Audácia precisa-se

aborrecimento

Sublinho aqui, a traço grosso, o recente post de Joana Lopes a propósito das limitações de um sistema político que gira apenas à volta de duas categorias ultrapassadas (e não necessariamente antitéticas): «bloco central» e «maioria absoluta». Discursos desvitalizados como o do «inenarrável» Vitalino Canas, ou, pior ainda dadas as anteriores responsabilidades e o passado do seu autor, o mais recente adoptado por Jorge Sampaio, caminham no sentido contrário ao da ousadia da procura e do apelo à capacidade para pensar novos caminhos, para os cruzar, para os associar a um esforço, duro mas imprescindível, de mobilização dos cidadãos para a resolução de problemas comuns. Justamente aquilo que este tempo, de crise generalizada e desinteresse pela coisa pública, tanto requer. O post fecha proclamando a necessidade dramática de «arrojo, audácia, tenacidade». Concordo e subscrevo sem a menor hesitação. Só que com os actores que temos será difícil sair do actual estado de sonolência e aborrecimento.

    Atualidade, Opinião

    Um pequeno roteiro

    Relativismo

    Eis um pequeno livro que oferece bases razoáveis para uma compreensão crítica dos fundamentos, dos caminhos e das vacilantes saídas do relativismo, após a «morte de Deus» talvez a tendência filosófica dominante no mundo ocidental. No quadro sinóptico apresentado por Raymond Boudon, esta assume cambiantes ajustadas a dois grandes modelos. Um, o do relativismo cognitivo, permite considerar que não existe conhecimento certo, nem sequer no domínio da ciência, sendo a única bússola aquela oferecida pelo paradigma que cada um é capaz de adoptar. O segundo, o do relativismo normativo, entende que os princípios e os valores são apenas convenções culturais e que afinal todos eles se equivalem e legitimam. Distingue-se também um relativismo «bom», que tende a estimular a aceitação do Outro na sua especificidade, de um outro tipo, reputado como «mau», tendencialmente negativo e simplista, incapaz de situar o pensamento nas suas circunstâncias. De acordo com o autor, este último conduz inevitavelmente à perda de referências culturais, alimentando um certo niilismo e acabando por lesar a própria vida democrática. Boudon defende então, como via para contornar os excessos, inevitáveis sempre que se toma apenas um dos sentidos, a prática de um determinado padrão de «senso comum». O Relativismo pode ser uma ajuda, sob a forma de um pequeno roteiro, para quem chega a estes temas através de cartilhas e, achando-se perdido entre a cegueira e o ódio, decide procurar uma saída. [Raymond Boudon, O Relativismo. Trad. de António Alfredo. Gradiva, 120 págs.]

      Atualidade, Democracia

      Só para começar

      A murro

      Não vem ao caso qualquer simpatia pessoal por Vital Moreira, na realidade nenhuma. Ou a concordância com alguma das suas sucessivas posições públicas, que por acaso nunca ocorreu. Ou o gosto que possa ter em ler os seus longuíssimos textos de opinião, que quase sempre me provocam algum tédio. Como não vem ao caso a infeliz escolha do PS ao designar como cabeça de lista às eleições europeias alguém cujo pensamento político é sinuoso e demasiado imperativo, e cujo estilo é claramente incapaz de agregar empatias. Mas não me é indiferente a forma como os seus direitos enquanto cidadão eleitor e elegível, a sua liberdade de circulação, a sua honorabilidade, e até a sua integridade física, foram ontem colocados em causa, quando do desfile do 1º de Maio organizado pela CGTP, por uns quantos energúmenos cujas simpatias políticas não serão difíceis de estabelecer (aquele repetido epíteto de «traidor» revela-as sem equívocos).

