«Ite, missa est»

Compreendo as possibilidades dramáticas de acontecimentos que rejeito num plano mais ou menos racional. Uma tourada, por exemplo. Ou um combate de wrestling, uma sessão de flamenco, uma longa procissão de penitência. E não só admito como, em determinadas circunstâncias, consigo vivenciar os instantes de volúpia ou de exaltação que esses momentos produzem em alguns. Aceito, por isso, que em determinadas pessoas a missa em latim, o canto gregoriano, a sombra das vestes litúrgicas, o aroma do incenso ou a sonoridade de um órgão de tubos, produzam um efeito de comoção, delírio ou sublimação que lhes dará algum prazer.

Cedo automatizei as respostas dos fiéis no ofício celebrado em latim medieval. Sem entender a maior parte do que ouvia e das palavras que pronunciava, introduzia-me, através da solenidade mágica da língua litúrgica, no ritual colectivo que em breve iria ser abalado. As transformações democráticas introduzidas no cerimonial após o termo do Concílio Vaticano II produziram, sem dúvida, um efeito de aproximação entre o celebrante e os fiéis. Ao mesmo tempo, porém, diluíram a auréola de sagrado conferida pela missa como acto colectivo no qual a pompa e a incompreensão ampliavam a sensação de participação. Entendo, por isso, o texto de João Bénard da Costa saído no Público de domingo, no qual este desenvolveu uma certa defesa cultural de Summorum Pontificum, o recente documento papal através do qual Bento XVI aceitou a validade da reintrodução não-obrigatória do latim. No fundo, Bénard da Costa, em nome da sua própria vivência de uma religiosidade católica que viria a abandonar nos finais da década de 1960, reconhece que as mudanças alteraram a substância de uma forma milenar de viver a fé. E que tal terá contribuído para o questionamento da própria fé.

Percebo João Bénard, ainda que continue a ver como avanço no sentido de uma certa humanização as medidas conciliares e como sinal de retrocesso este tipo de iniciativa do Sumo Pontífice. Afinal, quando eu próprio ia à missa, sentia um grande alívio ao responder com um rápido «Deo gratias» ao conclusivo «Ite, missa est». E a seguir raspava-me.

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