Lendo o fascículo de hoje de «As Grandes Operações da Guerra Colonial», saído com mais um volume da colecção Os Anos da Guerra Colonial que o Correio da Manhã está a publicar (e que pode ser adquirido sem o jornal), resolvo um enigma que me acompanha desde os anos de vida de caserna. Qualquer coisa que intrigava um grande número de militares nos anos da guerra e nos primeiros tempos da democracia e os trazia em suspenso: serviria ou não o monóculo de António de Spínola para corrigir a visão do olho direito? A solução é oferecida pelo testemunho de um ex-furriel que em 1962 transportou de Lisboa para Bissau uma pequena caixa de madeira destinada ao então Coronel de Cavalaria, diante da qual foi incapaz de resistir à tentação de espreitar aquilo que ela trazia lá dentro: uma colecção de seis reluzentes monóculos sem qualquer graduação.
Eu vejo-te
Degustar pizza em Pyongyang
«Os cozinheiros italianos foram levados para uma base militar de alta segurança onde perceberam que a missão seria ensinar três oficiais do exército a confeccionar pizzas». «O nosso povo também tem de ter acesso a esta comida conhecida internacionalmente», disse na ocasião ao jornal japonês Chonson Simbo o gerente do restaurante, citando o próprio Kim Jong-Il. Para saber mais, siga-se a notícia do Público online sobre a abertura de uma pizzaria em Pyongyang.
Entre comunismo e nacionalismo
Adaptação do original publicado na revista LER de Fevereiro
Vencedor do Prémio de História Contemporânea Victor de Sá de 2008, eis um estudo, resultante da dissertação de doutoramento do autor, que propõe uma releitura crítica da história do PCP entre o Segundo Pós-Guerra e o 25 de Abril e lança ao mesmo tempo um olhar renovado sobre o trajecto da resistência política e cultural ao Estado Novo. A tese central de Comunismo e Nacionalismo em Portugal define a temática nacionalista como uma das preocupações políticas fulcrais da direcção do PCP a partir do final da Segunda Guerra Mundial, distribuindo-se pelas quatro partes da obra. As duas primeiras seguem mais de perto os documentos políticos partidários ou aqueles que com eles confluem, ocupando-se da construção do «comunismo nacionalista» na sua relação com o processo de reorganização dos comunistas portugueses encetado em 1941, e do discurso político do PCP na sua ligação à realidade do país e às grandes linhas teóricas sobre a «questão nacional» que resultaram da experiência histórica da União Soviética e do movimento comunista internacional. As outras duas partes, com um carácter mais abertamente prospectivo, acompanham os processos de nacionalização da cultura enunciados por diversos intelectuais comunistas ou simpatizantes, e discutem as experiências de nacionalização e de reescrita da história pátria tomadas em mãos por alguns deles. Nos últimos capítulos o autor aproxima-se, de uma forma particularmente estimulante, dos instrumentos de configuração do «ideal comunista» na sua ligação com a actividade militante internacionalista de muitos intelectuais.
O valor deste livro, escrito sempre de uma forma atractiva, marcada por uma grande frescura da linguagem deslocada do previsível jargão que tem sido o principal responsável pelo divórcio entre o leitor comum e a generalidade da produção historiográfica portuguesa, não pode deixar de estar vinculado a uma peculiaridade do seu autor. José Neves é um historiador ainda jovem, consagrado a uma investigação intensa já sem incorporar na experiência pessoal as marcas de muitas de algumas das duras polémicas que envolveram as gerações anteriores – as quais naturalmente conhece, mas sem com elas conservar um vínculo de dependência inevitável em quem as acompanhou mais de perto -, o que desde logo confere ao seu trabalho um benéfico distanciamento crítico. A metodologia adoptada, jogando constantemente e sem aviso prévio na abordagem sincrónica do movimento e na leitura diacrónica dos seus episódios, define também uma marca de originalidade, destacando o carácter frequentemente lento das mudanças operadas no domínio da convicção, mas também os instantes de viragem nos quais algo de novo e de dinâmico claramente emerge.