      Claro que a direcção do PCP não pode ser responsabilizada pelos desacatos que simpatizantes ou militantes seus possam provocar no pleno uso da sua exaltação e da mais-do-que-declarada ausência de respeito pelas escolhas dos outros. Mas já é responsável – e esta é agora a questão que realmente importa – por não fazer pedagogia democrática ensinando aos seus indefectíveis prosélitos, antes e depois do episódio, que em sistemas políticos multipartidários existe, ou deve existir, um direito irrevogável ao exercício de opinião e à mudança de perspectiva. Bem como regras de convivência. Nestes casos, quem cala ou assobia para o lado, quem desculpabiliza, consente, e afinal todos sabemos como no país ideal que a generalidade dos quadros e militantes comunistas tem na cabeça a voz do adversário e, mais ainda, a do apóstata, deve ser emudecida. Só para começar. Não é novidade alguma, mas convém relembrar de vez em quando.

        Atualidade, Opinião

        Por uma ciência da civilização

        Peter Sloterdijk

        Partidário de uma reflexão iconoclasta projectada sobre alguns dos temas contemporâneos mais problemáticos, em A Loucura de Deus Peter Sloterdijk ocupa-se do inquietante potencial de violência que os três monoteísmos mantêm no mundo actual. Ele pode preludiar, de certa forma, uma «guerra mundial» de um novo tipo, na qual as três grandes religiões com pretensões universalistas se defrontariam num combate total de morte e destruição destinado a obter o monopólio do absoluto e da verdade. Desde logo pela interferência da religião judaica, apoiada numa espécie de contrato «entre um psiquismo grave e grande e um Deus grave e grande». Depois, um cristianismo que conserva muitas das características que o ligam ao judaísmo mas integra «acentos cristológicos» de uma novidade ainda subversiva que lhe conferem uma dinâmica de proselitismo. Por fim um Islão que procurou, desde o seu atribulado início histórico, corrigir as falhas, as «errâncias», dos monoteísmos que o precederam, integrando desde a primeira hora «impulsos religiosos e político-militares» de uma natureza prática e belicosa.

        Relacionando-se e opondo-se através dos tempos, num dado momento histórico estas três religiões viram-se confrontadas com o aparecimento do comunismo, que emergiu revogando as antigas proposições proféticas e reformulando-as «numa linguagem do real» como quarta figura do universalismo militante. «A estafeta do profetismo», escreve o filósofo alemão, teria assim «passado de Moisés a Jesus, de Jesus a Maomé e de Maomé a Marx». Porém, o aparente fim do comunismo terá emancipado essas religiões tradicionais de um inimigo comum, libertando-as para o regresso a uma lógica de radicalidade e confronto agora transformada, sob a forma de «loucura de Deus», num risco real para a humanidade no seu todo. Tanto mais que cada uma delas integra um número crescente de zeladores, ávidos de impor a sua fé através da radicalidade e de uma lógica de confronto que lhe é crescentemente associada. A guerra israelo-palestiniana, as movimentações planetárias do islão radical e o fundamentalismo protestante americano estão diante dos nossos olhos para comprovar a consistência deste perigo.

        O fármaco para combater esta pandemia de violência que parece alastrar a cada momento encontra-se então, provavelmente, na transformação desses zeladores, apóstolos irredutíveis da incomunicabilidade e da supremacia da sua crença, em actores civis de uma sociedade que deve construir-se pela via do diálogo, modificando as religiões no sentido destas se requalificarem como instrumentos preservadores de cultura, capazes de metamorfosearem todo o universalismo militante e agressivo num cosmopolitismo consistente e civilizado. A «ciência da civilização», uma ciência da coexistência assim erguida, seria para Sloterdijk «a verdadeira moderadora do espaço habitável da superfície terrestre». Vislumbre de uma teoria optimista do improvável.

        Peter Sloterdijk, A Loucura de Deus. Do combate dos três monoteísmos. Tradução de Carlos Correia Monteiro de Oliveira. Relógio d’Água, 146 págs.

