Independentemente do apreço que me merece o seu primeiro mentor – no meio de outras boas razões, não esqueço, desculpem lá a pirosice, que ainda ouvi a Voz da Liberdade num rádio de pilhas e cantarolei E alegre se fez triste enquanto seguia de comboio para uma breve clandestinidade – declaro à cabeça que não aprecio particularmente o dialecto «alegrista». Ele conserva parte do reservatório temático do antigo ideário republicano e um «sentimentalismo de esquerda» que assenta mais na declaração mais ou menos nostálgica de princípios vagos do que num programa para a acção. Também me incomoda um pouco um discurso algo moralista que declara, e certas vezes alardeia, uma heráldica de valores cujo sentido a larga maioria dos cidadãos com menos de quarenta anos tem dificuldade em decifrar e, sobretudo, em utilizar. E, no entanto, tendo a olhar com simpatia o eventual aparecimento de uma força que, não oferecendo ao «alegrismo» um lugar central mas incorporando a lógica de anti-aparelhismo e de humanização da governação que lhe permitiu um tão flagrante apoio nas últimas eleições presidenciais, nos possa libertar do círculo vicioso dos símbolos repetidos. E que nos limpe, nem que seja apenas por algum tempo higiénico, da mancha de prepotência, sem desígnio ou vitalidade política, de um «blairismo» de fim-de-festa que o PS de José Sócrates tem continuado a destilar como uma peste. Basta essa vaga expectativa para justificar alguma atenção ao que parece mover-se no horizonte.
Profes
Alguns jornais dizem a verdade mas não dizem toda a verdade. Uma parte da verdade é esta: «Professores universitários formaram uma cadeia humana em torno do edifício da Universidade de Atenas.» O complemento desta verdade parcial é o seguinte: aqueles professores, pelas imagens televisivas quase todos com mais ou bem mais de cinquenta anos – pois não é apenas o corpo docente do ensino superior português que está a ficar preocupantemente envelhecido –, formaram o cordão para defenderem a sua escola. De quê? Da pilhagem e da destruição, imposta por alguns bandos que debaixo da capa de impunidade criada pela actual situação insurreccional se preparavam para assaltar, e provavelmente vandalizar, as instalações da Universidade. O seu trabalho e o lugar da sua da actividade diária estavam em causa, e alguns, particularmente perturbados pela emoção, declararam aos jornalistas que por aquela missão não se importariam de dar a vida. Um exagero, claro, mas nestes momentos conservar a calma e procurar uma retórica de convencimento nem sempre é fácil.
Não há país como o meu
Hoje não fui «para Tábua», mas parei à beira da estrada para almoçar num daqueles restaurantes onde é sempre possível encontrar um certo e determinado padrão de português: aquele para quem os prazeres da vida não mudaram muito desde os tempos do Doutor Oliveira do Vimieiro. O bacalhau com todos continua a ser o bacalhau com todos, a Água das Pedras a Água das Pedras, o Benfica o Benfica, e o leitão da Bairrada o leitão da Bairrada. Parei pois a pileca num daqueles comedouros nos quais, logo à entrada, percebemos não estar na Finlândia ou em Singapura: homens morenos, de bigode farto e fato domingueiro, em idade de pré-reforma, as esposas com aspecto de esposas a quem o caro-metade apresenta sempre como «a minha senhora» (para não a confundirem com «a outra»), nem um único jovem à vista e meia dúzia de crianças com ar de quem espera desesperadamente por crescer para se livrarem daquela chatice domingueira.
Claro que eu ia também à procura do meu pleonástico lacãozinho, mais a sua pele crocante, mas tive um mau pressentimento quando vi à entrada um grande pano anunciar o «Convívio de Natal dos Amigos dos Mercedes». E mal entrei no estacionamento reparei no contraste entre a minha viatura utilitária amolgada do lado direito e a enorme quantidade de automóveis orgulhosamente reluzentes – prateados, brancos, pretos, grenás – da mesma marca da qual a Janis Joplin pedia ao Senhor um só para si («Oh Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz? / My friends all drive Porsches, I must make amends»). Mas sou um bocado distraído e não liguei. Lá dentro, contudo, percebi logo que a fauna era outra que não a costumeira: homens morenos, de bigode farto e fato domingueiro, em idade de pré-reforma, mas todos com os sapatos convenientemente limpos e reluzentes, as esposas com aspecto de esposas a quem o caro-metade apresenta sempre como «a minha senhora» (para não a confundirem com «a outra») ostentando vistosos colares de pérolas, nem um único jovem à vista e meia dúzia de crianças com ar de quem espera desesperadamente por crescer para se livrarem daquela chatice domingueira. O ruído era enorme, o cheiro a perfume era intenso, a única mesa livre ficava junto aos lavabos, e não tive outro remédio senão dar meia volta e partir à procura de outro poiso. Trauteando mentalmente: «Worked hard all my lifetime, no help from my friends, / So Lord, won’t you buy me a Mercedes Benz?». Não há nada como um domingo de chuva na estrada. E não há país como o meu.
