♪ Para sempre

Love

O objectivo de uma cadeia voluntária que circula por aí é achar aquilo que não existe: «a melhor canção de amor de sempre». Porque todas as canções de amor são como todas as cartas de amor: um pouco estúpidas, sim, como dizia o menino Fernandinho, e fugazes, mas «para sempre». Por isso são quase todas boas. Avanço com uma fiftie, febril e imortal. Podiam ser outras mil.

Paul Anka – Put Your Head on My Shoulder [aumentar bastante o som]

    Música, Olhares

    Palavras perigosas

    Palavras

    O secretário-geral falou de «dimensão totalitária» ao pronunciar-se contra a lei dos partidos que impõe o voto secreto. Um conhecido militante, bloguista e comentador profissional de blogues, acusa-me algures de defender o totalitarismo ao depreciar não sei onde o significado do congresso comunista. As políticas autoritárias e autistas de Sócrates, essas todos os dias são chamadas de «fascizantes». Parece que no número 3 da Soeiro Pereira Gomes e na sua rede de sucursais ocorre neste momento um problema com as palavras. Ou não?

    No livro sobre Eichman, Hannah Arendt falou de uma «banalização do mal» para se referir à entrada do anti-semitismo no discurso do Estado e na esfera do público, produzindo as condições para uma normalização do Holocausto. O uso inapropriado de palavras que se referem a circunstâncias históricas e a tempos nos quais o humano e o monstruoso conviveram, desvirtuando a clareza do seu significado e atribuindo-lhes sentidos indeterminados e brumosos, pode sempre produzir um efeito análogo, trivializando o sinal de perigo que transportam nas entranhas. Podem ser ditas por ignorância ou má-fé, mas o efeito será o mesmo.

      Atualidade, História, Opinião

      Nem sempre uma carta em papel perfumado

      Love

      Enquanto metia na ranhura o cartão de plástico, corria no monitor da máquina Multibanco uma frase a vermelho-escuro: «Violência no namoro não é amor!» Assim mesmo, a bold e com o ponto de exclamação. Afinal é preciso dizê-lo em voz alta, gritá-lo, pois uma boa parte da violência no casamento começa de facto muito antes dele: acontece com uma em cada quatro pessoas, diz um estudo recente da Universidade do Minho. Ao mesmo tempo, as mulheres-guerrilheiras que jamais aceitarão um insulto, um murro, uma chapada, sem os restituírem e seguirem o seu caminho na direcção contrária, são ainda uma minoria. Mesmo aqui, a ocidente do ocidente. E o futuro é já a seguir.

        Atualidade, Democracia, Olhares

        Uma história interminável

        Comunismo

        Versão de um texto publicado originalmente na revista LER

        Como experiência, destino e utopia, o ideal comunista possui uma história poucas vezes apoiada por narrativas abrangentes e razoavelmente isentas. Esta obra de Robert Service, escrita sensivelmente ao mesmo tempo que a trilogia biográfica de Lenine, Estaline e Trotsky, esforça-se por preencher essa ausência. Da sua tentativa de traçar um panorama da mais importante, dinâmica e persistente corrente política dos últimos cem anos resultou um trajecto enumerativo que começa no comunismo pré-marxista e vai até ao embrionário «socialismo do século XXI», mantendo como eixo a Revolução de Outubro e a transformação da União Soviética em exemplo e estímulo de um alcance planetário. Capítulos que basicamente resumem informação conhecida convivem, no entanto, com outros nos quais se notam um maior investimento do autor e também algumas novidades. É o que acontece quando mostra como os bolcheviques se lançaram ao assalto do poder sem uma matriz para a nova ordem a criar, como foram enunciadas as primeiras divergências teóricas em relação ao template estalinista do «marxismo-leninismo», como se organizou a propaganda pró e anticomunista durante a Guerra Fria, ou como foi o modelo soviético reproduzido no pós-guerra, durante a rápida mas complexa fase de construção das «democracias populares».