        Publicado originalmente na revista LER de Abril

          Atualidade

          O jogo da mala

          A mala

          A forma quase unânime como os deputados aprovaram ontem as alterações à lei do financiamento dos partidos, permitindo um volume muito maior de dinheiro vivo a circular sem controlo, é qualquer coisa de inevitavelmente repulsivo aos olhos dos cidadãos sem telhados de vidro. Ou daqueles que se vêm coagidos, por vezes justificadamente, a severas medidas de fiscalização das transacções que envolvem o seu próprio dinheiro. Ou ainda daqueles que gerem instituições públicas com a corda na garganta. Mas até o Bloco de Esquerda – com a identidade política e a imagem pública vinculadas a um papel de «força de denúncia» – alinhou neste acordo. Um passo mais na descredibilização pública dos organismos partidários, crescentemente voltados para o seu próprio umbigo e olhados pelo cidadão comum como associações de interesses. O fiscalista J. L. Saldanha Sanches asseverou que voltamos assim «às malas cheias de notas, das quais uma parte chega aos partidos e outra fica com as pessoas que as recebem». Poderá não acontecer, mas da suspeita já ninguém se livra, o que será sempre um mau presságio para a qualidade da vida democrática. E também uma maneira de ampliar a desconfiança e a desmobilização.

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            Atualidade, Olhares

            O fim dos bravos

            Wellington

            «Com mil demónios! Julgo que não teríamos conseguido se eu não tivesse lá estado!» A frase foi pronunciada pelo Duque de Wellington quatro dias após ter comandado as tropas britânicas, holandesas, belgas e alemãs na batalha de Waterloo, selando aí o destino de Napoleão Bonaparte. Evoca também o tema central de um livro de John Keegan, A Máscara do Comando, editado há já mais de vinte anos. Neste, era o soldado o protagonista, evocado na sua relação com a experiência directa da dor, da vozearia, do terror, da audácia e da exaustão espalhados pelos terrenos do combate. Ali é a figura do general ou daquele que assume o comando supremo que se encontra no centro, abordada pelo historiador a partir da leitura de quatro biografias e de quatro diferentes modelos de liderança.

            Alexandre o Grande corporiza aqui o arquétipo do «herói». Um guerreiro que aparenta não ter medo, que dá o exemplo batendo-se de espada na mão na primeira linha do combate corpo a corpo, que é excessivo, teatral e de uma certa forma eloquente, ganhando a admiração dos seus e o temor dos adversários por arriscar permanentemente a vida e decidir sempre de uma forma rápida e na aparência inesperada. Já Arthur Wellesley, o Duque de Wellington, é o «anti-herói», que descrevia os seus soldados como «escumalha da terra», mas ao mesmo tempo se comportava como um gentleman disciplinado, minucioso nos seus deveres, invariavelmente sóbrio e contido, aparecendo e desaparecendo sem grande alarido dos locais mais críticos da batalha. O General Ulisses S. Grant surge então como um comandante «não-heróico», de certa forma democrático, que se via a si mesmo como alguém que não era muito melhor do que os seus homens e dirigia os combates com um charuto no canto da boca, às vezes embriagado, recorrendo a meios, como o telégrafo e o caminho-de-ferro, que alteravam radicalmente a condução das operações e o afastavam muitas vezes da linha de fogo. Adolf Hitler é aqui o «falso herói», que se apoiava, com recurso a uma propaganda meticulosamente organizada, na sua capacidade oratória, numa memória excepcional e na glória simulada de um passado de combatente na Primeira Grande Guerra – onde servira basicamente como estafeta – para chefiar, a partir de um bunker, operações que se desenrolavam a centenas ou mesmo a milhares de quilómetros de distância.

            Do tratamento destes quatro padrões de comandante, associados a outras tantas formas de comandar, sobressai a percepção da chefia suprema do acto militar como actividade com uma forte componente cultural, capaz de associar os meios de combate e as opções estratégicas nele postas em prática a um padrão de comportamento, a uma «máscara», adoptada pela personalidade de quem os dirige. A atitude diante da condição heróica surge pois como dependente tanto da escolha individual como das condições objectivas impostas aos actos de guerra. Nas circunstâncias da era nuclear, a nova liderança, apelidada aqui de «pós-heróica», requer então uma actuação clara e racional que atribui ao chefe supremo das forças em confronto um papel menos central, embora não menos decisivo. «Outrora, os bravos terão sido aclamados em paradas triunfais pelas ruas de Persépolis. Hoje, os melhores devem esforçar-se por não assumir o papel de heróis.» A guerra contemporânea inutiliza e reclama o apagamento da velha ética do heroísmo.