♪ All they need is love
Não sei como é possível falar-se tanto da Grécia e dos seus problemas contemporâneos sem evocar, ainda que en passant, a mensagem subliminar e eterna dos roqueiros progressivos filhos de Afrodite. Lançada em 1968, recapitule-se, nos tempos sombrios dos coronéis de Atenas.
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A luta final
Pela forma como procuraram um mundo diferente, assente sobre os escombros daquele que conheciam, talvez os adeptos da Quinta Monarquia tenham sido antepassados remotos dos jacobinos e dos bolcheviques. Em Inglaterra, durante as grandes agitações dos meados do século XVII, irromperam como o primeiro movimento milenarista organizado e com um programa político, inaugurando a tradição revolucionária moderna dos apóstolos armados e inflexíveis, resolvidos a tudo para consumarem um destino do qual acreditavam ser os únicos intérpretes. Igualitaristas, foram buscar ao profeta Daniel e ao Livro da Revelação – como mais tarde, embora de um modo mais subtil, entre nós o fará o Padre António Vieira –, a previsão de uma inversão abrupta, apocalíptica, da ordem existente, substituída por uma outra, de origem divina e verdadeiramente preocupada com a equidade humana. Capaz, como tantas vezes se acreditou em outros momentos de emergência de crenças quiliásticas, de materializar «um reino de mil anos». A nova ordem instituída passaria então pela aplicação de reivindicações básicas, destinadas, num mundo feroz e ainda sem a intervenção mediadora do Estado-Providência, a promover a «justiça»: a protecção pública dos pobres, das viúvas e dos órfãos, a redução dos impostos e o desaparecimento das taxas de circulação, a libertação daqueles que haviam sido presos por dívidas, uma reforma do governo que promovesse a igualdade na riqueza, a única que então era possível conceber. A esta seria possível chegar recorrendo à acção purificadora dos deserdados, consumada através de uma violência sem quartel. Numa vertigem de sangue e destruição praticada sobre todos os que sustentavam a desigualdade ou que perante ela se resignavam. O movimento foi derrotado, mas o essencial da ideia regeneradora e radical que alimentou não se extinguiu inteiramente. Como se pode verificar pelas notícias que nos chegam.
Visão cubana
O último número da Visão/História tem como tema «Cuba – 50 anos de Revolução». Trata-se de um conjunto de artigos, testemunhos e cronografias que conduzirá alguns leitores a uma revisitação da memória da tomada do poder pelos rebeldes da Sierra Maestra e dos anos inaugurais da sua experiência de poder. Para a maioria deles, porém, não produzirá esse efeito: servirá sobretudo de utensílio para se entender um pouco melhor uma das experiências colectivas mais importantes, controversas e perenes do último meio século.
A revista tem algumas falhas, evidentemente. Desde logo a inexistência de um texto apologético do regime. E não seria difícil encontrar quem o escrevesse de boa vontade. Dado o magnetismo que a experiência cubana ainda conserva, ele deixaria perceber/ler uma perspectiva mais fideísta. Já o artigo sobre o Che é um tanto insípido, quase omitindo o seu lado autoritário, a importante dimensão carismática e o ascetismo insubmisso dos últimos tempos. E ficam por tratar as suas crescentes divergências com Fidel, que o regime de Havana faz por apagar. No entanto, em parte foram elas que levaram Ernesto Guevara a deixar Cuba a caminho do seu mandato internacionalista. O testemunho do ex-embaixador Alfredo Duarte Costa – lamentável no modo como enfatiza o trato cortês de El Comandante, que conheceu em privado, como sinal de que as críticas de que este tem sido alvo «pouco ou nada têm a ver com a realidade» –, nega até essa incompatibilização, dando como prova a sua carta formal de despedida e o testemunho-mantra da «viúva oficial». Para se perceberem melhor os limites desta «argumentação», bastará a leitura da biografia do Che escrita por Pierre Kalfon. Negativo é ainda o facto da repressão sistemática sobre a dissidência interna ser mencionada de forma demasiado suave.
