, o canto gregoriano, a sombra das vestes litúrgicas, o aroma do incenso ou a sonoridade de um órgão de tubos, produzam um efeito de comoção, delírio ou sublimação que lhes dará algum prazer.

          Cedo automatizei as respostas dos fiéis no ofício celebrado em latim medieval. Sem entender a maior parte do que ouvia e das palavras que pronunciava, introduzia-me, através da solenidade mágica da língua litúrgica, no ritual colectivo que em breve iria ser abalado. As transformações democráticas introduzidas no cerimonial após o termo do Concílio Vaticano II produziram, sem dúvida, um efeito de aproximação entre o celebrante e os fiéis. Ao mesmo tempo, porém, diluíram a auréola de sagrado conferida pela missa como acto colectivo no qual a pompa e a incompreensão ampliavam a sensação de participação. Entendo, por isso, o texto de João Bénard da Costa saído no Público de domingo, no qual este desenvolveu uma certa defesa cultural de Summorum Pontificum, o recente documento papal através do qual Bento XVI aceitou a validade da reintrodução não-obrigatória do latim. No fundo, Bénard da Costa, em nome da sua própria vivência de uma religiosidade católica que viria a abandonar nos finais da década de 1960, reconhece que as mudanças alteraram a substância de uma forma milenar de viver a fé. E que tal terá contribuído para o questionamento da própria fé.

          Percebo João Bénard, ainda que continue a ver como avanço no sentido de uma certa humanização as medidas conciliares e como sinal de retrocesso este tipo de iniciativa do Sumo Pontífice. Afinal, quando eu próprio ia à missa, sentia um grande alívio ao responder com um rápido «Deo gratias» ao conclusivo «Ite, missa est». E a seguir raspava-me.

            Apontamentos

            Torga e o PS

            Nunca me agradou a poesia de Miguel Torga. E talvez devesse dizer o contrário, se bem que por razões extra-literárias: aos oito anos operou-me às amígdalas e foi muito paciente comigo (embora horrivelmente vestido de otorrinolaringologista do Largo da Portagem), tempos depois fui seu vizinho na Praceta Fernando Pessoa (onde mantive o meu último quarto de estudante), e vivo há décadas em Coimbra, em cujo panteão simbólico Torga apenas é batido por Isabel de Aragão, a beata e ilusionista Rainha Santa, e pelos infelizes Pedro e Inês. Para além disso, sempre simpatizei com a sua figura simples e solitária. Mas a poesia que publicou não me agrada. Tal como jamais gostei de ver o poeta servir de muleta a políticos à procura de um «toque de cultura» no seu seco discurso público, parecendo-me também bastante despropositado que alguém despojado de provincianismo – ou de uma certa dose de ignorância – o possa tomar por «um dos maiores poetas do século XX». Questões discutíveis de paladar e de idiossincrasia, sem dúvida.

            O que já não me parece discutível é a desconsideração que foi a ausência de qualquer responsável nacional do PS, ou do seu governo (a Ministra da Cultura, por exemplo), nas comemorações do centenário do nascimento de Torga que hoje tiveram lugar em Coimbra e em S. Martinho da Anta. António Arnaut considerou a ausência «uma falta grave, uma omissão grave de cumprimento de um dever cívico.» Tanto mais grave quanto o poeta, apesar da sua conhecida aversão a participar em actos públicos, foi nas últimas décadas de vida um importante – e imprescindível – compagnon de route dos socialistas, servindo também a sua palavra, frequentemente, de muleta do discurso dos seus dirigentes (incluindo-se nestes o seu actual secretário-geral e primeiro-ministro). Mas talvez esta atitude até tenha sido coerente: poderá tratar-se apenas apenas de um passo mais no abandono das referências matriciais do Partido e na sua gradual conversão em organismo técnico e gestionário, para o qual as artes e as letras são apenas acessórios. Se, por um destes dias, em cerimónia do Dia de Portugal ou numa sessão solene da Assembleia da República, algum insigne governante ou deputado citar à propos uma frase de Joe Berardo, não ficarei pasmado.