        O esforço de síntese é notável, e de um ponto de vista informativo parece conseguido, transformando este livro numa útil introdução à história geral do comunismo. Ele deve, todavia, ser mediado por uma atitude crítica atenta e contínua, uma vez que a nítida aversão do autor aos valores do comunismo interfere na objectividade e até na clareza de diversos passos. Pior, ela tê-lo-á afastado de uma compreensão aprofundada da génese social, filosófica e ética do ideal comunista e da eventual perpetuidade da sua capacidade de atracção. É verdade que Service admite, de início, que um dos seus intentos é responder à dúvida de décadas sobre a natureza «inerentemente despótica» ou «potencialmente libertadora» do comunismo, mas concentra-se sobretudo no primeiro dos aspectos, dando pouca atenção ao segundo, justamente aquele que potencia a capacidade de atracção e de mobilização daquele ideal. Em consequência, sugere que o carácter perverso de algumas das práticas dos comunistas – no poder ou fora dele – os afasta de todo de um papel positivo nos processos de edificação democrática e lhes retira até legitimidade na sua participação no combate social, apontando-os como vírus maligno que «provou ter características metastizantes» e continuará a viver mesmo após o desaparecimento do último Estado socialista. O que contraria a prometida isenção desta obra, ainda assim, dada a falta de alternativas acessíveis, de utilidade. Uma nota negativa adicional para a perceptível imperfeição da tradução e da fixação do texto, infelizmente muito comum, como é sabido, nas obras editadas pela Europa-América.

        Robert Service, Camaradas. Uma História Mundial do Comunismo. Tradução de Fernanda Oliveira. Publicações Europa-América, 568 págs. ISBN: 978-972-1-05928-3

          Etc.

          Cosmopolitismo

          Kwame Anthony Appiah

          A palavra cosmopolitismo é uma palavra manchada. Suscita os ataques de alguma esquerda, diz Appiah, devido ao seu padrão aparentemente diletante e elitista. A direita, por sua vez, abomina-o pois acredita que o cosmopolita é sempre alguém que questiona o nacionalismo e a ideia de pátria. O autor anglo-ganês não procura contestar estes preconceitos, buscando antes expor os fundamentos de um novo cosmopolitismo, superador do velho paradigma iluminista, e avaliar da sua viabilidade como instrumento de uma política de aproximação entre culturas. O grande desafio na actualidade, segundo declara, é «pegar nas mentes e corações formados ao longo de milénios em tribos locais e equipá-las com ideias e instituições que nos permitem viver em conjunto». Como filósofo, procura também persuadir o leitor de que existem algumas questões conceptuais interessantes que podem contribuir para a construção de um diálogo em torno da globalização capaz de substituir as posições de desvalorização de uma moral comum que integram as teses relativistas mais radicais. De um ponto de vista político, sugere a combinação entre o respeito pela diversidade das vidas humanas – não apenas da vida humana – e a ideia de que existem obrigações para com os outros dentro de um contexto de «universalismo» e de cidadania partilhada. A ler e a debater, apesar da versão portuguesa por vezes tornar a leitura um pouco dolorosa.

          Kwame Anthony Appiah, Cosmopolitismo. Ética num Mundo de Estranhos. Trad. de Ana Catarina Fonseca. Europa-América, 180 págs. ISBN: 978-972-1-05929-0

            Três notas sobre o Primeiro de Dezembro

            Luanda - Restauradores

            1. A maioria dos portugueses desconhece hoje a origem do feriado que, entre o passeio pelo maior centro comercial das imediações e uma multicultural caipirinha bebida à lareira, passa em família ou com os amigos, fazendo de contas que abre um pequeno parêntesis na crise. No entanto, a restauração do reino de Portugal em relação à «Coroa de Espanha», na qual se encontrava integrado desde o final trágico da aventura marroquina de D. Sebastião, e a Guerra da Aclamação que se lhe seguiu, representaram um ponto de viragem fulcral na definição da identidade política e cultural dessa pátria da qual se ouve ainda, nos estádios de futebol e nos desfiles militares, «a voz dos seus egrégios avós».