Estes reparos não são suficientes para anular o interesse da publicação. Para além de um reconhecimento útil de dilemas actuais, nela se ouve ainda, em diversos momentos, o eco da enorme e quase consensual simpatia com a qual, nos inícios da década de 1960, uma grande parte de elite intelectual e da juventude portuguesa da classe média olhava a revolução, empolgante e única, protagonizada pelos barbudos. No testemunho que prestou à revista, Nuno Teotónio Pereira evoca o modo como correram as coisas em 1963, no Congresso da União Internacional dos Arquitectos que teve lugar em Havana e ao qual assistiu. Não escondendo o entusiasmo que então se sentia no ar e que partilhou, recorda: «Regressei a Portugal sem fazer a barba. Até hoje.»
Carta 08
Entre nós corresponderia apenas ao exercício de um direito. Mas trata-se de uma petição lançada por mais de trezentos proeminentes cidadãos chineses, e na China – esse paraíso do capitalismo selvagem e da desigualdade que vive silenciado pelas estruturas repressivas do «socialismo de Estado» – é considerada pelas autoridades como criminosa. O que mais tarde ou mais cedo deixará de acontecer: assim a Carta 08 – que aqui se reproduz – encontre uma receptividade pública idêntica àquela que teve a Carta 77 na velha Checoslováquia.
Interacção [8]
O exemplo
A pergunta já circula por aí. E só os nomes e as funções vão variando consoante os lugares. Se «eles» podem picar o ponto e dar de frosques sem qualquer problema, porque não o podem fazer também o Sr. Cipriano da portaria e a D. Ermelinda das fotocópias?
A.A.B.
Os obituários nem sempre lembram apenas pessoas que se foram embora sem avisar. Evocam também aquelas que foram partindo sem que o percebêssemos, vergadas e silenciadas, sempre demasiado cedo, ao peso dos anos, da saúde e do esquecimento. Até chegarem a uma ausência em vida que antecipou a anunciada morte. Então revemo-nos revendo-as, temendo e tremendo, e calando-o até para nós próprios, pelo nosso futuro.
Por acaso
«Revolucionários profissionais» segundo o Que Fazer? (1902), de V. I. Lenine: Gustav Husák (76 anos, ex-desempregado, funcionário do Partido Comunista da Checoslováquia), Todor Jivkov (78 anos, operário tipógrafo, funcionário do Partido Comunista Búlgaro), Erich Honecker (77 anos, operário da construção civil, funcionário do Partido Comunista Alemão), Mikhail Gorbachev (58 anos, licenciado em economia, funcionário do Partido Comunista da União Soviética), Nicolae Ceausescu (71 anos, operário sapateiro, funcionário do Partido Comunista Romeno), Wojciech Jaruzelski (66 anos, camponês, militar, funcionário do Partido Comunista Polaco) e Janos Kádár (77 anos, operário tipógrafo, funcionário do Partido Comunista Húngaro).
Existem acasos curiosos. Lia no Expresso um artigo de José Pedro Castanheira sobre a eleição do novo Comité Central do Partido Comunista Português e a sua composição. Ali se referia que, dos seus actuais 158 membros, 100 são funcionários do partido, 6 são funcionários da JCP, e, dos restantes, a maioria tem ocupações como sindicalista a tempo inteiro, deputado ou autarca, mas antes de o serem foram também funcionários do PCP. Pouco depois, ao procurar uma matéria na Internet, dei de caras com a fotografia acima reproduzida, tirada em Bucareste a 7 de Julho de 1989, cerca de quatro meses antes da Queda do Muro de Berlim, durante a derradeira reunião dos chefes dos partidos e dos estados do Pacto de Varsóvia após a qual se tornaram irreversíveis «a destruição da URSS e as derrotas do socialismo no Leste da Europa» (in Teses do XVIII Congresso). E não pude deixar de reparar na composição social do grupo. Só o leitor poderá dizer se faz ou não algum sentido esboçar uma analogia entre os dois momentos.
Adenda – Não, não se trata de desvalorizar a inevitabilidade de funcionários desta natureza. Em democracia ou em ditadura, eles existem para cumprir profisionalmente determinadas tarefas. Mas sim de chamar a atenção para o estilo de «ligação à vida», comendo e respirando sempre o mesmo ar, que desenvolvem pessoas com vinte, trinta, cinquenta anos de casa como funcionários partidários ou sindicais. E o que isso provoca em partidos ou sindicatos nos quais a maioria esmagadora dos dirigentes se encontra nessa situação. Os da fotografia acabaram como se sabe.