              Apontamentos, Atualidade

              Ester e Ruzya

              Masha Gessen é uma jornalista russa cuja família emigrou em 1981 para os Estados Unidos com o objectivo de escapar ao anti-semitismo latente que marcava o quotidiano da União Soviética na era de Brejnev. Dez anos depois regressou à Rússia como correspondente e aí acabou por se instalar, vivendo actualmente em Moscovo. Em 2004 publicou Ester and Ruzya: How My Grandmothers Survived Hitler’s War and Stalin’s Peace, editado há cerca de um ano pela Alêtheia com a primeira parte do título infelizmente alterada para As Duas Babushkas. Este é uma daquelas «sagas familiares» que lança um olhar sobre as vidas singulares e conturbadas das duas avós da autora. Mas não se trata propriamente de um romance «de época»: o trabalho de Masha Gessen consistiu essencialmente em transformar em relato escrito as recordações verbalizadas das suas familiares, em pesquisar pessoalmente elementos que elas deixavam em claro, em confirmar alguns dos factos aos quais elas se referiam, e, finalmente, em inserir toda a informação num discurso que deixa a obra a meio caminho entre o romance e o texto memorialista.

              Ester e Ruzya são duas mulheres russo-judias cujos destinos se viriam a cruzar, acabando por se tornarem amigas e confidentes. Uma nasceu na Polónia e escapou dos campos de concentração de Hitler por ter partido para estudar numa universidade da União Soviética, mas acompanhando também a mãe, entretanto exilada com toda a sua comunidade de judeus polacos para a Sibéria. Teve a coragem de se recusar a servir de informadora do NKVD, demitindo-se do Komsomol (a organização estatal para a juventude comunista) e vivendo na pele a obsessão antijudaica do regime, agravada nos últimos anos de vida de Estaline. A outra nasceu na Rússia, foi uma militante entusiástica do mesmo Komsomol e chegou a ser uma importante funcionária da censura literária imposta pelo Estado soviético. É muito interessante o relato da experiência diária de leituras vedadas à generalidade dos seus concidadãos. Do cruzamento destas duas vidas singulares resulta, para nós, um conhecimento quase testemunhal do quotidiano de muitos «pequenos intelectuais» nos tempos difíceis do apogeu das grandes experiências totalitárias do século passado. Leitura apaixonante e de utilidade para o aprofundamento de uma memória colectiva que transcenda a dimensão da paróquia.

                História, Olhares

                Fátima revista

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                Nestes dias de calor e praia, o Público tem vindo a divulgar uma selecção de textos retirados da Enciclopédia de Fátima, obra colectiva editada pela Principia e organizada por D. Carlos Azevedo, bispo auxiliar de Lisboa, e pelo cónego Luciano Cristino, ligado ao Santuário de Fátima. Numa sinopse da obra, pode ler-se que esta pretende ser um «estudo pioneiro e interdisciplinar que aborda de forma multifacetada, científica e rigorosa os acontecimentos de Fátima». Um dos organizadores afirmou ainda que se trata de «oferecer aos interessados uma interpretação aberta, serena, crítica, teologicamente fundada e historicamente objectiva». Não vi à venda este Dicionário de mais de 600 páginas e suspeito até que seja difícil encontrá-lo nas livrarias que frequento, mas depois de ler os passos seleccionados fiquei com alguma curiosidade. Não podendo fazer um comentário crítico detalhado sem o conhecer melhor, existe porém alguma coisa, nos fragmentos que tenho lido, que me deixa razoavelmente apreensivo.

                É verdade que os colaboradores convocados para as 120 entradas serão «especialistas de diversas áreas – história, teologia, arte, sociologia, etnografia e urbanismo, entre outras». Alguns deles são pessoas cujo trabalho parcialmente conheço e que respeito. Mas, dada a origem da obra e os seus coordenadores, reservo alguma perplexidade a propósito do resultado prático dos critérios que terão determinado a escolha. De facto, a maioria dos fragmentos que pude ler evidencia essencialmente uma preocupação em «actualizar» a imagem de Fátima – que tratam, aliás, como «acontecimento», e não como fenómeno cultural – colocando-a numa perspectiva que exclui a dúvida em relação ao discurso oficial da Igreja católica a propósito da sua «mensagem». O que me pareceria absolutamente legítimo não fora este upgrade ser apresentado de uma forma que se pretende «científica». E aqui é que poderá entrar-se num terreno escorregadio e algo perigoso.