            No dia 1 de Dezembro de 1640, porém, não ocorreu revolução alguma, como falseou durante décadas a historiografia salazarista. O que aconteceu não passou, de início, de um rápido putsch militar local contra a política centralista do Conde-Duque de Olivares: prendeu-se a vice-rainha Margarida de Sabóia, passou-se pelas armas o odiado Miguel de Vasconcelos e aclamou-se rei o duque de Bragança, enquanto a maior parte da nobreza e do alto clero se mantinha fiel a Madrid. Já decisivas foram depois as campanhas militares, prolongadas em diferentes fases, em território ibérico, entre 1640 e 1668, e alargadas ao combate pela manutenção do Império, principalmente no Brasil, em Angola e na Índia. Vinte e oito anos de guerra dura e custosa, no correr dos quais se foram autonomizando e desvinculando da influência espanhola – definindo-se, como nunca antes ocorrera, uma forte identidade antimadrilena -, a prática política, a actividade diplomática, a língua portuguesa, a literatura nacional, a organização militar, o discurso historiográfico e até a oratória sagrada.

            2. Foi no cinema Restauração, em Luanda, que vi O Último Tango em Paris. A democracia tinha meses, e brancos, pretos e mulatos, homens e mulheres, velhos e crianças, acotovelavam-se em filas enormes por um bilhete para a «cena da manteiga» do primeiro «filme pornográfico» legalmente exibido. Corria o ano de 1975 e, ao que me disseram, era então novidade o encontro no foyer de pessoas cujo tom de pele, um ano antes, lhes teria interditado aquele espaço. O cinema Restauração hoje já não é cinema e mudou de nome. Chama-se Casa das Leis e tem servido de sede à Assembleia Nacional angolana. Mas todos os angolanos europeus que por lá passaram continuam a usar a denominação colonial. Eu próprio, anticolonialista que por sê-lo passei por duas «custódias», é assim que o recordo.

            É difícil mudar os mapas que nos mostraram durante anos, por isso, para muitos, é difícil designar as cidades angolanas pelo nome legítimo actual. Luanda e Benguela continuam a ser Luanda e Benguela, e quase todas as pessoas sabem que o Huambo foi em tempos Nova Lisboa. Mas que dizer do Soyo, de Luena, de Saurimo, de Lubango, de Tombwa? Para muitos, não necessariamente obstinados colonialistas ou seus ressabiados descendentes, são ainda Santo António do Zaire, Luso, Henrique de Carvalho, Sá da Bandeira e Porto Alexandre. E, voltando ao início, como se chamará hoje a antiga Avenida dos Restauradores de Angola? Tenho a resposta: chama-se Rua do Congresso do MPLA, apesar de na rua toda a gente lhe chamar… Avenida dos Restauradores. Podem, todavia, encontrar-se sinais contraditórios: dizem-me que a Rua Karl Marx passou há algum tempo a Avenida de Portugal, o que sempre será indício de uma reconciliadora esperança de sabor pós-colonial.

            3. O momento de mais um aniversário da Restauração da Independência serviu também para que pudesse começar a compreender um pouco melhor a política de alianças do PCP. Tendo em vista aquele que, presumo, possa ainda ser o seu interesse pela partilha de responsabilidades de poder. Após os ataques, durante este XVIII Congresso, à dimensão «social-democratizante» (sic) do Bloco de Esquerda e aos propósitos dos chamados «alegristas», marcados como uma espécie de quinta coluna destinada a desviar da linha justa o eleitorado que considerem ser naturalmente «seu», fiquei a ruminar sobre que espécie de forças imaginará o PCP poder ter como aliadas no combate – julgo que não meramente protestativo ou limitado à repetida «táctica da trincheira» -, por uma alternativa de governo. Para além, claro, da anuência instintiva dos organismos-criatura, um tanto ridículos e sem qualquer representatividade, como os chamados «Verdes» ou a Intervenção não-sei-o-quê (peço desculpa mas não consigo recordar agora o nome). Julgo ter resolvido a dúvida lendo hoje, no caderno P2, as palavras de simpatia do «senhor dom» Duarte de Bragança, descendente reconhecido do monarca restaurador e o nosso actual «reizinho», pelo carácter eminentemente patriótico do Partido Comunista Português.