O meu post fútil do mês
Só quem é cego ou não diferencia um par de atacadores de um laço de usar ao pescoço não reparará na forma moderna e cuidada de José Sócrates se ataviar. E, já agora, de se calçar e de cortar o cabelo (sim, que aquele corte dispensa o pente no bolso de trás das calças). No panorama masculino da política portuguesa ele representa, sem qualquer dúvida, um caso insólito. Para além de penoso, seria bastante enfadonho enumerar aqui as figuras públicas masculinas de porte sem gosto, antiquado ou mesmo grotesco, muitas delas até bem mais novas que o primeiro-ministro, que desfeiam os nossos dias. Aliás, a tendência geral integra-se numa tradição antiga, historicamente ancorada na estética burguesa oitocentista, pós-calvinista e pós-revolucionária, que considera serem apenas as mulheres a terem o direito à cor e ao bom aspecto. «Os homens não se querem bonitos», diz o adágio português, acentuando uma tendência que na Península Ibérica se cruzou ainda com uma sobriedade estimulada pela legislação anti-sumptuária do século XVIII. Para os cavalheiros reserva-se então a sobriedade escura, cinzenta, agora apenas dourada por um nó de gravata «à Windsor», ou, vá lá, um corte de cabelo à Santana Lopes. Suspeito mesmo que algum político caseiro apanhado a ler a Esquire ou a Men’s Health (para não falar da Arena), ou a quem se descubra a estranha mania de usar cremes hidratantes e regeneradores, possa ver definitivamente comprometida a carreira. O pessoal das «jotas» sabe-o muito bem.
Por isso não me espanta que o diário espanhol El Mundo tenha considerado Sócrates, mais os seus trajes Armani e os seus sapatos Prada, como dando corpo, e provavelmente também alguma alma, ao 6º homem-figura pública «mais elegante do mundo». O galardão, que colocou Karl Lagerfeld em primeiro, Roger Federer em segundo, Barack Obama em terceiro e Brad Pitt em quarto lugar, apenas contém uma inexplicável nódoa: Carlos de Inglaterra encontra-se, apesar do seu look enfatuado e, peço perdão, algo asinino, classificado em 8º lugar (ok, mas sempre usa uma roupinha «à Príncipe de Gales»). Para quem todos os dias tem de suportar governantes mal vestidos, deputados com gravatas horríveis, sindicalistas com bigodes inestéticos ou desportistas com penteados de pesadelo, a imagem visual de Sócrates até poderia constituir um lenitivo. Isto se o nosso primeiro se visse menos e falasse num outro tom, evidentemente. Não se pode ter tudo. Visualmente falando, claro.
Delação
Também me parece isto que fizeram a Sofia Loureiro dos Santos – pessoa que por acaso que nem conheço pessoalmente – um acto repugnante que não pode passar em branco. Não importa se estou ou não de acordo com ela na «questão dos professores» (e provavelmente até nem estarei): trata-se de um caso de preservação da liberdade de opinião e do direito de cada um à privacidade e ao bom nome. Exemplos de delação e enxovalho público desta natureza – agora também na blogosfera – têm infelizmente um lastro histórico bastante longo e tenebroso que me dispenso agora de mencionar.
Misturas
Aquilo que pode surpreender num artigo publicado pelo American Journal of Human Genetics e referido hoje no suplemento P2 do Público não é o que anuncia, mas sim a amplitude dos números ali adiantados. Um estudo recentemente publicado por aquela revista científica revela que 30,4% dos homens portugueses traz inscrita na sua matriz genética uma origem sefardita (19,8%) ou magrebina (10,6%). A sul do Tejo, então, a percentagem sobe particularmente (36,3% de judeus e 16,1% de mouros), chegando a níveis que em toda a Península Ibérica apenas podem ser comparados, superando-os até, aos da Andaluzia. O que não deixa de ser uma ironia da história – já António José Saraiva o sublinhou quando descreveu a Inquisição como uma «fábrica de cristãos-novos» – é que a maior parte da miscigenação se produziu precisamente por intervenção do sempre atento «Tribunal do Santo Ofício». Quando, para escaparem à morte, à deportação ou ao confisco dos bens, numerosos judeus, e também muitos muçulmanos, foram constrangidos a converterem-se ou o fizeram por vontade própria. Somos, pois, ainda mais mestiços do que pensávamos. Sabe bem.
Adenda – Sobre algumas confusões que circulam por aí a propósito do artigo invocado: 1) estamos a falar de herança genética e não de legado cultural; 2) o estudo foi feito apenas em homens, e não em mulheres, por razões que não cabe aqui explicar mas são explicadas no estudo; 3) este trabalho não refere a herança «negro-africana», a qual, entre outros particularismos, e salvo situações episódicas, se manteve quase residual até à década de 1980 do século passado.