            Publicado originalmente na revista LER de Abril de 2009

              História

              Despudor mal atribuído

              Coimbra - B

              O número do semanário Visão que saiu na semana passada atribui-me, com algum destaque, uma frase que apareceu no Público: «Em Coimbra, há 40 anos, bebia-se e amava-se despudoradamente.» A tirada saiu, de facto, num artigo do diário para o qual fui ouvido, mas é do realizador João Botelho, antigo activista estudantil e à época dirigente do CITAC. Acontece uma troca destas logo comigo, que tenho andado por aí a dizer à boca cheia que a «crise de 69» representou  um ponto de viragem, um momento novo, mas inicial, ainda algo tímido, na construção de uma nova sociabilidade estudantil coimbrã. A frase de João Botelho, que me perdoe o próprio, soa aliás a uma nostalgia – talvez até um nada megalómana e autocentrada, como acontece na maioria das histórias de caça – que não faz bem o meu género.

                Devaneios, Memória

                Poética dos escaparates

                Escaparate

                É este o título da crónica de Antonio Muñoz Molina transportada no Babelia desta semana. Nela se aborda o panorama devastador, para quem ama os livros e gosta de flanar pelas livrarias, observado em cada aproximação a um desses coloridos e iluminados, frios e inóspitos, espaços-depósito que as grandes cadeias distribuem hoje pelas cidades. O texto de Molina pode ser lido aqui na íntegra, e dele se copia um fragmento.

                No hay amor a los libros, no hay una inteligencia detrás de su disposición: tan sólo un amontonamiento desganado de los dos o tres éxitos masivos de la temporada, apilados como mercancías al por mayor, si acaso en compañía de algún cartel promocional. Nadie va a descubrir nada ni a llevarse ninguna sorpresa mirando ese escaparate: parece que se aspira a ofrecer un producto de venta tan garantizada como la hamburguesa de un McDonald’s. Claro que un libro, entre otras cosas, también es una mercancía, y que un librero es un comerciante honorable que aspira, como todo el mundo, a ganarse la vida con su trabajo, y a que éste sea, a ser posible, como quería Juan Ramón Jiménez, un trabajo gustoso. Pero en esos escaparates se ve que no ha existido ni trabajo gustoso ni amor por los libros, ni siquiera la sensibilidad plástica que hace tan atractivas las caminatas por la ciudad.

                  Apontamentos, Recortes

                  Dois apontamentos sobre cartazes

                  Propaganda

                  1. Um passeio neste feriado fez-me passar diversas vezes pelos enormes cartazes de Vital Moreira e de Manuela Ferreira Leite com os quais os maiores partidos nacionais têm vindo a desfear as rotundas de vilas e cidades, não perdendo uma oportunidade para acabrunharem ainda mais os portugueses. Sem impacto político real ou aptidão para evocarem propostas. A frase «Nós, Europeus» colada ao candidato Moreira, por exemplo, é em 2009, no mínimo, um sinal patético de falta de imaginação e indigência política, reminiscência de um «A Europa Connosco» com mais de trinta anos. Os cartazes do PS e do PSD são péssimos, horríveis, representando de forma caricata ou soturna as figuras que nos pretendem propor, incapazes de transmitirem ao cidadão comum uma impressão de calor ou de proximidade. Chego depois a casa e observo imagens dos cartazes da Esquerda Verde, segunda classificada nas eleições que decorreram na Islândia. Percebo ali uma outra cultura política, um outro cuidado com uma abordagem visual, assumidamente estetizada e menos poluente, com capacidade simpática, das pessoas que andam pelas ruas e as observam.