Olhando o trajecto histórico do qual se ocupa, o historiador reconhece principalmente os momentos e as vias de «fragilização do modo proletário», pontuado por preocupações de uma natureza vincadamente internacionalista, mas também o simultâneo «revigoramento de um modo nacional», associado uma estratégia nacionalista aplicada à actividade dos comunistas e à daqueles que com as suas causas e a sua percepção do mundo foram confluindo. É pena que o próprio PCP não se esteja a servir deste livro e do trabalho do seu autor – como o deveria fazer também em relação à biografia de Álvaro Cunhal escrita por José Pacheco Pereira, bem diversa tanto na metodologia adoptada quanto nos objectivos propostos neste livro de José Neves – para reflectir interna e externamente, isto é, ao nível da formação dos militantes e na exposição pública do seu trajecto histórico e das suas propostas menos imediatistas, sobre o seu próprio destino. Talvez um dia.
José Neves, Comunismo e Nacionalismo em Portugal. Política, Cultura e História no Século XX. Tinta da China, 504 págs.
Primeiros anos
No novo volume da sua biografia de Estaline, Simon Sebag Montefiore recua no tempo para narrar a infância e a juventude do ditador desde os primeiros tempos em Gori, na Geórgia, até à intervenção destacada na tomada do poder pelos bolcheviques, percorrendo o envolvimento revolucionário que o levou a uma sucessão de prisões e de exílios, sempre razoavelmente benévolos, impostos pelo regime czarista. A abordagem proposta em O Jovem Estaline põe de parte as velhas hagiografias oficiais, que depuraram algumas das manchas de uma juventude violenta, criminosa e obscura, e recorre a documentos disponibilizados apenas a partir de 1991, o que permite construir uma narrativa detalhada, cheia de novidade e por vezes aliciante. Segue, porém, alguns caminhos que lhe reduzem o valor: desde logo um excesso de «psicologismo» adiantando afirmações sobre a construção da personalidade megalómana e psicopata de Estaline que aqui não passam de hipóteses; depois, uma fixação excessiva na descrição de episódios rocambolescos, alguns deles envolvendo o lado mulherengo do georgiano, que poderiam servir um argumento de comédia mas desviam a atenção da fundamentação interpretativa; e, por fim, a construção de um retrato íntimo através de estratégias, próprias das utilizadas nas biografias ficcionadas, que uma obra de natureza assumidamente historiográfica deve usar com parcimónia. [Trad. de Victor Antunes, Manuela Novais Santos e Maria José Figueiredo. Alêtheia, 512 págs. Originalmente na LER de Fevereiro.]
N’Gola ritmo
A propósito da visita a Portugal de José Eduardo dos Santos, presidente do MPLA e chefe supremo da clique cleptocrática que neste momento dirige um grande país onde a democracia, a transparência e o respeito pelos menos protegidos tardam em chegar, parece-me aceitável a posição do governo recebendo educadamente o chefe de Estado angolano e tratando com ele de uma forma normal. Afinal, com mais de 100.000 portugueses a trabalharem em Angola e muitas centenas de empresas e instituições envolvidas em negócios e projectos, com a grande tradição cultural e (assumidamente) histórica partilhada pelos dois países, seria de uma irresponsabilidade total insistir no carácter não-democrático e corrupto do poder instalado em Luanda voltando as costas aos seus circunstanciais porta-vozes. Mas é também justa a posição do Bloco de Esquerda ao recusar participar na parte teatral da visita: não estando no poder, o Bloco pode assumir uma atitude de princípio que exprime, tenho a certeza, aquilo que a maioria dos portugueses verdadeiramente pensa. Não faz sentido, pois, a rábula de Vital Moreira referindo-se à atitude frontal dos bloquistas como «falta de sentido de Estado». Nem, uma vez mais, o silêncio conivente do PCP, que não precisa de mostrar «sentido de Estado» mas ainda pensa o MPLA como uma espécie de «partido-irmão» subtropical que é necessário proteger.