                Dois exemplos apenas, entre outros possíveis, retirados dos passos que o Público reproduziu.

                Na entrada «Imprensa e Fátima», assinada pelo sociólogo António Teixeira Fernandes, por exemplo, fala-se da «crítica verrinosa» da imprensa republicana, «do livre-pensamento e da Maçonaria», que «procurava a todo o custo ‘desmascarar’ o ‘embuste’ [as comas são do autor] de Fátima». Mas fala-se também da imprensa católica como «prudente nas suas posições e afirmações», precisamente numa altura em que esta, após uma fase defensiva na qual se colocara durante os anos iniciais da Primeira República, passara a um então já nítido contra-ataque. Colocada nestes termos – e será nestes termos que os leitores a tomarão – esta forma de abordagem induz, obviamente, uma tomada de posição que, apesar de diferente nos termos, retoma a leitura tradicional a propósito do carácter «perverso», «diabólico», do republicanismo.

                Um fragmento da entrada «Guerra», da autoria do historiador José Manuel Sardica, é, para mim, ainda mais perturbante. Nele se afirma que, nos anos 60, «o problema da guerra colonial em Portugal relançava e reforçava o repúdio fatimista dos conflitos armados», e que, «para desespero do catolicismo mais integrista e politicamente alinhado com o regime», a Cova da Iria «assumiu os contornos de ‘instância de identificação nacional’ crítica do regime», como local de «esperança, prece, consolo ou agradecimento de soldados (…) e de estropiados», tendo-se «Nossa Senhora de Fátima» transformado «numa ‘protectora dos combatentes do Ultramar’». A memória pessoal que tenho, bem como a colectiva à qual tenho acesso, apontam em sentido contrário – relembro que o país dos «três-éfes» existiu – e textos entretanto publicados por ex-«católicos progressistas», como José Bénard da Costa ou Joana Lopes, não deixam dúvidas sobre a forma como, com a anuência da maioria esmagadora da hierarquia católica, o regime se apropriou simbolicamente de Fátima. Dizer o contrário será, no mínimo, uma forma de revisionismo histórico que me parece necessário moderar.

                Estes são, entretanto, apontamentos muito parciais, que gostaria de poder emendar. Fico à espera de conhecer o volume no seu todo e de confirmar – ou de remover – as cautelas que os trechos divulgados pelo Público me impõem.

                Nos comentários encontram-se algumas observações de utilidade para ampliar – ou redireccionar – o sentido crítico deste post.

                  História

                  João Vário

                  Tempo de partida, este meio-verão, para alguns dos melhores vivos da minha vida. Desta vez foi o cabo-verdiano João Vário (1937-2007), João Manuel Varela, o primeiro poeta «português» que li fora do livro único e obrigatório.

                  Depois, depois faremos ou fará o tempo, por sua vez,
                  Aquele blasfemíssimo comentário,
                  E então consta que amámos.

                  [De Exemplo Geral, 1966]

                  Mais poemas de João Vário aqui

                    Apontamentos

                    Ignomínia

                    Estava em férias quando ocorreu a demissão de Dalila Rodrigues, e por isso apenas agora dou sinal de vida sobre o assunto. Conheço a visada – creio que fui mesmo seu professor – embora, directamente, conheça muito pouco do trabalho por ela levado a cabo no Museu de Arte Antiga. Sei daquilo que me contam, do que dizem os jornais, das opiniões que foram sempre, globalmente, bastante positivas. Sei também que na área da gestão dos museus, tradicionalmente conservadora e conformista, a sua iniciativa se tem destacado. Uma coisa que, no país paralisado pela inveja do qual fala José Gil, não augura nada de bom para quem protagoniza o destaque. Por isso, não me surpreendeu a atitude vergonhosa – pior ainda que a da ministra da Cultura, «apenas» incapaz de dialogar com uma atitude crítica (mas, que eu saiba, não insubordinada) – dos dezasseis outros directores de museus, obviamente arregimentados por um qualquer comissário-político, que se solidarizaram, em nome da «classe museológica portuguesa» (sic), contra uma sua colega.