                  2. Desde o episódio do «porreiro, pá» entre Sócrates e Barroso que me incomoda o uso da frase casual, de alguma forma íntima e apenas revelada por um microfone inadvertidamente ligado, como instrumento de arremesso contra ambos. Independentemente das considerações que se podem fazer sobre as atitudes políticas de um e do outro, esse momento cristalizou, aos meus olhos – e provavelmente aos olhos de muitas pessoas – um grau de humanização e de informalização do relacionamento interpessoal que é uma conquista de Abril e que, na sua dimensão democrática, realmente me agrada. Sem exagero. Não posso, por isso, deixar de lamentar a utilização daquela frase pelo Bloco de Esquerda, em outdoors de pré-campanha, como arma de arremesso. E tenho a certeza de que a «mensagem» resulta absolutamente ineficaz, se não mesmo contraproducente em termos de comunicação pública. A construção de uma cidadania mais perfeita não passa, ou não deve passar, pelo achincalhamento pessoal de quem quer que seja. É feio e não vale.

                    Apontamentos, Atualidade, Olhares

                    Do lado negro da História

                    No dia da canonização de Nuno Álvares Pereira, recupero um post publicado há dois meses atrás. Independentemente do carácter polémico e discutível que possa ter a tese de António Borges Coelho nele evocada, é lamentável que a mesma tenha sido, tanto quanto pude perceber durante estas semanas, completamente ignorada nas peças jornalísticas que têm acompanhado o processo. Algumas redigidas num tom de proselitismo religioso completamente despropositado.

                    Quando iniciei o curso de História trazia ainda comigo a imagem de um Nun’Álvares paladino e devoto, campeão da independência em Aljubarrota, e, anos depois, converso a uma nova existência: a vida simples feita de oração e cilício do Beato Nuno de Santa Maria. Era essa a imagem, construída pelos finais do século XIX e que o Estado Novo reproduzira, que havia transformado o Conde de Ourém e Condestável de Portugal numa espécie de ícone simultâneo do brio indígena e da piedade cristã. Foi então que li um livro, onde se afirmavam algumas teses sobre o sentido da crise política de 1383-1385 hoje algo contestadas, contendo informações sobre a vida verdadeira de Nuno Álvares Pereira que não circulavam pelas vias tradicionais de acesso ao registo do nosso passado colectivo.

                    Fora em 1965 que o historiador António Borges Coelho publicara na Portugália esse A Revolução de 1383 que vim a conhecer na sua edição de 1977, a 3ª, consideravelmente aumentada e revista de acordo com as novas possibilidades oferecidas pela Revolução de Abril (existem ainda edições posteriores). Foi aí que vi emergir da penumbra um senhor de Cernache com um rosto menos harmonioso, como nobre feudal cioso dos seus direitos, interventor pelo fio da espada nos campos alentejanos e andaluzes, do lado de cá e de lá das marcas do reino, contra os camponeses sublevados, que não se coibiu, por vezes, de perseguir e massacrar. Porque, como contou Borges Coelho apoiado principalmente em Fernão Lopes, Nun’Álvares dizia preferir morrer combatendo «nas fraldas» do próprio rei castelhano que serem depois, ele e os seus, «apanhados de lugar em lugar como perdigotos e enforcados uns e uns pelos sobreiros». Pela acção desses miseráveis campónios que visivelmente temia e essencialmente desprezava.

                    Ora é esse homem, «herói» também de uma guerra suja, com acções nada abonatórias no registo individual, com sangue nas mãos que não apenas o do invasor castelhano – mas apontado como «exemplo para a sociedade actual» pelo frade carmelita «vice-postulador da causa da canonização» -, que a Igreja católica, apostólica e romana de Bento XV beatificou em 1918 e que Bento XVI vai agora transformar em santo. Tendo como fundamento mais imediato, dizem, a cura milagrosa num olho de uma sexagenária que deixara de ver por ter sido atingida «com salpicos de óleo a ferver enquanto cozinhava». Cavaco já se congratulou publicamente com o evento e pode ler-se em alguns blogues de direita que esta é uma das melhores notícias para Portugal que temos recebido nas últimas décadas. Para as pessoas comuns o facto não aquecerá nem arrefecerá as suas existências, mas será sempre de proveito e exemplo conhecer também o lado negro da História. E saber de onde chegam os esquecimentos.