♪ Antes que seja noite
Música: Wolfgang Haffner – Some Other Time (Shapes)
Direito ao tumulto
À volta da «questão dos professores» todos os argumentos possíveis têm sido adiantados, tornando-se difícil dizer qualquer coisa que não tenha já sido dita e redita. Aliás [bocejo], isto mesmo já foi por mim aqui publicado e republicado. Associadas a essa repetição, a maioria das posições que encontramos na blogosfera têm tomado partido, de forma quase sempre unívoca e até um tanto agressiva, por uma das partes. Reforma boa contra imobilismo mau, professores malandros versus ministra boazinha, bruxa má contra santos inocentes, e por aí afora. Por isso, talvez valha a pena insistir que nada do que se prende com o assunto é simples e redutível a uma caricatura da intifada.
Todos sabemos que existem professores, provavelmente muitos e geralmente com a complacência dos sindicatos, que sendo «em princípio a favor de uma avaliação» se recusam a admitir uma que os distinga de facto de acordo com o trabalho executado, a preparação científica e os resultados obtidos. Daí a caricata contraproposta da Fenprof pretendendo colocar no primeiro e decisivo patamar do processo de qualificação dos docentes a auto-avaliação. Mas todos sabemos também que o Ministério, e principalmente alguns dos organismos que o representam no terreno – das direcções regionais a certos conselhos executivos mais fiéis -, têm modelado a sua actuação crispada pela imposição de normas burocráticas que mais têm a ver com a redução de despesas e a apresentação artificial de resultados que saiam bem na fotografia das estatísticas do que com a eficácia e a justiça do sistema de ensino que tutelam.
O pior serviço que se pode fazer na tentativa de solucionar o impasse em que estamos, promovendo uma verdadeira mudança nos padrões de funcionamento do ensino em Portugal, é pois generalizar discursos sobre a maldade ou a bondade dos professores ou do governo. Como se não existissem professores que pensam pela sua cabeça e têm sentido de justiça. Como se o governo fosse completamente insensível à opinião e à experiência daqueles que governa. Mas mau também, já agora, é divulgar, como acontece num artigo de Fernanda Câncio, a ideia de que só porque eleito e apoiado numa maioria parlamentar, absoluta ou não, este governo, ou qualquer governo, possa avançar toda a sorte de medidas insensatas, apresentadas como «reforma», sem o protesto, tumultuoso se necessário, sonoro sempre, dos cidadãos directamente afectados. A democracia não se esgota nas eleições – embora não as possa ignorar, evidentemente – e eu pensava que esse era um dado adquirido por todos os democratas. Mas, claro, no fogo da luta todos nós fazemos e dizemos coisas insensatas.
Limonada
Confiando naquilo que, em The Blithdale Romance, Nathaniel Hawthorne conta de Charles Fourier, este acreditava que o inevitável progresso da humanidade rumo à perfeição faria com que um dia o mar passasse a saber a limão. O fascínio da imaginação utópica assenta em operações e em convicções desta natureza, que auguram um futuro de absolutos, programados e construídos à imagem dos desejos e da determinação de quem os projecta. O problema começa quando os fabricantes de utopias começam a pretender fixar as percentagens do açúcar, do ácido cítrico e do sódio, dando todo o poder ao laboratório que passará a gerir o fabrico, a manutenção e a partilha da água marítima. E, claro, condenando ao degredo o sabor a laranja.
Laika
O partido-da-língua-de-pau não muda. Enquanto os outros apoiam ou aplaudem, ele «saúda» sempre. E se os cumprimentados o merecerem, «saúda calorosamente». Quando os restantes definem metas, ele possui «objectivos claros». Se os mais falam da experiência que vão ganhando, ele diz «a vida ensina». Quando os outros apresentam ideias ele «reafirma a sua base ideológica». Se falam de discussão, ele prefere «um amplo e profundo debate». Se organizam encontros, ele prepara as coisas em «1600 reuniões ou plenários, nos quais participaram mais de 26000 militantes». Enquanto se esgrimem posições, ele dá logo «uma resposta inequívoca». Quando os outros reestruturam, ele promove um «reforço da organização». Chama os fascistas de «fâchistas». Creio mesmo que prefere ainda designar o espaço de «cosmos». E os mais indefectíveis militantes continuarão por certo a relembrar como Лайка a saudosa cadela Laika.
Adenda: A Gestapo encorajava alguns prisioneiros que suspeitava de serem comunistas a escreverem pequenos artigos. O objectivo era confirmarem a sua filiação pela análise da linguagem. Uma tarefa fácil, diziam os agentes.