João Mesquita
Há meses que o não via e não sabia que estava doente. Muito doente, por sinal. Estava prevista uma conversa por um destes dias por causa de um artigo a sair na Rua Larga e contava telefonar-lhe durante esta semana para acertarmos pormenores. Soube agora, há uma hora e picos atrás, por uma mensagem de e-mail, que o João Mesquita morreu hoje de manhã. Com ele foi-se também uma pessoa generosa, afável sem servilismo, e um dos já raros combatentes de um jornalismo intransigente e de causas. De esquerda, sim. Vai fazer cá muita falta o João.
Contra a censura na Internet
Hoje, 12 de Março, é o Dia Mundial contra a Cibercensura. Segundo a organização Repórteres Sem Fronteiras, os 12 Inimigos da Internet – Arábia Saudita, Birmânia, China, Coreia do Norte, Cuba, Egipto, Irão, Síria, Tunísia, Turquestão, Uzbequistão e Vietname (a Bielorrússia, o Zimbabwe, e outros que tal, estão à porta para entrarem neste triste clube) – «transformaram a sua Internet numa Intranet, procurando impedir as suas populações de acederem a informação online considerada ‘indesejável’». Pode descarregar aqui (em formato pdf) o relatório detalhado Internet Enemies de 2009.
Outubro em breve
A série Outubro, sobre a sequência, a apoteose e o impacto mundial da Revolução de 1917, que aqui foi publicada em dez episódios entre 2007 e 2008, sairá em breve em livro homónimo numa versão bastante revista e um pouco aumentada. A edição será da Angelus Novus. Serão divulgadas mais informações sobre o livro durante a 2a. quinzena de Abril. Entretanto os posts originais deixaram de estar disponíveis.
O meu lado geek
Em tempos discuti quase até à exaustão se a Apple era o Jardim das Delícias e a Microsoft tinha a face horrenda de Behemoth. Ou se as coisas se passavam rigorosamente ao contrário. Hoje, fora dos círculos que avaliam as grandes fortunas do mundo, parecem-me um tanto despropositadas as pequenas e médias batalhas dos adeptos de Mr. Jobs com os seguidores de Mr. Gates. Deixei-me de maniqueísmos: trago sempre comigo um Apple iPod Classic, daqueles de 120 Gigas, a luz dos meus dias que me ilumina as noites, mas aborrece-me a canonização do Apple iPhone que se encontra a decorrer. Já falei do assunto quando da saída da engenhoca. Agora limito-me a recomendar o meu fiel companheiro, que bate aos pontos, em praticamente tudo, o produto da Apple. É da HTC, responde por Touch HD, vem equipado com o sistema operativo Windows Mobile 6.1 e um ecrã de quase 4 polegadas. Mais agenda, telefone, álbum de imagens, processador de texto, folha de cálculo, e-mail, Internet (incluindo o Twitter), dá-me música, tem rádio e gravador de som, tira fotografias e regista vídeos, reproduz filmes, dá para ligar directamente ao YouTube, fala-me do estado do tempo em tempo real, tem GPS mais Google Maps, e por aí fora. Até fala sozinha, a coisa linda, vulcânica debaixo de uma capa de sobriedade. Uma só desvantagem, que eu não sou faccioso: a câmara de 5 Megapixéis não tem flash. Mas a do iPhone também não.
O literalista
Socorrendo leitores compulsivos deste blogue «reaccionário» – estou a citar – capazes de levarem a sua filantropia ao ponto de considerarem que ele não se percebe, mas continuando ao mesmo tempo a consumir algum do seu precioso tempo a lê-lo e a oferecerem palpites, em vez de irem passear o cachorro ou de passarem um serão a ouvir cassetes de 90′ da Orquestra e Coros do Exército Vermelho (pentear macacos também pode ser uma boa alternativa, embora à noite o Zoológico esteja fechado), aqui vai uma dica: literalista é um adjectivo e um substantivo dos dois géneros que se refere àquele ou àquela que, por opção ou inépcia, se restringe à interpretação literal dos textos. Melhor não sei explicar.