                      Atualidade, História

                      Sobre o silêncio dos mortos

                      O genocídio arménio

                      Um século depois dos acontecimentos de 1915, o governo conservador de Erdoğan toma, no mínimo como equivalentes, a morte de soldados turcos em combate e as actividades sistemáticas de genocídio que Istambul então levou a cabo, provocando o extermínio sistemático de um milhão e meio de arménios e iniciando uma política de supremacia racial na região que ainda continua a fazer vítimas. Mas ficou agora particularmente incomodado com as palavras de Barak Obama ao reconhecer publicamente os actos de barbárie então levados a cabo e que se encontram amplamente documentados. Construir a paz na região procurando, ao mesmo tempo, rescrever a História por cima do silêncio dos mortos, não será por certo um bom princípio para quem deseja tornar-se um bom «europeu» e obter a confiança de um lado do mundo que viveu longos séculos no temor das intenções otomanas.

                        Atualidade, História

                        Memória supérflua

                        Canada Dry

                        A memória supérflua do meu pré-Abril está cheia de sabores, odores, sonidos. O gosto do refrigerante Canada Dry, consumido como sucedâneo da acossada Coca-Cola. O dos chocolates Candy-Bar com recheio, nos quais fui viciado. O do melão verde escuro vendido porta-a-porta. O cheiro a tinta do Século Ilustrado que saía aos sábados. E o do creme Benamor usado pelas senhoras. O da cola Peligon. O da graxa para sapatos nas manhãs de domingo. O compasso dos tangos e pasodobles no Programa da Manhã da Emissora Nacional. Os Shadows a tocarem Apache. O Nat King Cole. A Filarmónica transpirando Verdi atrás do turíbulo de Agosto. O fado no rádio de pilhas. O toque de caixa no 10 de Junho. Como tudo passava devagar e na aparência nada sucedia, havia tempo para registar os detalhes. Ainda à sombra do retrato do velho.

                          Devaneios, Etc., Memória

                          Palavras públicas (sobre o Twitter)

                          Notificador

                          Ando há dias a congeminar este post. A medir o que nele poderia dizer sem passar por inimigo das redes sociais na Internet, ou fazer figura de antipático aos olhos de pessoas que irão pensar que me estou a referir a elas. Acabei por ser impelido a escrevê-lo por um pequeno apontamento, para a qual me chamaram a atenção, e no qual se equipara ao Twitter uma geringonça, instalada no ano de 1935 em ruas, lojas, estações de comboio e outros locais públicos da cidade de Londres. O Notificador – assim se chamava o aparelhómetro – permitia que o utilizador deixasse pequenas mensagens, escritas em papelinhos, as quais funcionavam como recados destinados a determinadas pessoas. A ideia, aparentemente simples, parecia boa e útil, sendo estranho que não tivesse pegado.

                          Ela dependia, porém, de uma certa capacidade de permanência dos referidos papelinhos, pois estes deveriam manter-se visíveis durante pelo menos 2 horas. Ora é justamente aqui que falha a comparação com o Twitter. O defeito poderá ser meu, mas desde que por ali comecei a ter bastantes friends que escrevem 100, 150, 200 mensagens diárias, a interactividade tornou-se quase impossível, uma vez que essa cortina de recados impede uma leitura adequada – por vezes, ao fim de 5 ou 6 minutos as nossas mensagens foram já afogadas por largas dezenas de outras – e quase inviabiliza uma verdadeira conversa. A não ser que as pessoas envolvidas estejam durante horas com boa parte da sua atenção virada para esta actividade.

                          Vejo o Twitter como uma coisa divertida e certas vezes bastante útil, mas que se pode tornar maçadora para quem está absorvido noutras tarefas e, logo que se liga, vê a mesma pessoa, a mesma cara, a surgir no ecrã em cascata. Durante tanto tempo diário que, certas vezes, nos questionamos sobre a forma como essas pessoas encontrarão lugar para lerem os artigos e os livros que recomendam, para verem os filmes e programas de televisão que sugerem, para viverem a vida «lá fora» da qual falam. Julgo, sinceramente, que deveria existir uma espécie de twittiquette. Uma boa regra, provavelmente a única, consistiria então em que ninguém pudesse enviar mais do que 10 mensagens por hora. Mesmo assim os viciados ainda poderiam enviar mais de 200 por dia, mas dariam tempo aos outros para respirarem e deixarem os seus próprios recados, informações ou fugazes tonterias. Admito, no entanto, que não tenha percebido muito bem a lógica da coisa e possa andar a marinar num erro qualquer.