                      Atualidade

                      Michelangelo

                      Agora a morte de Michelangelo Antonioni (1912-2007), o realizador que nos ajudou a ver, como afirmou certa vez, «a realidade em termos que não são inteiramente os do realismo». Jamais esquecerei o trabalhador abandonado, infeliz e errante, de O Grito. Ou a paisagem industrial opressiva, mas ao mesmo tempo tão desmedidamente bela, de O Deserto Vermelho. Ou o deslizar de Vanessa Regrave sob câmara fotográfica inquieta, obsessiva, de Blow-Up. O cinema serve também para nos avivar a memória. Antonioni sabia-o muitíssimo bem.

                        Apontamentos, Cinema

                        Uma tradução drôle

                        Li Drôle de Jeu há muito tempo. Numa edição francesa que um amigo me emprestou, convencido que a leitura do romance de Roger Vailland faria de mim – como o fez de muitas pessoas mais ou menos da minha geração – um verdadeiro militante das causas da esquerda e do antifascismo. Não foi o romance que formou as minhas convicções da época, mas li-o muito emotivamente, quase febril. Mais tarde tentei, sem o conseguir, comprar a edição portuguesa da Ulisseia, que saira em 1959 com um prefácio de José Cardoso Pires e que Hélder Macedo havia vertido para o português sob o título Cabra Cega. Já no final da década de 1980, a Europa-América lançaria uma outra tradução, que nunca vi mas sei ter mantido o mesmo título. E assim permaneceu identificado o romance de Vailland nos inventários de muitos milhares de leitores. Até que, neste Julho de 2007, os Livros de Brasil editaram Drôle de Jeu – com uma bela capa, aliás – intitulando-o… Jogo Curioso (!!!). Comprei o livro porque queria muito ter uma edição em português, mas ainda não comecei a releitura, pelo que não posso falar desta nova versão. A tradução do título, porém, não promete nada de bom. Ela é só por si qualquer coisa de lamentável e uma prova de ignorância do trabalho anteriormente feito. E se o tradutor pretendia reinventar o título – uma opção desde logo muito discutível e potencialmente enganadora – deveria ter em linha de conta que «drôle», significa estranho, bizarro, esquisito, singular. Jamais curioso.

                        [8/9/2007] Escrevo após a leitura desta nova edição (infelizmente, sem a possibilidade de a cotejar com o original). Não seria justo se não dissesse que os meus receios se mostraram menos fundados do que supunha. Esta versão lê-se com agrado, com raros momentos nos quais se nota que «alguma coisa» não está bem. Erro sistemático, que me é particularmente desagradável, é o uso – aliás, cada vez mais comum na linguagem coloquial – da palavra «encarregue» como particípio passado do verbo «encarregar». E permanece a questão do título: agora ainda me parece mais absurda a escolha do tradutor.

                          Etc., Leituras

                          Silêncio e solidão

                          Silêncio e solidão marcaram sempre, para sempre, a obra de Ingmar Bergman (1918-2007). Saindo do cinema numa noite de inverno, no país rectangular e pronunciado em surdina, seguia pensando – lembro-me muitíssimo bem – em silêncios mais remotos mas não menos difíceis. Em solidões menos impostas mas igualmente fatais e insuportáveis.