Magalhanês em 10 lições
1 – O Tux escondeu algumas coisas. Encontra-las na boa ordem.
2 – Dirije o guindaste e copía o modelo.
3 – Pega as imagens na esquerda e mete-las nos pontos vermelhos.
4 – Primeiro, organiza bem os elementos para poder contar-los.
5 – Quando acabas-te, carrega no botão OK.
6 – Abaixo da grua, vai achar quatro setas que te permitem de mexer os elementos.
7 – Com o teclado, escreve o número de pontos que vês nos dados que caêm.
8 – Tens a certeza que queres saír?
9 – Aprende a escrever texto num processador. Este processador é especial em que obriga o uso de estilos.
10 – Quando o tangram for dito frequentemente ser antigo, sua existência foi somente verificada em 1800.
[Fonte: Expresso]
A firma responsável por esta estufa de horrores diz terem sido os mesmos provocados por um programa de tradução automática. A desculpa, neste caso, apenas agrava a culpa. A culpa da empresa que produziu os conteúdos, a daquela que vende o produto, e a das entidades escolares e governamentais que distribuíram o computador sem fazerem a necessária revisão.
Da pág. 161, que venha a quinta
Recebo do Francisco José Viegas, que já antes o havia recebido de alguém que entretanto nomeou, um desafio que me desperta. E me leva a quebrar o vago compromisso que havia declarado de meter uma sabática ilimitada em matéria de cadeias-na-linha (prudente, tinha no entanto deixado claro que galgaria o prometido se o desafio fosse irrecusável, sendo afinal este o caso). A proposta é transcrever a quinta frase do texto da página 161 do livro que por estes dias tenho mais à mão. Não preciso de um grande esforço físico, felizmente: estendo a dita e o resultado é surpreendente: «…don’t you know little fool, you never can win?». Uma linha agridoce de Cole Porter em I’ve got you under my skin. A quinta frase, da página 161 da Obra Completa de Nuno Bragança. Aqui n’A Noite o Riso, o romance em forma de tríptico datado de 1969. Segue o desafio para o Luís Januário (ele não gosta de empreitadas, eu sei), a enigmática Miss Allen, o Sr. Pamplinas, a Cristina Gomes da Silva e a Joana Amaral Dias.
No dia seguinte: Acabo de reparar que tinha há alguns meses atrás respondido já a um repto rigorosamente igual àquele ao qual responde este post. O curso rápido da informação amarfanha-nos a memória e leva-nos a pequenos lapsos destes. Todavia, a enunciação pública de duas 5as. frases de duas páginas 161 é qualquer coisa que fica sempre bem no currículo de um blogger.
À volta do Império do Meio
Adaptação do original publicado na revista LER de Fevereiro
Os chineses denominam a China de Zhongguo, traduzido no passado como Império do Meio e hoje como País do Centro. A designação reflecte uma visão sinocêntrica do mundo, concebendo-se inicialmente Zhongguo como a quase totalidade da terra conhecida, cercada apenas por alguns potentados tributários que se submetiam ao poder do imperador. Do lado de fora, a distância geográfica, a efabulação presente nos escassos relatos e as imagens de exotismo colocavam os chineses num mundo à parte, admirado ou temido mas sempre estranho e insulado. Dentro e fora da Grande Muralha e das linhas de fronteira, fixava-se um desconhecimento mútuo, que já só no século XX, com a expulsão do último imperador da Cidade Proibida, o estrépito planetário da Revolução Cultural, ou, mais recentemente, a abertura económica ao mundo, pôde ser abalado. Mas como diz Harry G. Gelber neste O Dragão e os Diabos Estrangeiros, o fluxo e o refluxo do interesse dos outros Estados e das outras sociedades pela China tem sido relativamente ignorado.