              Atualidade, História, Memória

              Frases que ficam 3

              A dada altura do jogo de futebol Sporting-Guimarães, incomodado pela bátega de água que de repente atingiu o estádio de Alvalade («num ápice», teria dito o clássico Gabriel Alves), o desabafo técnico-táctico do comentador e ex-jogador António Simões: «A chuva vem esquinada e entra-me aqui por uma diagonal aberta.»

                Etc.

                Riso soviético

                Caricatura do Krokodil, 1953

                Contada ao longo de décadas nos países do «socialismo real», a anedota supostamente antisoviética que há dias aqui transcrevi acabou por servir de mote a uma cadeia que tem feito circular pela blogosfera portuguesa historietas de idêntico teor. Em casos isolados, elas activaram também o ressentimento de pessoas inaptas, nos momentos de transmissão do seu credo político vertidos sempre em solenes liturgias, para aceitarem a dimensão do humor e do nonsense como exercícios de ginástica da crítica e até da elevação da sua qualidade de vida. «Com certas coisas não se brinca» é um mote velho, velho de muitos séculos, que sempre exprimiu a primeira etapa da repressão do humor e da dimensão sardónica e crítica do riso. E o esquecimento da afirmação que Beaumarchais deixou n’O Barbeiro de Sevilha: «Faço por rir de tudo e de todos, com medo do dia em que for obrigado a chorar.»

                Essa é também uma das marcas consistentes da ortodoxia marxista-leninista, com raízes históricas que pontuaram igualmente, ainda que com a integração de outros factores, uma parte significativa da ética vivencial que certos movimentos radicais – como os maoístas da linha dura, os adeptos do terrorismo urbano, os nacionalistas irredutíveis ou os fundamentalistas religiosos – recuperaram e desenvolveram. Tal como, aliás, é possível aferir ainda hoje pela análise dos seus padrões de discurso e pelo modelo de propaganda que alguns continuam a exibir. Pode dizer-se, sem grande margem de erro, que parte dessa recusa da dimensão lúdica da sociabilidade humana e da actividade política se radicou numa concepção da luta pelo poder como combate de extremos, em cujo contexto a utilização do riso enquanto instrumento de crítica interna poderia ser interpretada como atitude pusilânime ou de traição.

                No campo comunista, a origem do trajecto pode ser examinada. Logo após a Revolução de Outubro, proliferaram, num ambiente de efervescência revolucionária, novas técnicas de agitação e de propaganda. Elas incluíram o uso instrumental do humor na crítica da velha sociedade mas também na detecção das contradições, erros e possibilidades da nova, que se acreditava estar em vias de ser erguida. Um bom exemplo desse ambiente pode ser dado pela obra de Mikhail Koltsov, comunista de origem judaica, membro o conselho editorial do Pravda e fundador de várias revistas satíricas, como a Krokodil, que se dedicava à sátira política e, entre outros alvos que usava no seu trabalho, escarnecia do oportunismo político de muitos intelectuais e quadros soviéticos. Em 1932, Koltsov abriria a sua intervenção no decurso do I Congresso dos Escritores Soviéticos contando uma anedota sobre os burocratas sindicais. A maioria dos delegados presentes riu-se, mas o gesto teve imediatamente vozes contra. Estas argumentaram que «zombar do Estado proletário por meio dos velhos dispositivos satíricos e, assim sendo, abalar-lhe os alicerces (…) é, no mínimo, uma insensatez e uma desconsideração.» Pouco tempo depois Koltsov partiria para Espanha, onde iria trabalhar como correspondente durante a Guerra Civil. De regresso, foi preso logo em 1938, no âmbito dos Processos de Moscovo, sendo executado dois anos depois.