                            Apontamentos, Cinema

                            Tour de France

                            Dantes gostava de ciclismo. Às vezes com algum amigo, outras vezes sozinho, uma das minhas brincadeiras nas longuíssimas férias de verão consistia em fazer corridas com umas pequenas bicicletas de plástico colorido movidas a golpes de dados. As provas, que incluíam até um prémio de montanha, viviam principalmente dos duelos entre o sportinguista João Roque e o benfiquista Peixoto Alves (bem, já não sou da época do Trindade contra o Nicolau…). Quando Agostinho passou a ganhar tudo, desinteressei-me pelo circuito pátrio e internacionalizei a corrida, que incluía agora os duelos mortais e alpinos entre Jacques Anquetil e Raymond Poulidor, aos quais se juntaria depois o próprio Agostinho. Admirava em todos eles o esforço visivelmente brutal, feito de músculos e vontade, do homem absolutamente sozinho contra o calor do sol, as rajadas do vento e os grandes declives. Depois fui-me distanciando. Talvez isso tenha acontecido na altura em que o jogo de equipa se começou a sobrepor à capacidade individual. Já fora de tempo, Lance Armstrong terá sido, porventura, o último dos meus super-heróis do selim e do pedal. Hoje, sem grandes estrelas no pelotão e com a desconfiança instalada devido à sucessão de casos relacionados com o uso de estimulantes, deixei de me interessar por este desporto de estrada. O Tour de France – esse «exercício colectivo de nostalgia» – está a chegar aos Campos Elísios e eu mantenho a televisão desligada.

                              Apontamentos, Atualidade

                              «Hay que tenerlos»

                              Tão rápido no intento de humilhar os funcionários públicos reduzindo-os à condição de culpados de todos os males da nação, e aceitando que sejam afastados aqueles que em palavras ou actos desrespeitem a «nova ordem», o governo continua a condescender com o tom ostensivamente agressivo e provocatório usado pelo funcionário público Alberto João Jardim para se referir ao primeiro-ministro ou aos ministros do governo da República. Não que a situação seja nova, evidentemente, mas ela atingiu agora níveis extremos e absolutamente intoleráveis. As referências recentes à suposta falta de dinheiro para financiar a IVG na Região Autónoma da Madeira – quando se gasta o quádruplo a financiar um rali, se delapidam somas brutais para pagar o fogo-de-artifício do reveillon, ou se paga para que os dois clubes madeirenses de futebol estejam entre os cinco clubes portugueses que de maiores orçamentos dispõem – acompanhando essas referências dos insultos mais ordinários aos representantes do Estado, exigem-se medidas e não apenas vagas declarações de virgens ofendidas (mas um pouco distraídas também). Um caso sério de chantagem e de insubordinação que deveria merecer, no mínimo, uma advertência pública por parte do Presidente da República, do primeiro-ministro e do Tribunal Constitucional. Mas para tal, convenhamos, «hay que tenerlos».

                                Atualidade, Opinião

                                mundo_novo.mp3

                                Por muito que se desdobre em declarações ameaçadoras e incentive atitudes repressivas por parte dos governos, a indústria fonográfica tradicional está com a corda na garganta. Com a generalização da Internet e da banda larga, as capacidades áudio dos novos telemóveis e os versáteis leitores de MP3, a venda de música pelos processos tradicionais entrou numa crise irreversível. Dois episódios recentíssimos vêem prová-lo, para quem ainda possa ter dúvidas. Com um enorme impacto, Prince distribuiu gratuitamente o seu último álbum («Planet Earth») junto com o tablóide britânico Mail On Sunday, enquanto Manu Chao vai lançando uma a uma as faixas do novo «La Radiolina» directamente através do seu site, sem passar pela edição em CD. Manu relativiza mesmo o problema da «pirataria» (ou da troca livre) de música gravada: «Quantos discos de vinil não copiámos para cassetes? Em adolescentes, quando um amigo comprava um álbum, fazíamos 80 gravações. Não tínhamos dinheiro para comprar música mas tínhamos vontade de a ouvir.» Onde irão então os artistas buscar o dinheiro para pagar o seu trabalho? À venda online «à peça» e aos concertos ao vivo, obviamente, pois para estes existirá sempre um público fiel e disposto a alguns pequenos sacrifícios. Um mundo novo e perturbador da velha ordem do mercado da música? Sim, e daí?

                                  Atualidade, Etc.