O que esta obra se propõe desenvolver não é, pois, uma mera história da China a partir do seu desenvolvimento interno, mas sim uma narrativa das ligações entre os chineses e o resto do mundo apoiada em três vertentes, conferindo-se especial ênfase ao modo como esse relacionamento determinou, e continua a determinar, a vida interna do imenso Estado e, ao mesmo tempo, o desenvolvimento do seu lugar no mundo. A primeira vertente aborda as relações físicas propriamente ditas, o contacto, frequentes vezes violento, dos chineses com outros povos: desde as primeiras incursões dos cavaleiros das estepes até às conquistas mongóis do século XIII, continuando depois com a chegada dos primeiros europeus, e prosseguindo até fechar com as reacções estrangeiras aos acontecimentos da Praça Tienanmen, em 1989. A segunda procura explicar o que movia as diversas potências no processo de aproximação ou de intervenção no território ou na política interna da China. A terceira identifica e documenta três problemas que se têm mantido recorrentes durante um tão longo período, determinando regularmente a vida interna chinesa e o relacionamento com o exterior: o enorme crescimento populacional, o carácter centralista e personalizado da administração central, e a volatilidade das fronteiras.
Como seria de esperar numa obra desta natureza escrita no início do século XXI, acompanhando a preocupação com este tipo de relacionamento encontra-se sempre o lugar de destaque que a China ocupa hoje no mundo. No capítulo final, «A Caminho do Futuro?», considera-se o seu papel de relevo no domínio da ciência e da tecnologia, bem como o modo como interfere nas actuais tendências da economia mundial, evidenciando um crescente peso na balança do poder global e criando as melhores condições para um retorno daquele medo que fora das suas fronteiras sempre despertou.
Harry G. Gelber, O Dragão e os Diabos Estrangeiros. A China e o Mundo, de 1100 a.C. até à actualidade. Tradução de Pedro Garcia Rosado. Guerra e Paz, 568 págs.
Sopa
Felizmente Leila Deen, uma simpática activista do grupo de acção directa Plane Stupid, não vive em Pequim, Havana ou Minsk e pode começar por atirar uma espécie de sopa verde à cara de um ministro falando de seguida, na maior das calmas, para as estações de televisão.
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Insolente à maneira de Xerxes
Segundo notícia do Guardian, as autoridades iranianas, em comunicado lido por um conselheiro do presidente Ahmadinejad, investiram agora contra a indústria ocidental de cinema, que acusam de ter atacado injustamente o povo iraniano e a sua revolução. Ao mesmo tempo exigem que Hollywood peça «desculpas aos iranianos pelos insultos e acusações feitos nos últimos 30 anos». Uma vez mais, aquela que poderia ser uma crítica justa a perspectivas etnocêntricas, em forma de propaganda, que podem produzir maus resultados, transformou-se numa acusação agressiva e arrogante contra a liberdade de criação e de expressão nefastamente «ocidental» que o governo iraniano considera desprezível. Um dos exemplos apontados, acusado de ter descrito os persas como bárbaros e de ser «uma completa mentira», é o filme 300, de Zack Snyder – construído a partir da banda desenhada de Frank Miller e Lynn Varley, e, claro, do relato de Heródoto – cujo argumento se serviu do combate desigual, travado em 480 a.C. no desfiladeiro das Termópilas pelo rei Leónidas, acompanhado de três centenas de combatentes espartanos, contra as tropas de Xerxes, numericamente muito superiores, que haviam invadido a Grécia central.