                            Apontamentos, Cibercultura, Memória, Olhares, Opinião

                            O Largo

                            Forgive| Never

                            Neste 25 de Abril, a Câmara de Santa Comba Dão irá inaugurar um Largo António Oliveira Salazar «requalificado» em conjunto com «o seu espaço envolvente». Festa rija, aguarda-se, pois a cerimónia contará com «a actuação da Tuna de Santo Estêvão» e «haverá porco no espeto» à discrição para fidalgos e vilões. O vice-presidente do município afirmou, entretanto, que a escolha da data para a inauguração não tem qualquer significado político: «não há nenhum significado especial nisso». E o próprio presidente declarou, num rasgo de lucidez, que o espaço «já tem esse nome desde antes do 25 de Abril». Afinal o Dia da Liberdade também não possui, como sabemos, um significado de maior. Comemora-se uma revolução que por acaso determinou a segunda morte do ditador do Vimieiro e entre outras coisas permitiu, ao que parece, a valorização do próprio poder autárquico, mas nada disso parece relevante face à magnitude do vulto assombroso do sempiterno senhor doutor. Valorizando o papel depurador do esquecimento na construção de uma memória mais justa, Marc Augé frisou que é preciso esquecer para lembrar, mas aqui inverte-se processo: trata-se de evocar o passado, de celebrá-lo, para fazer de conta que apenas ocorreu um ténue virar de página. Imposto, talvez, por uma arreliante brisa.

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                              Bandeira pirata

                              The Pirate Bay

                              Em entrevista publicada no último número da Technikart, o sueco Gottfried Warg, considerado «o cérebro» da organização The Pirate Bay, declara: «Faço isto em nome da liberdade e um pouco para chatear o mundo». «Isto» não é senão manter em actividade, em conjunto com os amigos Peter Kolmisoppi e Hans Fredrik Neij, um site de partilha de ficheiros electrónicos que conta já com mais de 25 milhões de utilizadores. Os três responsáveis pela Pirate Bay foram agora condenados a um ano de prisão e ao pagamento de indemnizações no valor de 2,7 milhões de euros, mas não é por isso que pretendem abandonar o ramo e o site mantém-se em plena actividade. Por trás deles, uma multidão de pessoas, em regra jovens e com pouco dinheiro, que querem continuar a aceder à música, aos filmes e aos programas que desta maneira lhes entram com toda a facilidade em casa. O mais interessante é que a sua acção está a lançar um movimento mundial de solidariedade e de contestação declarada dos direitos de autor e dos privilégios das grandes distribuidoras, constrangedores do acesso a um património que poderia ser público. A utopia comunista parece pois estar a chegar aos bits. Diz um apoiante convicto da justeza da causa: «Aquilo de que gosto mesmo nos tipos da Pirate Bay? Da sua radicalidade.» Não é difícil simpatizar com eles.

                                Atualidade, Cibercultura

                                O senhor da previdência

                                Eric Hobsbawm

                                Quase a perfazer 92 anos, Eric Hobsbawm mantem-se mais desperto e capaz de pensar de forma crítica e controversa do que muita gente avisada e previsível que circula por aí cheia de vigor e em condições de percorrer três quilómetros matinais em passo de corrida. Só agora li «Socialism has failed. Now capitalism is bankrupt. So what comes next?», o seu artigo publicado há alguns dias no Guardian. Não oferece uma resposta para a pergunta que coloca? Pois não oferece, não senhor. Só que o primeiro passo para escolher um percurso a seguir consiste sempre, antes ainda de se meterem as solas à estrada, em perceber que ela pode existir. E em procurar o seu norte magnético. Chama-se a isso previdência.

                                  Atualidade, Olhares, Opinião