                Entretanto, o avanço da dogmatização, da colectivização da opinião, da censura e da imposição do pensamento único, iria deixando as suas marcas também neste domínio. A vitória naquele Congresso, instaurador formal dos princípios do Realismo Socialista, fora a dos adversários de Koltsov. Um tal Panteleimon Romanov, levantou-se após a sua intervenção e falou do futuro do riso sob a ditadura do proletariado: «Gostaria de exprimir o desejo de que, quando terminar o Plano Quinquenal, a necessidade de haver sátira tenha desaparecido da União Soviética, deixando apenas lugar para um humor de grande precisão, que é o das gargalhadas de júbilo.» Ao «homem novo» deveria assim corresponder um «humor positivo» que exprimisse «o riso dos vencedores, um riso tão refrescante quanto o exercício matinal, um riso evocado não pela zombaria do herói mas sim pela alegria por ele».

                Um passo importante na construção de uma disjunção entre um «humor» oficial, público, que era essencialmente propaganda, e um humor oficioso, privado, por vezes rebelde, impossível de controlar apesar da censura e do trabalho incansável dos informadores da polícia, que pertencia ao domínio essencial da vida colectiva traduzido no recurso à sátira e mesmo à zombaria. No ambiente maniqueísta vivido sob a extensão da luta de classes a todos os campos do real, o humor informal, expresso através de anedotas do domínio da cultura popular, foi rapidamente empurrado para uma classificação como acto contra-revolucionário, equiparável ao boato. Milhares de pessoas foram presas, exiladas e até mortas por contarem essas anedotas ou por não denunciarem quem o fazia. São os herdeiros, conscientes ou não, do valor excludente desse «humor positivo», sempre sectário, que ainda hoje consideram intolerável a crítica do sistema soviético morto e enterrado ou a dos seus discípulos.

                Termino com outra anedota, uma das mais antigas da história da URSS, que talvez possa ter uma receptividade mais unânime. Uma velha camponesa está de visita ao jardim zoológico de Moscovo, onde vê um camelo pela primeira vez na vida. «Oh, meu Deus», diz a velhota, «vejam só o que os bolcheviques fizeram àquele cavalo.»

                  Atualidade, História, Opinião

                  Ton style

                  Maiakovski

                  São muitas as fotografias de Vladimir Maiakovski nas quais este segura um cigarro aceso entre os dedos ou suspenso dos lábios. Sabemos como ao longo daquele século que deixámos para trás – existem livros inteiros sobre isso – o cigarro, para além do prazer sem constrangimentos que podia oferecer ou do vício pesado que teimava em perseguir, funcionava como um emblema de estilo, associado frequentemente a figurações de mistério, poder, volúpia ou inteligência. Aquilo que apenas hoje soube é que Maiakovski, proibido de fumar desde a juventude devido a doença pulmonar, insistia em exibir um cigarro aceso sempre que era fotografado. O que confirma o velho e sábio princípio dândi de acordo com o qual o estilo pode ser, é, um valioso arrimo da própria vida.

                    Apontamentos, Olhares

                    Aquela tatuagem no braço

                    Tatuagem

                    Versão de um texto publicado originalmente na revista LER

                    Pouco se tem escrito sobre aqueles cujos pais sobreviveram aos campos nazis de extermínio. As consequências pesadamente traumáticas para os próprios deportados são hoje bem conhecidas, mas a presença do seu eco junto dos descendentes mais directos tem permanecido silenciada. Este livro destaca treze testemunhos de filhos de judeus franceses sobreviventes de Auschwitz, todos eles nascidos pelos finais da década de 1940, que desafiados pela autora, a jornalista Nadine Vasseur, aceitaram comentar uma condição que os acompanhou a vida inteira mas da qual jamais haviam ousado falar publicamente.