Deve dizer-se que o filme, estreado nos inícios de 2007 e rapidamente proibido no Irão, ensaia principalmente um devaneio, com uma fortíssima carga plástica, sobre o lugar de Esparta num combate «pela liberdade» – embora na realidade Esparta fosse dirigida por uma oligarquia militarista – contra os ímpetos despóticos do rei dos persas. Um filme que incorpora personagens mágicos, violentos ou grotescos que mais parecem caricaturas do bestiário de Tolkien, e representa os medo-persas como chacais um tanto estúpidos, ora medonhos, ora efeminados, e sempre amorais. Para além disso, trata-se de uma obra graficamente concebida como uma espécie de jogo de computador – até a coreografia dos duelos e das batalhas acompanha muito de perto a sua mecânica feita de impulsos – que parece apenas mais uma daquelas experiências de cinema romanesco de aventuras, a tender, como milhares de outras do mesmo género, para o extremar da separação política entre bons e maus, heróis e vilões. Com os do lado de lá do Mar Egeu a desempenharem, naturalmente, o papel desagradável.
Percebe-se no entanto, pelo menos em parte, o «argumento» iraniano contra este filme, pois os espartanos eram gregos, e os exércitos gregos defrontaram durante séculos aqueles que se organizavam para lá da Anatólia para os combater. Num e noutro sentido: Ciro, Dario e Xerxes avançado para cá, Temístocles e Alexandre o Grande marchando para lá, num espadeirar longínquo que alimentou ressentimentos para muitos séculos. Tudo isso deixou um rastro profundo na memória colectiva. Porém, o que aqui Ahmadinejad verdadeiramente pretende agredir é o modelo de cultura ocidental que tem no mundo grego – ainda que neste os espartanos fossem uns párias, embora uns párias temidos – o seu torrão fundador.
A história é bem conhecida, mas pode ser relembrada. Tudo começou nos séculos VI e V a.C, quando, em poucas gerações, os gregos inventaram a tragédia, o debate democrático, a cultura científica, o relato histórico, a reflexão filosófica. Tendo a perfeita consciência de estarem a criar valores e liberdades que não existiam em mais lado algum. Aos restantes povos chamavam eles de «bárbaros» que não eram senão «todos os outros», aqueles que não falavam a língua grega e que não viviam como cidadãos, sem leis comuns e submetidos a déspotas. Foi esta noção de possuírem aquilo a que hoje chamaríamos uma identidade própria, mais humana do seu ponto de vista, o que de mais profundo os gregos legaram aos romanos e que, através destes, se espalhou depois pelas regiões «a Ocidente», isto é, do lado no qual o sol se põe para quem circula por terra e por mar em redor da península balcânica. Pelo lado de lá, a Oriente do Ocidente, principalmente nas áreas por onde os iranianos procuram hoje impor a sua hegemonia, distribuíam-se – a expressão foi usada por Marx antes de Weber a retomar – formas múltiplas de um execrado «despotismo oriental» que reduzia a grande massa dos seus naturais ao estado servil e, por vezes, dela se servia como máquina de guerra. Dois universos, ambos imperfeitos mas absolutamente opostos, com destinos históricos também eles contrários, padrões de desenvolvimento muito diversos e, ao contrário daquilo que um dia Montesquieu desejou, experiências de vida comum que se foram sempre confrontando. É este cenário, definido durante séculos com um vencedor um tanto arrogante e um vencido por vezes humilhado, que Ahmadinejad, insolente à maneira de Xerxes, pretende agora fazer reverter.
Querida nostalgia
FNAC de Coimbra, manhã de sábado.
Onde fica a revolução?
De acordo com um artigo publicado há menos de um mês no The Economist, e devido sobretudo ao rápido crescimento dos chamados países emergentes, pela primeira vez na História mais de metade da população mundial é composta por pessoas da classe-média. Mesmo vivendo em numerosos casos com dificuldades, pessoas que dispõem de automóvel, conta bancária, cartão de crédito, telemóvel, muitas vezes casa própria. Os «partidos da classe operária» estarão assim, por imposição da realidade, condenados a tornarem-se partidos de trincheira, exilados na nostalgia de um mundo que se perdeu e na recusa de um presente que lhes foge. Esperando que tudo piore e as chaminés voltem a fumegar, espalhando limalha e extremando atitudes, para poderem retomar o seu caminho redentor. Marx «regressa» na pior altura.
Créditos: JCN, através do Twitter