                    Todos coincidem num aparente paradoxo: se, por um lado, a experiência-limite da deportação e da vida nos campos é intransmissível, dada a impossibilidade real de quem a recebe poder conceber sequer o sofrimento extremo e solitário dos que a conheceram directamente, por outro ela criou nestes uma capacidade de sobrevivência, e de resistência perante a adversidade, que os colocou acima daquelas exibidas pela maioria esmagadora dos humanos, tornando-os pessoas tão admiráveis quanto, obrigatoriamente, «difíceis» no trato diário. Esta dificuldade encontra-se patente em atitudes que jamais deixaram de perturbar aqueles que, na sua condição de filhos, com elas sempre tiveram de conviver: a descrença («ajuda-te a ti próprio, o céu não te ajudará»), a secura («podem ficar com o olhar húmido, mas não choram»), o silêncio («meteu a sua história dentro de uma caixa e pôs uma tampa»), mas também, e talvez acima de tudo, uma imensa capacidade para enaltecer «o imenso valor da vida», traduzida geralmente na pouca vontade de repisar um passado que preferiam manter no seu foro íntimo. Para além, naturalmente, do convívio com as sequelas de uma condição pós-traumática que os impelia a calarem-se.

                    Este volume mostra como foram afinal os seus filhos a transportarem parte substancial do fardo. Todavia, este processo de transmissão do trauma da Shoah não é aqui abordado a partir de uma perspectiva psicanalítica: a autora raramente suscita reminiscências, a não ser aquelas que qualquer pessoa colocaria perante narrativas tão extraordinárias como as que foi ouvindo durante o seu trabalho de recolha. Pelo contrário, vai dialogando com a singularidade de cada testemunho, com o seu carácter sempre perturbante, com a dificuldade sentida por cada um em falar de pormenores simples apenas na aparência, como a forte lembrança dos gritos dos pais em noites de pesadelo ou a visão «daquela tatuagem no braço, que sempre conheci».

                    Uma obra comovente, que contorna a actual «indústria do testemunho» sem desvalorizar a importância crucial da história oral para o esclarecimento do mundo contemporâneo. E que abre um novo caminho a todos quantos se importam com a salvaguarda da memória do totalitarismo nazi, com a luta contra a revisão negacionista da sua dimensão anti-humana e com o prolongamento conflitual do seu impacto no presente.

                    Nadine Vasseur, Eu Não Lhe Disse Que Estava a Escrever este Livro. Filhos de Sobreviventes do Holocausto Testemunham. Tradução de Lúcia Liba Mucznik. Pedra da Lua, 160 págs. ISBN: 978-989-8142-09-2

                      História, Memória

                      Post-it

                      Sem tempo e disposição para mais neste momento, não posso deixar de aplaudir e de chamar a atenção de quem por aqui passe para o excelente post de Luis Rainha que no 5 Dias fala sobre a «política de alianças» – ou melhor, da ausência delas pela incapacidade para se conceberem alianças paritárias e sem uma «vanguarda» dirigente – que o secretário-geral do PCP hoje mesmo expôs durante o congresso partidário a decorrer no Campo Pequeno. Perante uma euforia cega e passageira determinada pelas actuais sondagens, a frase final do texto de LR apenas pode funcionar como prevenção: «Mal a maré da crise recue, palpita-me que o PCP vai dar consigo naufragado e só, continuando a ecoar os mesmos chavões, mas já para ninguém.» A maioria dos seus, naturalmente, conserva como sinal de fé fundado numa qualquer «análise concreta da situação concreta» que tal jamais acontecerá.

                        Atualidade, Opinião

                        Antonio e Teresinha

                        Gramsci

                        Os responsáveis pela gestão da Igreja Católica Apostólica Romana têm a memória curta. Ou então mentem muito, violando farisaicamente o 8º mandamento. Pois de que outra forma se explica que só ao fim de 71 anos se tenham lembrado de vir dizer – sem prova alguma para além do carácter «distinto» de quem o diz – que Antonio Gramsci se converteu em devoto de Santa Teresinha do Menino Jesus no leito de morte? Para mim, ex-aprendiz de intelectual orgânico, se a generalidade dos leninistas nossos contemporâneos não fosse semi-iletrada e tivesse lido com um pouco de atenção os Quaderni del Carcere escritos pelo fundador  e antigo secretário-geral do PCI, que enfrentou Estaline e morreu com a saúde arruinada pelos fascistas, diria que se tratava de uma provocação anticomunista, digna dos melhores tempos da Guerra Fria. Nas actuais condições, parece-me apenas oportunismo beato emanado da sempre lúgubre e inesgotável caverna vaticana. Embora, como todos sabemos, no leito de morte já não respondamos por nós.

                          Atualidade, Memória

                          Reunião magna

                          Barbeiros

                          Gostaria também de dizer que «já em muitos outros momentos aqui se reflectiu sobre a importância desta iniciativa». Mas por não ser verdade estou impedido de o fazer. De facto, não tenho acompanhado como gostaria e a magnitude do evento justificaria a preparação do XVIII Congresso dos Barbeiros de Valdivostok, que tem início amanhã. Com a promessa de fazer seguir desde já um enviado especial, saúdo efusivamente todos os animosos baetas daquela bela e laboriosa cidade da península Muravyov-Amursky e o seu destacado papel como força indispensável e insubstituível na construção de uma sociedade vladivostoquiana mais justa porque melhor escanhoada.

                            Atualidade, Devaneios

                            José de Cupertino e as trips

                            São José de Cupertino, San Giuseppe da Copertino (1603-1663), voava sem limitações, circundando igrejas e aterrando sem danos nos seus altares. Conta-se que certa vez, numa decisão cuja lógica permanece inexplicável na literatura hagiográfica, voou até uma oliveira e permaneceu sobre um dos seus galhos por mais de meia-hora. É hoje, naturalmente, o padroeiro dos profissionais da circulação aérea, como os pilotos, os astronautas ou os pára-quedistas. Alguns entendem também ser ele o protector de pessoas com certos problemas do foro neurológico, traduzidos naquilo que o povo chama de «comportamento áereo». Conta-se que, por vezes, a José bastava o distante toque de um sino, ou que alguém pronunciasse a palavra céu, para que perdesse o contacto com a terra e iniciasse uma das suas fulgurantes trips.

                              Devaneios, Etc.

                              A minha homenagem ao XVIII Congresso

                              Pravda

                              Ao que me dizem, nos países do leste europeu a piada tem barbas. Ao ponto de já não se saber muito bem qual a sua origem. Checa? Polaca? Búlgara? Mas continua a funcionar muito bem. Principalmente junto dos e das imberbes. Os outros já só dizem «piada número 2376!», e todos riem.

                              O professor diz à aluna para escrever um texto intitulado «Porque adoro a União Soviética». A aluna vai para casa e pergunta ao pai: «Paizinho, porque é que adoras a União Soviética?»

                              «Não adoro, detesto», responde o pai.

                              A menina vai então ter com a mãe e depois com o irmão mais velho recebendo a mesma resposta de ambos.

                              Depois, já no seu quarto, começa a fazer os trabalhos de casa e escreve: «Adoro a União Soviética porque mais ninguém gosta dela…»

                              fonte

                                Atualidade, História, Olhares

                                Preconceito e precaução

                                Marilyn Monroe

                                Falando de morenas o Urban Dictionary não tem dúvidas: «Brunette’s are known to be reliable, dependable, intelligent, and exotic. It’s also been said that brunettes are more approachable since the color brown is prevalent across all cultures. Brunettes are more seductive and exotic than blondes, and they stand out». E sobre as loiras afirma, peremptório: «Notorious for being sluts, great blowjob givers, dumbasses, illiterate, annoying, uncultured, confused, and possibly most important of all, the kryptonite of black males, especially professional athletes. They travel in packs and tend to be fucking hot. Be very scared. If one comes in contact with a blond, immediately call for assistance from a brunette».

                                  Devaneios, Etc.